ESCALAVRADURA -
Era junho de
1986, plena Copa do Mundo. Minha filha havia se tornado a vencedora do concurso
escolar da Rainha do Milho. Meu filho fazia dois dias que estava meio febril e
ficara com a vó para que eu pudesse ir aos festejos juninos da filha. Tomei
umas e outras, soltei pilhérias e fiquei feliz. Lá para as tantas, bastante
manguaçado, voltei pra casa e arriei na cama o sono dos que veem o mundo girar
em torno do sol. Ao cochilar, a mãe me acorda porque o menino estava vomitando
a casa toda. O vômito era sangue coagulado. Às carreiras peguei o carro e levei-o
pro hospital. Por sorte era um médico amigo de infância quem atendeu. O coração
pela boca. Depois de uma hora, o meu amigo me aconselhou a levá-lo pra Recife. E
ajeitou comigo o banco traseiro do meu carro com balão de oxigênio e soro,
zarpei dali na hora. Cheguei no IMIP toda equipe médica já esperava. Levaram-no
para UTI. Eu tive que bancar um apartamento no hospital próximo da UTI, para
que a mãe ficasse perto do filho vez que não podíamos entrar nas dependências
médicas da unidade de tratamento intensivo. Dois dias nisso, nenhum
diagnóstico. Só um médico com jeitão de acadêmico teve coragem de, aos prantos,
falar comigo: - Ele está com uma hemorragia estomacal crônica e aqui não vai
dar jeito. Tem que levar para o Barão de Souza Leão. - Hospital público, Deus-me-livre! Mas tinha
que ser, pois, era o único que podia recebê-lo naquele estado. Nenhum médico do
IMIP escondia a cara de choro toda vez que se aproximavam de mim. E o pior: não
conseguiam dizer nada, no máximo bater no meu ombro. Uma ambulância levou-nos pro
outro hospital. Lá a equipe médica se agitou. Exigiram dez exames de sangue
dele em laboratórios diferentes. Eu fiz uns em Recife, Arnaldo conseguiu uns dois
em João Pessoa, Rodolfo conseguiu mais uns em Maceió, e a corda da
solidariedade deu para em dois dias mais trazer todos os exames requeridos.
Quando entreguei tudo, ao cabo de duas horas estava eu e a mãe ao lado de uns
vinte e cinco médicos. Diagnóstico: leucemia mieloidal. - Que porra é nove? -,
disse eu. - Uma espécie terrível de câncer no sangue. Aqui não trata, talvez em
Minas Gerais, ou São Paulo, mas certo mesmo, só nos Estados Unidos onde pode
fazer transplante de medula. O transplante, só nos Estados Unidos. Tem dinheiro
para isso? Quando ele perguntou fiquei com a cara de tacho mais deslavada e com
uma interrogação maior que o prédio do hospital. A mãe desmaiou na hora quando
o médico começou a dizer os riscos, como ele teria que viver dali por diante,
assim e assado. - Quais as chances? -, perguntei. - 0,01%. - Puta-que-me-pariu,
porra! Os médicos me acalmaram, enquanto outros tentavam reanimar a mãe. Eles
queriam uma autorização para aplicar uma droga enquanto eu levantava a
dinheirama para a viagem. Só me deram uma semana para conseguir e já davam por
certa que só nos Estados Unidos que teria jeito. Antes, porém, queriam uma
pessoa compatível para fazer o transplante. Mais um dia e chegaram com o
resultado de que a minha filha era compatível. Tinha então que correr. E muito.
Vendi um carro, dois terrenos, meu pai me deu cinco mil, meu sogro mais cinco
mil, saquei umas poupanças e fiquei com uma tuia de dinheiro vivo no bolso. Era
sexta-feira e precisava chegar no hospital para encontrar a mãe, a avó e Elita
que se revezavam no plantão. Cheguei finzinho da tarde pronto para na segunda
ir pro consulado dos Estados Unidos providenciar a viagem. Já no sábado, quando
cheguei no hospital os médicos pediram nova autorização para aplicar uma outra
droga com o objetivo dele aguentar até que eu resolvesse as coisas todas no
consulado. Os efeitos dessa droga eram devastadores a ponto de despelar e cair
o cabelo. Foi quando lembrei do horror de meu filho quando passei no vestibular
de Direito e fiquei careca. Tinha que fazer alguma coisa. Então subi, fui até
ele e disse que ia raspar de novo a cabeça. Ele perguntou-me o motivo e eu
disse que ele também ia raspar comigo. Ele abriu os olhões e disse que assim,
assim. Não havia sinais nele de doença, nem parecia que estava com aquela
enfermidade porque cantava, bulia com os outros meninos da UTI, pegava na bunda
das enfermeiras, era muito buliçoso e peraltinha. Quando ele concordou, eu saí
para comprar uns pijaminhas para a viagem e estadia no exterior. Mas como uma
coisa ruim não vem sozinha, ao cruzar o sinal e entrar na Agamenon Magalhães,
meu carro atravessa a pista e finda empancado no meio-fio. Sem saída liguei
para Gulu que me socorreu com um guincho. Diagnóstico do carro: rompeu a roda.
Era hora do jogo do Brasil, tudo fechado. O guincho levou para uma oficina, por
sinal, a única aberta no bairro recifense do IPSEP. Lá conseguimos uma única
loja de peças que resolveu vender a peça. Quando voltamos, o mecânico falou que
o Brasil ia começar a jogar e só lá pras seis horas da noite que o carro
estaria pronto. Tudo bem, fazer o que, hem? Arnaldo chegou e me levou pra casa
dele. Assistimos ao jogo que eu fingia acompanhar onde, o Brasil perdeu nos
pênaltis para a França de Platini – a partir disso o Brasil nunca mais ganhou
pra França. No horário acertado, cheguei à oficina, paguei o conserto, peguei o
carro e fui apanhar meu primo Wadson para render a mãe no hospital. Era meu dia
de plantão. Cheguei lá umas oito horas da noite e a mãe do meu filho se foi com
Wadson para a casa da minha tia Nadeje, que era o nosso quartel-general, e
fiquei com o menino que perguntava sobre o jogo, quem ia ser campeão, como é
que é isso, aquilo, aqueloutro, até que ele teve uma convulsão, agitou-se,
agarrou-se em mim e, depois de um certo tempo, descansou. Dormia tranquilamente.
Cansadíssimo, baixei a cabeça e fiquei com ele. Vieram as enfermeiras,
medicaram, examinaram e se foram. Já passava da meia noite quando ele dormia
tranquilo e eu deitei a cabeça na cama dele. Daqui a pouco uma moça chegou
perto de mim e disse que ele tinha parado de respirar. Fiquei atônito, chamei
as enfermeiras que tentaram reanimar. Conseguiram, ele se agarrou em mim e
descansou. Pouco tempo depois, parou de respirar de novo. Aí vieram novas
tentativas para reanimá-lo. Correria medonha, enfermeira, médicos, tudo. Maior
escarcéu e nada dele recobrar os sentidos. Depois de horas de tentativas, o
médico bate no meu ombro e me dá os pêsames. Nunca chorei tanto na vida. Não
conseguia dizer nada, fiquei em estado de choque. Via que as enfermeiras
arrumavam os panos da maca, envolvendo meu filho e fazendo dele um pacote.
Aquilo me indignou. Fiquei revoltado com a transformação do meu filho num
embrulho qualquer. O médico retornou e me pediu que seguisse pro necrotério.
Desci, telefonei para a mãe dos meus filhos e não soube dizer nada, estava eu
aos prantos. Ela chegou. Choramos juntos e, na mesma hora, acertei o carro
fúnebre e determinei ida para Palmares onde seria enterrado no mesmo dia.
Chegamos em Palmares perto das dez horas e o corpo dele foi velado no Cepred.
Às três horas da tarde, sepultei. E me tranquei três meses dentro de casa,
curtindo a vida com a minha agora única filha Patrícia. Nessa clausura eu me
perguntei com o pé enfiado na jaca: o que é vida? Contava com vinte e seis anos,
demitido do banco e com um futuro incerto e nada promissor. Vambora. Vamos aprumar
a conversa aqui.
Curtindo o álbum Out of Season (Interscope,
2002), da cantora britânica Beth Gibbons
& do músico britânico Paul Douglas Webb. Veja mais aqui.
EPÍGRAFE - Talvez a maior parte de nossa
insatisfação com a vida venha do fato que nossas buscas da felicidade são
numerosas demais. Cada coisa procurada, em si, parece clara como cristal, na
alegria que nos trará. Porém, coletivamente elas se depreciam mutuamente e diminuem
nosso entusiasmo por qualquer uma delas, como uma variedade de obras de arte
empilhadas,
trecho extraído do livro Sussurros do eu interior (Renes, 1976), do filósofo e
escritor místico Sâr Validivar
(1904-1987). Veja mais aqui e aqui.
POIMANDRES – No livro Corpus Hermeticum: discurso de iniciação & A Tábua de
Esmeralda (Hemus, 1978), de autoria atribuída pelos neoplatônicos, místicos
e alquimistas ao deus egípcio Thoth e identificado como o deus grego Hermes
Trismegistus, formado por quarenta e dois livros subdivididos em seis
conjuntos, tratando da educação dos sacerdotes, dos rituais do tempo e de
geologia, geografia, botânica, agricultura, astronomia, astrologia, matemática,
arquiteturas e de hinos em louvor aos deuses. Da obra destaco o trecho
denominado Pomandres: Um dia, em que comecei a
refletir acerca dos seres e que meu pensamento deixou-se planar nas alturas
enquanto meus sentidos corporais estavam como que atados, como acontece àqueles
atingidos por um sono pesado pelo excesso de alimentação ou de uma grande
fatiga corporal, pareceu que se me antolhava um ser de um talhe imenso, além de
toda medida definível, que me chamou pelo meu nome e disse: “Que desejas ouvir
e ver, e pelo pensamento aprender e conhecer?” E eu lhe disse: “Mas tu, quem
és?” – “Eu”, disse ele, “eu sou Poimandres, o Noüs da Soberania absoluta. Eu
sei o que queres e estou contigo em todo lugar”. E eu disse: “Quero ser
instruído sobre os seres, compreender sua natureza, conhecer Deus. Oh! Como
desejo entender!” Respondeu-me ele por sua vez: “Mantém em teu intelecto tudo o
que desejas aprender e eu te instruirei”. A essas palavras mudou de aspecto e,
subitamente, tudo se abriu diante de mim em um momento, e vi uma visão sem
limites, tudo tornou-se luz, serena e alegre, e tendo-a visto apaixonei-me por
ela [...]. Veja
mais aqui, aqui e aqui.
BABBITT – No romance Babbitt (1922), do escritor estadunidense e
prêmio Nobel de Literatura de 1930, Sinclair
Lewis (1885-1930), uma sátira da vida cotidiana americana no início do século
XX, em seu comportamento conformista, principalmente da classe média, destaco o
trecho: [...] A
bruma compadecia-se das construções caducas das gerações precedentes: o
edifício dos correios, com a sua mansarda de telhas lisas esbeiçadas, os
minaretes de tijolo vermelho das velhas casas pesadonas, as fábricas de janelas
embaciadas e fuliginosas, os prédios de madeira cor de lama. A cidade estava
cheia dessas caricaturas arquitetônicas, que as galhardas torres cinzentas iam
expulsando do centro comercial. Nas colinas mais distantes resplandeciam casas
novas, que eram, na aparência, ninhos de riso e de sossego. [...]. Veja
mais aqui.
VERBUM &
SILÊNCIO – Entre
os poemas da poeta e jornalista Marly
Vasconcelos, destaco inicialmente Verbum: Uma
época escrevi estórias com tanta ansiedade / que não podia comer uma maçã./ Não
havia tempo para o detalhe./ Palavra, eu fui palavra. / Poderás avaliar o que é
ser palavra? / Fecha os olhos e compõe com tuas lembranças / um território
exaurido e descarnado, / pasto
de animais melancólicos, / lagoas, cacimbas secas. / Na terra, debaixo da
oiticica, um monte de ossos. / Preço que paguei sendo palavras. E
também o poema Silêncio: Atenta para a água que ressoa nos aquários,
/ o caminhar de passos harmoniosos, / pálpebras que baixam lentamente. /Tudo
prenuncia o silêncio. Veja mais aqui.
A QUANTAS
ESTAMOS: SANGUE NOVO – No livro Como não
escrever uma peça (Lidador, 1968), do escritor e critico de teatro
estadunidense Walter Kerr
(1913-1996), destaco o trecho O método cansado: Nenhuma forma dramática, boa ou má, tem vitalidade perene. O grande
teatro grego, com os seus heróis delicados, sua estrutura escassa e seu coro
lírico, esgotou sua inspiração em menos de oitenta anos. O teatro elisabetano,
com sua estrutura desenfreadamente complexa e seu realismo poético ruidoso,
esgotou as energias em menos de cinquenta e cinco anos. O período áureo do
teatro francês, englobando toda a obra profissional de Corneille, Molière e
Racine, durou quarenta e dois. Estes foram impulsos dramáticos primordiais, os
mais fecundos e mais dinâmicos que conhecemos. Impulsos menores conseguiram
arrastar-se por mais tempo, possivelmente graças à pura inercia. Levou quase
sessenta anos para que a comedia sentimental inglesa do século dezoito
desaparecesse. Mas Plauto e Terêncio não contam com mais de quarenta anos entre
os dois e a comedia inglesa da Restauração estava liquidada em vinte e cinco. O
que estou querendo dizer é que chega o momento em que todo estilo dramático e,
portanto, todo modelo útil se desintegra e desaparece. Se bem que o teatro
tenha assistido há bastante tempo, nenhuma das suas manifestações – nenhum
grupo de convenções, nenhuma noção do que seja um tema adequado para o palco –
conseguiu sobreviver mais do que o mais velho espectador. [...]. Veja mais
aqui, aqui e aqui.
JUNEBUG – O drama comédia Junebug
(Retratos de família< dirigido por Phil Morrison, conta a história ocorrida
na região sul estadunidense, e
o jeito simples de seus habitantes que sempre encantaram com uma sofisticada
marchand, que se casa e vai conhecer os pais do marido, quando se vê no meio de
estranhos desconfiados que não pretendem recebê-la como membro da família, com
a única exceção da esposa do irmão mais novo dele George, que se encanta com ela
e decide tratá-la como sua mais nova amiga de infância. O destaque do filme é
para atriz e cantora estadunidense Amy Adams. Veja mais aqui.
VEJA MAIS:
O amor entre os animais, As trelas do Doro, Sêneca, Aretusa, Reri Grist & Bernadette Peters aqui.
Karen Horney, Manuel Castels, Carmen Miranda, Mônica Waldvogel, Amelinha, Edson Cordeiro & Branca Tirollo aqui.
A primavera de
Ginsberg, Ludwig van
Beethoven, Roberto Crema, Jane Austen, Olavo Bilac, Teatro Medieval, Regina Pessoa, Victor Brecheret, Ana
Terra, Antonio
de la Gandara & Flavia
Daher aqui.
FECAMEPA (Charge do Ivan Cabral que diz: CPMF no bolso dos outros é refresco! ) Deu no Capital Gaucha: "O presidente da Câmara dos Deputados, Arlindo Chinaglia (PT-SP), convocou sessões extraordinárias para terça, 25, às 12h, às 17h e à noite, a fim de iniciar um 'esforço concentrado' para concluir a votação, em primeiro turno, da proposta de emenda à Constituição que prorroga a cobrança da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF) até o final de 2011. Estão previstas sessões pela manhã, à tarde e à noite também na quarta e na quinta-feira". (Leia mais)E também: "INVESTIGAÇÃO TRIBUTÁRIA PODE UTILIZAR DADOS DA CPMF - Para entendimento do Superior Tribunal da Justiça (STJ) é permitido o uso de dados da CPMF para investigar supostas práticas de crime contra a ordem tributária.E foi dessa prática que o STJ se utilizou em julgamento ocorrido neste mês, que rejeitou o pedido de Habeas Corpus do ajudante de pedreiro Márcio Marques de Miranda, indiciado em inquérito policial". (Leia mais)Por causa disso, todo mundo agora quer saber qual o verdadeiro significado para a sigla CPMF:O compositor & engenheiro Felipe Cerquize trouxe logo 3 definições:CPMF - Congressistas no Planalto Metendo-nos a Faca ou Caso de Polícia Merecedor de Perícia ou Cachaporra Parlamentar Magistralmente FornicanteAí o Percy Castanho, presidente do Clube dos Compositores do Brasil: Centenas de Políticos Mamando Felizes O ator Manuel Lima trouxe essa: Corrupção Permanente e Muitas Falcatruase a lindamiga Roserlei Martins Alves foi mais contundente: cu de pobre muito fodidoPor isso já se manifestaram: o artista plástico e ator Rolandry Silvério, Cosme Custódio, Ana Lúcia Félix e muita gente que está reunida num balaio só do Fórum do Guia de Poesia. E mais aqui.
IMAGEM DO DIA
Todo dia é dia da atriz e cantora
estadunidense Amy Adams.
CRÔNICA
DE AMOR POR ELA
Imagem: desenho do escritor de quadrinhos
francês Yannick Corboz