sábado, fevereiro 12, 2022

SAROJINI NAIDU, FULNI-Ô & WANDA WITOTO, ALICE LONGWORTH & RENATA SANTANA

 

 

TRÍPTICO DQP – Ano após outro e mais. – Imagem: ArtLAM, ao som do álbum Cafurnas Fulni-ô (Tratore, 2019), com o Povo Fulni-ô & sua língua mãe Yaathê no ritual Ouricuri. - O que me diz este céu das águas desse rio que corre em minhas veias e era pra festa de passárvores que fugaram das queimadas morro acimabaixo. São nuvens de sombra carregadas de fumaça e fuligem da ganância para roubar o azul da respiração. Conto nos dedos, ano após outro e mais, basta uma mão e nela: dores seculares. Essa a minha herança ancestral, no que sou da terralma, porque tudo é difícil pros meus outros Zés e neurodivergentes, com a teimosia de vida que nos faz ressurretos na tragédia do Fecamepa que se perpetua na iniquidade e na desgovernança coisonária. Nessa escuridão o Canto da Nênia alumia pro dia chegar e trazer a ativista Wanda Ortega Witoto do Parque das Tribos: Estamos muito angustiados com nosso futuro. O indígena tem um desfecho mais desfavorável que qualquer outro grupo brasileiro, se comparar com a população branca e até negra. Tudo aqui é uma grande dificuldade, muita luta, a gente é abandonado. Não se lamenta a morte de indígena no Brasil. É com ela que revigora a força do braço, a coragem no peito e a reverberação da voz no eco de Catarina Eufémia para nos dizer de Olga: Em momentos difíceis é preciso pensar em alguma coisa bonita. Iluminar, iluminar, essa é minha missão e a do sol. Preparar-me para a morte não significa que me renda, mas sim saber fazer-lhe frente quando ela chegue. E entoar o canto para resistir como se ouvisse de Lucille Clifton: Venha comemorar comigo que todos os dias algo tentou me matar e falhou. A poesia é uma questão de vida, não apenas uma questão de linguagem. E se não tenho mais que o espólio de toda desfortuna da gente geral, resta o desterro dos sonhos e a teimosia de viver em nome dos mortos de todas as injustiças.

  


Passos mancos e quejandos ... – Imagem da artista japonesa Tomie Ohtake. - O meu país é a minha cidade engalanada na festa dos prazeres e da ostentação oniomaníaca, com seus contratos e outras escusas dominações. É onde sou tão estrangeiro quanto fotografias desfiguradas pelos que foram apagados da memória das enchentes e da indiferença. Nalguma esquina inadvertida é que encontro fugidios fantasmas e da passagem deles é que me surge alguém para me dizer da escritora estadunidense Alice Longworth (1884-1980): Se você não pode dizer algo bom sobre alguém, sente-se aqui ao meu lado. Eu tenho uma filosofia simples. Preencha o que está vazio. Esvazie o que está cheio. E coce onde coça... Como não tenho para onde ir deixo que ela me leve a levitar sobre o território de onde sou e nem sabia, até ao topo do monte no qual se encontram tantos levados pela LIDIHUS da EERP-USP, porque havia um evento com estudos, reflexões, discussões, pesquisa e extensão, juntando interessados sobre as interações existentes entre o movimento da afirmação dos Direitos Humanos e o Direito à Saúde, debatendo sobre nossos direitos e das crianças e adolescentes, das mulheres e das populações indígenas e das pessoas com deficiência e das LGBTQIA+ e das em situação de rua e das que estão privadas de liberdade e das profissionais do sexo e de toda situação de vulnerabilidade que campeia em meu país. E estão todos pelas calçadas e ruas da minha cidade que é o Brasil inteiro de famélicos atentos disfarçados pela elegância da hora no anfiteatro da praça, em que uma atriz desconhecida recita os versos de um poema, Pecados da mulher, da poetativista indiana Sarojini Naidu (1879-1949): Perdoe-me o pecado dos meus olhos / -oh meu amor- se você ousou por um instante / invadir o querido santuário do seu rosto /com iguarias delícias ardentes e insistentes / como pássaros selvagens e destemidos /que percorrem o sublime templo do céu. / Perdoe-me o pecado das minhas mãos / se eles foram muito ousados / em seu desejo latejante de acariciar / sua carne, abrace -oh meu amor- / e te encher de presentes / tão inumeráveis como as areias / Ó perdoa o pecado das minhas mãos!  Perdoe-me o pecado da minha boca / oh meu amor, se ele te ofendeu / com silêncio ou canção indesejável, / se ele atacou e oprimiu você / e tomou posse dos teus lábios, / Ó perdoe-me o pecado da minha boca! / Perdoe-me o pecado do meu coração / se ele transgrediu contra a voz. / Se você tentou cativar ou violar nosso amor / para apaziguar sua chama / para saciar sua fome, / para aliviar sua dor / de sua profunda tristeza. / Ó perdoe o pecado do meu coração! Os aplausos soaram febris depois da apresentação e não sei se ouviram cada palavra ou se deixaram levar pelo eco do sistema de som apenas por estarem ali. O que é bom é que não estou só, mas como se estivéssemos todos no centro do isolamento de todas as incertezas e nenhum amanhã.

 


Terceiro ato... – Imagem: arte da pintora e gravurista francesa Joan Mitchell (1925-1992) – Sobe o pano da noite e a manhã expõe o cenário de mais um espetáculo a cada dia. Como se eu tivesse este dia e esta manhã foi possível encontrar brecha qualquer, assim como se me permitisse sair de um túnel diário para o que quer que fosse de diferente no cotidiano, pelo menos, por instante fugaz que desse. Não sabia e zis enredos no que sou de um só, a presenciar do alto o que seria uma trilha de formigas dispersas por todas as direções e lugares. Sequer eu sabia de nada, só para me espantar com o movimento porque é possível criar sonhoutros é possível sim. Em um ponto qualquer lá está a saudade da mulher que sinto e vivo do que foi mãe e que partiu para nunca mais. Ela me aponta possíveis formas de viver, a me salvar dos abismos e fracassos, sou abençoado por isso e grato. E era como se minha mãe ressuscitada me dissesse Lou Salomé: A vida humana- Ah! / A vida sobretudo - é poesia. / Inconscientes, nós a vivemos, dia a dia / passo a passo- mas em sua intangível / plenitude ela vive e se nos traduz em poesia. Ah, poesia. E me trouxe na tarde quase noite daquele momento a expressão de Renata Santana que sorria e soltava um verso: nós somos os bandidos molhados. Mais sorriu pro meu prazer com versoutro: você é um deus de plantão no final do mês. E mais que admirado recebi o prêmio máximo dela: estou só / mas estou comigo / quando não resta / mais nada / resta um. E mais um, quando não outro e tantos e quantas. Nunca será demais dizer que só a poesia torna a vida suportável. Até mais ver.

 

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