domingo, janeiro 31, 2021

GALEANO, AVALOVARA DE OSMAN, KAGE BAKER, CARL ORFF & TEREZINHA DO ACORDEON

 

 

TRÍPTICO DQC: DAS CARAS & MÁSCARAS (Releituras de Galeano) - Só a Lua conhece a minha solidão e o meu exílio. Renasço a cada alvorada e vou desfiando a vida e a pele de Deus, enquanto a peste fulmina e o ouro de agora é outro entre os sabidos e valentes que traficam granas e coisas ceifando vidas e manipulando poderes, decapitando esperanças e gangrenando a todos: a fortuna é a glória na festa das posses e do domínio. Aos deserdados o abraço e acolhimento de Pachamama: Lá embaixo da terra, os mortos florescem. Estamos todos no Pelourinho para o espetáculo do poder das retrancas e decepções. É nessa hora que se pode pensar em si, não há mais saída, nem adianta se perguntar o que seria se Benjamim Franklin nascesse mulher como a irmã dele, e Montesquieu não recriminasse a cristandade por admitir que os negros não são seres humanos, e o abade Raynal não abominasse a escravidão, e Rousseau não sentisse vergonha do ser humano diante de todas as ocorrências, e se a América não fosse um continente lavado de sangue e dor – e as veias abertas da latinamérica -, o que seria de nós tão desvalidos no eco iluminista noutras veias que não as nossas de mais de cento e vinte milhões de crianças no centro da tormenta. Não há como ignorar ou fazer de esquecido, não sou surdo aos reclamos da humanidade tácita, nem cego às expressões loucas e vozes múltiplas da realidade, sei do dever das desgraças e do haver das sortes. Melhor seguir as palavras andantes e outras que pinotam aqui e ali para dizer o que não consigo enxergar nem perceber. Nunca perdi tempo em contar o quanto tudo é tão valioso quanto inútil entre a denúncia das sombras e a celebração das luzes: tudo é muito contraditório, surpreendente e perigoso. É a vida. Resta o abraço fraterno, peito amigo, a nossa utopia desgraçada.

 


DOIS: SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS- Imagem do Quadrado Sator, painting by Quioc Laurent - Diante da janela do meu quarto sou o escravo Loreius Abel tentando decifrar a magia do preciso quadrado sator e identificar o palíndromo para alforria. Estou nas ruínas de Pompeia e descobri o que não precisava saber: a cortesã trai o senhor. Ou não consegui entender direito o que deveria ser revelado, só a lamentável constatação de que não importava aprender a desintegrar o átomo se pouco se sabia da realidade e muito menos se avaliava o que ocorre ao redor, ora, ora, se a Raínha dos Cárceres da Grécia ainda imperava sobre a vida de cada um e a indiferença inexorável e a censura política e religiosa roendo a coragem e danificando tudo a volta, ah, era isso: o fiel e a pedra dos nossos dias, uma guerra sem testemunhas. Restava desvendar o mundo pelas nove novenas e o que mais: ninguém pode fazer alguma coisa se não consegue pensar bem o que faz. Enfim, encontrei o Evangelho na Taba no canto do circo, e a busca do amor era uma aventura de alto risco e eu na minha Avalovara, interpretando gestos de outros gestos: a primeira foi Dalmília com seus olhos refulgentes, sua pele ariana... Nela tornei-me o semeador. A segunda foi Merca que sonhava bailarina nua na lua cheia, recitando os Cânticos de Salomão como se fosse Carmende Bizet. Ao encontrá-la tornei-me Arepo, Hapax Legomenon – palavra que aparece uma única vez em determinada língua. A terceira, Alcionélia com seu diário dos desejos e loucuras: nela tornei-me aquele que possui o funcionamento das rodas. E eu havia de decifrar a intersecção entre uma espiral e um quadrado, a tentativa de identificar o nome, os seres e as coisas, a transição do caos ao cosmos. Seguia incólume entre a obra e o artista, a solidão e o que eu não sabia: O criador mantém cuidadosamente o mundo em sua órbita. Eu sabia, não haveria mais saída e Osman Lins me dizia da mísera profissão de escritor: Escrever é um meio, o único de que disponho de abrir uma clareira nas trevas que me cercam. Há sempre um encontro, quer queira, quer não; quando não e nem tanto um reencontro marcado.

 


TRÊS: DA VIDA NELA – Imagem da premiada artista visual portuguesa Paula Rego, ao som da cantata dos Carmina Burana - As canções de Benediktbeuern: Cantiones profanae cantoribus et choris cantandae (1937), de Carl Orff. - Ela não veio ontem, anteontem nem nunca mais e se tornara viva no meu desejo de escritos inspirados no manuscrito encontrado naquele mosteiro dissolvido de Benediktbeuern, com as trezentos e dezoito canções, oito ilustrações e duas peças: a Natividade e a Paixão, algumas delas com notações neumáticas. Foi na leitura do códex com as suas subdivisões em seis partes goliardesca que a fiz minha e eterna: moralia et satírica e eu ria do falso moralismo; veris et amoris, e o amor era o sonho da minha vida; lusorum et potatorum, e imaginava nela por festas orgiásticas; a divina, e eu era Deus no sexo dela; ludi, e brincava nela nua todas as formas prazeres; e supplementum, o que ela inventava em mim para o gozo supremo. Agora que ela não mais apareceu, valia o décimo carme: A morte agora reina sobre os prelados que não querem administrar os sacramentos sem obter recompensas... São ladrões, não apóstolos, e destroem a lei do Senhor. E a procurava entre as estrelas, rincões e lonjuras com o décimo-primeiro carme: Sobre a terra nestes tempos, o dinheiro é rei absoluto... A venal cúria papal é cada vez mais ávida dele. Ele impera nas celas dos abades e a multidão de priores, com as suas capas negras, só a ele louva. Nada mais restava, solitário entre os clerici vagantes que se dedicavam ao vício mundanista e distante da clausura e da vida monástica, cultuando o profano e o licencioso, cantavam para o meu prazer: Ó sorte és como a lua mutável. Sempre aumentas ou diminuis. A detestável vida ora oprime e ora cura para brincar com a mente. Miséria, poder, ela os funde como gelo. Sorte imensa e vazia, tu roda volúvel, és má, vã é a felicidade sempre dissolúvel, nebulosa e velada. Também a mim contagias; agora por brincadeira o dorso nu entrego à tua perversidade. A sorte na saúde e virtude agora me é contrária. Dá e tira, mantendo sempre escravizado. Nesta hora sem demora tange a corda vibrante; porque a sorte abate o forte, chorai todos comigo. A sua ausência dói enormemente e não menor o desapontamento, a ponto de ouvir a voz da escritora estadunidense Kage Baker (1952-2010) me dizer no meio da noite sobressaltada: O que direi ao meu filho, então, se ele tiver dúvidas sobre a vida eterna? Mortais podem ter sido desprezíveis, é verdade, mas não totalmente maus. A única coisa que as pessoas aprendem sendo oprimidas é como oprimir os outros! Bem quando eu pensei que as coisas não poderiam ficar mais estranhas, eu estava errada. Ao lado dela Kenzaburo Oe sorria no seu jeito nipônico: Os mortos podem sobreviver como parte das vidas daqueles que ainda vivem. E mais riu. Não me fazia entender nem entendiam, o que disseram não me acrescentou em nada, até a chegada de Ken Wilber me chamando atenção: Finalmente, a espiritualidade integral - como o próprio nome "integral" implica - transcende e inclui a ciência, ela não exclui, reprime ou nega a ciência. Mais um labirinto e a gente aprende da forma mais dificil. Até mais ver.

 

ARTE DE TEREZINHA DO ACORDEON



A premiadíssima cantora, compositora e acordeonista Terezinha do Acordeon – Terezinha Bezerra Chaves, maestrina da Orquestra Sanfônica de Pernambuco, integrou o grupo Karolinas com K e fundou o Bloco Sanfona do Povo. Ela gravou o seu primeiro álbum Alegria do Sertão (1970) e, em seguida, Terezinha do Acordeon, Alegria do Sertão (1984), Terezinha do Acordeon (1994), Sina de Cigarra (1997), Coletânea (1999), De volta ao Passado (2002), 40 Anos (2006), Seis Ponto Zero (2010), Vai Baião (2012), Um Amor Assim (2014), Se Não For Assim... (2017), afora participações em diversos discos e gravações. Participou também de eventos como a Missa do Vaqueiro e do álbum Pernambuco em Concerto, além do Festival em Estocolmo, na Suécia, em 2005. Veja mais aqui e aqui.

 



sexta-feira, janeiro 29, 2021

GRAZYNA MILLER, PIERRE SANSOT, NICK HORNBY, JACOB BAER, SOFIA HULTÉN, HELTON & VERTIN

 

 

TRÍPTICO DQC: QUADROS DO ENSAIO (LENDO BOULEZ) - Ao som de Répons - dois pianos, harpa, vibrafone, sinos, címbalo, orquestra e eletrônica (1980-84), de Pierre Boulez, Ensemble intercontemporain, conduct Matthias Pintscher. – Solidão, ah, solitude: as lembranças no pequeno cortejo dos antepassados, um diálogo de sombra dupla para quem experimentou as necessidades da época, a minha e dos demais. Sou eu, perfil único e insubstituível, e outro eu mesmo dos muitos eus que sou na fluidez dos devires. Se poesia, não sei; ausência, álbum em cotejo. Não sei com precisão, solto rabisco no imprevisto um esboço de mensagens de nenhum sentimento, o que me toca e toco, o conflito, fragmento, e sucessões de pedaços de mim se revelam na narrativa escorrida a disparar ao incerto, porque eu dobrei de acordo com a dobra do rosto nupcial, um martelo sem mestre e o inconcluso. Nem a morte, a vida. Renasço e persigo o que toco e me toca, mesmo que seja só entre indiferenças e incompreensões, mediocridade no varejo. Recomeço sempre e saio jeito que for por aí e o que disse o antropólogo francês Pierre Sansot (1928-2005): Ai dos seres mundanos que brilham em suas réplicas, que não se aprofundam, que se expressam com respeito natural! Cada um de nós está ameaçado pela contaminação do já dito, do já visto, do já sentido, cuja escrita parece tão fácil. Não se pode dizer, portanto, que escolhi existir pelo tédio, mas antes que o tédio constitui para mim um meio de usar o mundo com lealdade, de me aproximar dele, de renunciar a ele, de tentar de novo saboreá-lo. O que não sei, mesmo assim, o dedo aponta e vou se não tiver o que precise dizer. Digo e pronto, está feito, saiu, escapou. Se em silêncio, escuto o escritor inglês Nick Hornby: Todo mundo sabe como falar, e ninguém sabe o que dizer. A vida pode ser dramática para qualquer um; não é preciso ser viciado em drogas ou poeta para experimentar sentimentos extremos. Você apenas precisa amar alguém. Sim, o amor é a vida. E amo e até demais da conta, aprendo e reaprendo e sigo adiante até que a noite governe o reino dos sonhos perdidos.

 


DOIS: ASSIM, SEM PERDER A TERNURA - Imagem: Ninfa, aquarela sobre marfim (1898), do pintor, ilustrador e fotógrafo estadunidense William Jacob Baer (1860–1941), ao som das Cartas Celestes, de Almeida Prado, na interpretação do pianista Fernando Lopes - Dadinha menina nem se deu conta e debutou, olhos se encheram nela. A mãe, Predestinação de Ascenso, coração na mão: Valei-me meu Jesuisinho! E ela, aceno pra vampirada que subia a ladeira só pra vê-la e amolar os dentes: colírio aos olhares atrevidos. Prevendo o pior, a genitora pegou a danada e levou pro coronel tirar o cabaço: Antes que seja tarde demais, melhor pro ganho! Ela freou: Vou não! O grandão quase teve um troço: Te pego, safada! A mãe: Mas, minha filha... E tanto rodou, ele e uma tuia de marmanjo tudo aboticado atrás das suas pegadas e tudo o mais dela. Nem, nem. Ela crescia e se fazia robusta esperando seu príncipe encantado, coitada, enquanto o juízo da marmanjada maldizente fugia pro mocotó: Ela me paga! Aí ela deu um breque: engraçou-se por um parrudo e contraiu núpcias, assim, sem mais delongas. Está feito. Coração materno aos prantos por todos os devotados e mãos pendentes. O escolhido além de não ter onde cair morto, não aguentou o repuxo e bateu as botas: enviuvou pra repúdio das senhoras e pretendentes. Trancou-se para se livrar da fúria alheia: Sou gente, não sou objeto. Se passasse na rua, ou era desaforo, ou era lábia injuriada. Amadurecia na preferência pelo altruísmo, mesmo sob todas as condições adversas. Deu-se então uma enchente e toda cidade teve que subir o morro, lá só ela e a mãe solidárias. O povo reticente virou-lhe as costas, mal-agradecidos: Dessa nem mesmo pintada a ouro. Recusavam-lhe dádivas, odientas de sua boa vontade. Mais dia, menos dia, nada da água baixar, a ruindade se acovardava e já achegavam aos mimos dissimulados. Mantimentos em socorro chegaram de fora, general condicionou a assistência: Haverá fartura para todos se com ela me casar! Ela fitou o desafiante, fez careta e disse não. Foi-um-deus-nos-acuda! Que mulher mais ranzinza! Tantos paparicados, promessas e louvações. Lá vai ela ao cadafalso depois de todo tipo de pedintório geral. Diante de tantos rogos, cedeu. O graduado nela pintou e bordou, mas quando se fartou: Já sou casado! E zarpou. Ela lá ficou. E o que era paraíso voltou a ser o inferno de antes, como se ela fosse a Bolo de Sebo de Maupassant ou Geni da ópera do Chico. A vida tem dessas coisas e dela jamais perder a ternura.

 


TRÊS: CRÔNICA DE AMOR POR ELA - Imagem: arte da premiada artista sueca Sofia Hultén, ao som da Hungarian Fantasy, do compositor e flautista ucraniano Albert Franz Doppler (1821–1883), na interpretação da flautista israelense Sharon Bezaly, no Flute Festival Korea (2017). – Ontem ela não deu as caras, nem anteontem. Para quem dava o ar da graça todo santo dia e o dia todo, entra e sai, vai e volta, agora era um castigo daqueles de não se saber qual a culpa ou dolo. Foi. A porta se abria, não era ela. Era Germaine Greer: A tristeza é a matriz da qual surgem o humor e a ironia; a tristeza é desconfortável e criativa, razão pela qual a sociedade de consumo não pode tolerá-la. Se pudermos encontrar meios de colher a energia da dor oceânica das mulheres, moveremos montanhas. Ficou do lado acompanhando meus passos. Da janela, outros passos na calçada. Era a escritora polonesa Grazyna Miller (1957-2009): Entre a vida e a morte - um horizonte. Abraçando Ontem e Amanhã - não sabia que você era o meu Hoje. Precisamos de um caminho: o caminho do amor. Sim, o caminho do amor e o pior era a solidão do abandono. Ao lado dela apareceu Colleen McCulough sorridente e contando uma história: Existe uma lenda acerca de um pássaro que só canta uma vez na vida, com mais suavidade do que qualquer outra criatura sobre a Terra. A partir do momento em que deixa o ninho, começa a procurar um espinheiro, e só descansa quando o encontra. Depois, cantando entre os galhos selvagens, empala-se no acúleo mais agudo e mais comprido. E, morrendo, sublima a própria agonia e solta um canto mais belo que o da cotovia e o do rouxinol. Um canto superlativo, cujo preço é a existência. Mas o mundo inteiro para para ouvi-lo, e Deus sorri no céu. Pois o melhor só se adquire à custa de um grande sofrimento. Comovente história para um pássaro ferido como eu, as três riram e me pediram para cantar da Crônica de amor por ela. Até mais ver.

 

ARTISTA, DE HELTON & VERTIN



Esse álbum tem uma coisa viva, visceral, orgânica. Muita música ficou do jeito que foi cantada de primeira, respeitando muito a expressão e a emoção daquele momento em que foi gravada. Não tem muitos elementos, mas muita expressão. Fizemos esse disco totalmente independente de governo, mas muito dependente das estratégias de como fazer... e dos amigos também, de pessoas que a gente admira e que a gente queria ali.

O álbum Artista (2020), dos multiartistas irmãos Moura, Helton & Vertin. Helton Moura é cantautor, ator, instrumentista, diretor musical e artístico, autor dos álbuns Maquete Sonora (2010) e Círculo, ao vivo (2017), atua no teatro e no cinema, além de já ter participado de shows, saraus e festivais, como Fliporto, Recitata, Sesc Pompeia/SP, FIP, FLIOS-IlhéusBA, Pernambuco Nação Cultural, EXPOIDEA, entre outros. Vertin Moura é cantautor, poeta, ator, compositor, estudante de Filosofia da UFPE, é autor do livro Maria; Duo Artista e Filhosofia (2012), do álbuns musicais Filhosofia (2012) e Pássaro Só (2018).Imagem: arte (capa do CD) da artista visual Cyane Pacheco. Veja mais aqui, aqui & aqui.


 


quinta-feira, janeiro 28, 2021

HAROLD PINTER, DINO BUZZATI, ARNALDUR INDRIÐASON, SERBIN, POLLOCK & CÍCERO DIAS

 

 

TRÍPTICO DQC: UM PASSO DE CADA VEZ NA FOGUEIRA DO MUNDO (PARAFRASEANDO JACKSON POLLOCK) - Ao som do álbum Torcendo a terra (2017), do violonista Ricardo Herz Trio. - Escrevo. Escrevo sem rascunhos. E, para falar a verdade, não estou bem certo do que escrevo. Só escrevo. Só depois de pronto, às vezes, vejo. Não sei bem o que faço, sei que escrevo, e isso é só, apenas. Essa a minha forma de existir, escrevo porque é a minha vida, meu ato de estar só e viver. Deixo correr, minha cabeça é uma bagunça, depois organizo, ou deixo como estiver. Tento ordenar, mas deixo que flua livre e tão somente. Assim abordo o minúsculo mundo ao meu redor; tentando, a partir dessa miniatura, enxergar tudo que há pelas imensidões, o que há e não. O que invento pode ser tido por perturbador: é o que me sai, talvez seja um monstro ou muitos o que habita em mim, os meus tantos e muitos eus e as suas brincadeiras de criança. Apenas brinco como o menino que sempre fui e nunca deixei de ser. Talvez tenha uma noção geral, o resultado é imprevisível. Só se sabe do que se brinca e eu brinco só. Não tenho amigos: o de verdade sabe de tudo que pensamos com uma única palavra, mínima frase. O que falo ninguém entende. Hoje as pessoas me entediam e, às vezes, me assustam, muito embora tenha visto muita coisa de arrepiar. Chegou uma hora que não conheço mais ninguém, coisas que vi de me fazer ficar na concha. O ser humano é mesmo muito estranho. Cada coisa! Não sei o que realizei, acho que nada, ou se algo, com certeza, nada demais. Não importa quantas palavras sejam jogadas ou ditas, vale apenas o que ficou dito, isso por bem ou mal. Tento contar uma história. Nunca temi nada, nem de mudar, iconoclasta sou, isso eu sei de mim. Não ligo pra moda nem pra convenção disso ou daquilo, não há o que me representa nem quero representar nada. A literatura é uma forma de morrer, como toda arte. Pra falar a verdade ainda nem sei mesmo da literatura porque não escrevo a natureza, eu sou ela, minha autodescoberta. Escrevo o que sou, meu estado de ser. Como só sei o que sou, não sei o que gostaria de ser. Sou um eterno estudante e ouço Pollock dizer: Amor é amizade transformada em música. É isso, em tudo que faço e vejo e toco e sinto: há muita música.

 


DOIS: CELEBRAÇÃO DE NADA - Imagem do pintor expressionista abstrato americano Jackson Pollock (1912-1956), ao som da Symphony nº.1 in D-major (1901), do compositor, violinista, maestro e teórico mexicano Julián Carrillo (1875-1965), com a L'Orchestre Lamoureux. - Da minha janela posso ver: estão todos à mesa num salão sofisticado, o palco para o absurdo, a arena para o ritual de agressões: a fala oculta sentimentos, uma batalha corrosiva para provar que cada um é melhor que o outro. Há quem comemore aniversário de matrimônio ou sucesso pessoal. Há quem felicite as bodas escondendo a grosseria insensível e a afetação vulgar, afora relacionamentos incestuosos. Há quem destile asco pelos perdedores e fracassados, fedorentos miseráveis. Há quem julgue aquelaquele segundo seu próprio juízo. Há muito mais e entre eles não se economiza sarcasmo e agressão, assim entre endinheirados individualistas e solitários, entre os que se acham melhores e os estúpidos, uns aos outros a se meterem na vida alheia para suprir suas próprias falências. Que haja maitres e maitresses solícitos e sorridentes para servi-los e quantos garçons, inclusive um mitômano para interferir com as façanhas avoengas e soltar pilhérias para risadagem folgada. Há quem se embriague senão todos nas embaraçosas situações, quanta alienação e hipocrisia, o ridículo e a estupidez, a superficialidade e o esfacelamento das aparências, a cumplicidade na mentira. Entre si o que é o mundo? O que você fizer dele, joga no ventilador. O sentido da vida? Nenhum, afora o escracho de ter o que tem sobre os que nada possuem, matando de inveja. Quanta falsidade, tantas obsessões, sexo, dinheiro, poder, o desrespeito consigo próprio e com os outros é muito maior. Não há razão para direitos humanos, nem necessidade de liberdade de pensamento, todos donos da razão e os demais equivocados. Celebrar o quê mesmo? O fracasso humano e do mundo. A saída? Só a imaginação. É o que sugere o dramaturgo, ator, poeta, roteirista, ativista político britânico e Prêmio Nobel de Literatura de 2005, Harold Pinter (1930-2008), na sua Celebração (2000): Não existem distinções rígidas entre o que é real e o que não é, tampouco entre o que é verdadeiro e o que é falso. Uma coisa não é necessariamente verdadeira ou falsa; ela pode ser verdadeira e falsa ao mesmo tempo. Às vezes você sente que tem a verdade de um momento nas mãos, então ela escapa pelos seus dedos e se perde. Eu acho que nós até comunicamos muito bem, no nosso silêncio, no que não é dito, e que o que ocorre é uma evasão contínua, enquanto tentamos desesperadamente manter-nos a nós próprios para nós próprios. A comunicação é muito alarmante. Entrar na vida de outra pessoa é algo assustador. Divulgar aos outros a pobreza que está dentro de nós é uma possibilidade muito assustadora. O passado é tudo aquilo que você lembra, imagina que se lembra, se convence que se lembra, ou finge que se lembra. Para mim, nenhuma celebração possível. E José Martí me diz severamente: Quem não se sentir ofendido com a ofensa feita a outros homens, quem não sentir na face a queimadura da bofetada dada noutra face, seja qual for a sua cor, não é digno de ser homem. Uma pitada de poesia é suficiente para perfumar um século inteiro. Sim, só a poesia tornará a vida suportável.

 


TRÊS: AMANTE NA VIDA SEM FRONTEIRAS - Imagem: arte do fotógrafo estadunidense Vincent Serbin, ao som Concert Live at Colorado Brazil Fest 2014, do compositor, arranjador, professor e violonista Alessandro Penezzi. - A ausência dela, o que me faz falta, há dias não aparece. Ela ainda não chegou, nem sei se virá. Talvez, nunca mais. Não sei. Na solidão ouço o escritor e jornalista italiano Dino Buzzati (1906-1972): Tudo se esvai, os homens, as estações, as nuvens; e não adianta agarrar-se às pedras, resistir no topo de algum escolho, os dedos cansados se abrem, os braços se afrouxam, inertes, acaba-se arrastado pelo rio, que parece lento, mas não para nunca. Acreditamos que à nossa volta existem criaturas semelhantes a nós e, ao contrário, só há gelo e pedras que falam uma língua estranha; nos preparamos para cumprimentar um amigo, mas o braço recai inerte, o sorriso se apaga, porque percebemos que estamos completamente sós. Os homens, ainda que possam se querer bem, permanecem sempre distantes; que, se alguém sofre, a dor é totalmente sua, ninguém mais pode tomar para si uma mínima parte dela; que, se alguém sofre, os outros não vão sofrer por isso, ainda que o amor seja grande, e é isso o que causa a solidão da vida. Olho a janela, imagino a porta se abrindo e ela se achegando como costumeiramente. Acho que não será dessa vez. Lembro o que me dissera Ismail Kadaré: Podemos escavar com facilidade o seu solo, mas penetrar sua alma, isso jamais. A minha está com todas as demais, eu sinto, sou todos e sinto essa imensa solidão desde não sei quando. Foi o que me disse o escritor islandês Arnaldur Indriðason: A história da humanidade nada mais foi do que uma sucessão de crimes e infortúnios... Bem, é também uma sucessão de mentiras inteligentemente construídas. A verdade e as mentiras são apenas meios para um fim. Sei disso porque vivi tudo isso, está em mim, minha pele, meu coração, minha vida, desde sempre. Sou do primevo ao que acabou de nascer, seu choro arrebentando o futuro que começou agora acordando a noite. Só sinto a falta dela, não apareceu e fiquei só no mundo. Até mais ver.

 

A ARTE DE CÍCERO DIAS



Num clarão estranho, rompendo tudo, num ruído metálico de suas grandes asas, os poderosos arcanjos vão paliando pelas costas do Nordeste os corais. Corais e mais corais. Belos, rosas, vermelhos. Sabiam da luz das estrelas. Estrelas cadentes, bem vivas, a mostrar o caminho da vida eterna. E, ao abrigo de uma esfera celeste, colorida de um azul de anil, as formas e as cores se ajustavam.

A arte do pintor Cícero Dias (1907-2003). Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui & aqui.

 



quarta-feira, janeiro 27, 2021

SALINGER, LETICIA SEKITO, SACHER-MASOCH, DI NICÁCIO & BETA FERRALK

 

 

TRÍPTICO DQC: A UTOPIA DO TEMPO - Ao som do Concerto for Piano and Orchestra nº. 21 in C major, K.467, de Wolfgang Amadeus Mozart, com a pianista sul-coreana Yeol Eum Son with the New York Philharmonic and Lorin Maazel (2018) – Para quem de manhã soubesse o caminho do Sol e tivesse apenas a força das mãos e da alma no corpo talhado por cicatrizes de golpes ininterruptos e queimaduras de guerras perdidas, feridas do sangue que não se estanca, só me resta por alimento o tempo decorrido com todos os sentidos e ambiguidades, como um encurralado porque nada é o que parece nessas horas agudas de desgoverno, o que me faz ficar pronto para ir embora a qualquer momento seja qual lugar. Para quem de tarde o mormaço lavasse a face e escorresse pelo corpo cansado de nenhum abrigo, porque nem todo dia é dia de mesmo até que algo aconteça e tudo mude de figura ou fique na mesma, ninguém sabe, o inesperado e o previsível se confundem, como se restasse apenas a vida de menino abandonado à própria sorte, para sobreviver pelos descampados e selvas como renegado do mundo dos homens e desse com a foca branca de Kipling a procurar um lugar sem caçadores. Para quem de noite fugisse do senso comum como se não aguentasse mais a mesmice e soubesse a sombra saindo do curso a ir por ali e eu por aqui até depois ou não sei quando, Olimpo ou Hades, se no chão me sobrasse o sonho de quem ascendesse aos céus por galáxias, depois de sepultado na cova rasa para virar estrela e a ressurreição iluminar as portas e janelas abertas do itinerário perdido por ventanias que vergam tudo no mundo dilacerado e eu vagandimundo quase incapaz de imprecar com os braços alvoroçados o prenúncio de um novo dia. É a hora de empreender o caminho de volta. E nesse retorno ouvir de John Updike que: Os sonhos tornam-se realidade. Sem essa possibilidade, a natureza não nos incentivaria a tê-los. Mas que sonhos me restam além dos pesadelos de existir nessa calamidade sem explicação e Lewis Carroll reiterasse que: A melhor maneira de explicar é fazer, e eu sem saber o quê no meio do passado, presente e futuro no feitiço do isolamento e a queda inevitável.

 


DOIS: A QUEDA DO LEPRECHAUM – Imagem: A queda (2017), do artista visual Di Nicácio, ao som da Sinfonia Popular (1956), de Radamés Gnatalli, com a Orquestra Sinfônica da Universidade Estadual de Londrina diretta da Norton Morozowicz – Ali onde o chão treme vez em quando e por que será, se a planície se encolhe e nada acontece de visível, e o Leprechaum me diz se eu atirar a flecha na terra eu acho outro mundo carregado de tesouros. Não levo a sério, nem poderia, mas o Leprechaum insiste que se eu quiser achar uma botija bem grandona, é só atirar uma flecha certeira dela entrar chão adentro e, ao puxá-la, abrirá uma fenda e eu terei a surpresa de encontrar todas as riquezas do mundo. Depois de muito insistir o Leprechaum, assim o fiz: peguei do badoque com flecha ajeitada, mirei bem na ladeira do barro mole, fiz força e atirei. A barreira mexeu parece que sentiu o golpe, abriu-se uma fenda que parecia outro mundo lá embaixo. Guardei o segredo, mas o Leprechaun já sabia e logo começou a me atentar: Vai aparecer um arco-íris e vá lá ao pé, tem um tesouro! E se descer pela fenda terá toda riqueza do mundo. Quando foi embora, a Mãe Terra e o Pai Sol chegaram e me disseram que devia casar e libertar as mulheres de um povo aprisionado na escuridão. Ouvi tudo quieto, havia, sim, de obedecer. Tão logo findaram e foram embora, surgiu um lindo arco-íris que emergiu da fenda aberta pela minha flechada. Tentei me ajeitar e por ela desci. A certa altura, escorreguei e caí. Foi quando ouvi do escritor estadunidense J.D. Salinger (1919-201): Esta queda para a qual você está caminhando é um tipo especial de queda, um tipo horrível. O homem que cai não consegue nem mesmo ouvir ou sentir o baque do seu corpo no fundo. Apenas cai e cai. A coisa toda se explica aos homens que, num momento ou outro de suas vidas procuram alguma coisa que seu próprio meio não lhes podia proporcionar. Ou que pensavam que seu próprio meio não lhes poderia proporcionar. Por isso, abandonam a busca. Abandonam a busca antes mesmo de começá-la de verdade. Tá me entendendo? Sim, quase entenderia não fossem duas coisas: o sumiço de quem dissera e as desconfianças do engodo em que me metera, sabia lá o que havia de lá embaixo encontrar, ora.

 


TRÊS: A DANÇA DO ARCO-ÍRIS – Imagem: a arte da coreógrafa, dançarina e performer, Leticia Sekito, diretora da Companhia Flutuante, ao som da canção Somewhere Over the Rainbow (E.Y. Harburg / Harold Arlen), witch violinist Anne Akiko Meyers and pianist Anton Nel, live in the Fraser Performance Studio at WGBH in Boston (2013). – A queda e aquele lugar desconhecido, meu corpo carregado de dores. Arrastei-me até um tronco e ali me encostei para melhor tomar pé da situação. O lugar era bonito e, apesar de ignota, me era aprazível. Depois de passar a vista por toda a extensão, deu para perceber lá longe alguém que vinha. Sim, aquela presença incerta me animou e, ao que parece, era uma mulher e dançava. Com dificuldade fui me levantado e me mantive encostado até que ela se aproximasse. Qual não foi a minha surpresa: era ela e ali estava, lindíndia, tão surpresa quanto eu. Convidou-me usando d’As Leis ou da legislação e epinomis de Platão: ... enquanto todos os outros animais carecem de qualquer senso de ordem ou desordem nos seus movimentos que chamamos de ritmo e harmonia, a nós os próprios deuses, que se prontificaram a ser nossos companheiros na dança, concederam a agradável percepção do ritmo e da harmonia, por meio do que nos fazem nos mover e conduzir nossos coros, de modo que nos ligamos mutuamente mediante canções e danças; e o nome coro provém do júbilo que dele extraímos. Isso não era um convite, era uma convocação. E mais: enquanto ela rodopiava apareceu-me repentinamente Sacher-Masoch: O amor não conhece virtude ou mérito; ele ama, perdoa e tudo sofre, porque deve; nosso julgamento é inútil para o amor; nem as preferências nem os defeitos que descobrimos provocam nossa abnegação nem nos fazem recuar de medo. Tão logo terminou de dizer, sumiu. E eu me deleitei com a dança do arco-íris naquela mulher paradisíaca. Até mais ver.

 

A ARTE DE BETA FERRALK



A arte da artista visual Beta Ferralk. Veja mais aqui e aqui.


 


terça-feira, janeiro 26, 2021

PUSHKIN, ARIADNA GIL, DÁMASO ALONSO, MANUEL LOPES, ALLEGRAIN, JACQUELINE DU PRÉ & OLARIA OCRE

 

 

TRÍPTICO DQC: UMA VEZ E SEMPRE, PAISAGENS DO SILÊNCIO – Ao som de Te Deum, do compositor João de Deus de Castro Lobo (1794-1832), com a Orquestra de Câmara e Coral Pró-Música de Juiz de Fora sob a regência de Nelson Nilo Hack – Meu coração é Fátima desde menino e ela caçula nas presepadas da gente – Eu&Maikim&Marcelo os danados do último quarto que só paravam de trelar com os bregues de Sônia&Deínha, porque Carma ria & Pai Lula mangava. Quando não era Beco contando histórias do outro mundo e ela corria menina para nossa risadagem e crescia moça feita pra brincar com Genésio-a-mulher-do-vizinho e foi um tempo tão bom de nunca mais voltar. Ela aprendeu o Tempo de amar pelos Madrigais e outras das vozes de Marquinhos, até o Porto Solidão que a gente quase chorou Sob o céu de Palmares. Hoje esse dia nublado do ano da graça de já nem sei quanto, revejo a entrevista e arte porque Heitor & Pablo cresceram tanto de se agigantarem e não sobrou quase nada do que éramos para conversar com Paulo e ficarmos só da lembrança de retratos e risos, enquanto releio os originais de Relicário das lembranças, com as poéticas de amor da alma de poeta com a gente da minha terra nas noites ensolaradas. Quase ouço Antonio Callado: Quando Deus nos encaminha àquilo que temos capacidade de amar com maior verdade, está nos encaminhando a ele próprio. Sem dúvida Ovídio: Não é a arte que faz vogar os barcos rápidos com o auxílio da vela e do remo? Que guia na carreira os carros ligeiros? A arte também deve governar o amor… Não abandona em meio caminho tua amante, desfraldando sozinho tuas velas. É lado a lado que se arriba ao porto, quando soa a hora da volúpia plena e, vencidos a um só tempo, jazem a mulher e o homem lado a lado. Foge ao medo que apressa, à obra furtiva. E de lá distante Sêneca: Nisto erramos: em ver a morte à nossa frente, como um acontecimento futuro, enquanto grande parte dela já ficou para trás. Cada hora do nosso passado pertence à morte. De resto, Kant: Se vale a pena viver e se a morte faz parte da vida, então, morrer também vale a pena... Hoje sou Fátima no coração mais do que nunca e é dela o que fomos para o que seremos no amanhã de nem saber.

 


DOIS: CEGO SEM GUIA & A DOIDA DA HORA – Imagem: Nude Bathing Venus Statue, do escultor francês Christophe-Gabriel Allegrain (1710-1795), ao som do Cello Concerto, de Dvořák, com a violoncelista britânica Jacqueline du Pré & a London Symphony Orchestra, regência de Daniel Barenboim. – Quem vem lá? Era Zé cego às voltas com Sadoida da beira do rio que corria aos ventos, saia solta na cabeça, segurando uma enfieira de caranguejos. Essa doida é minha sina! E lá ia ela pisando na palha da cana e por cima dos pés da macaxeira, Ô doida aluada boa! Ah, se eu visse! E remexia nos flandres de lata a deitar no chão para sentir as pisadas dos pés das moças cheirosas, virada de copo do vinho de jurubeba do mundo rodar e ele: Vem cá, minha nega. E mais se ajeitava para ela, chega enchia a tripa gaiteira e tome póin, póin, a cair na punheta resmungando: Vem cá, minha linda, vem cá! Tome uma garapa, mô fio, pressas coisas passar! Ah, destá, tu me paga, desgraçada, vou botar no teu toba de tu chega gritar, ah, se vou, sou bagaço de gente, mas sei fazer direitinho, visse? Bastava ela passar da feira com perdas e ganhos de cada tolda a pedir quero disso e daquilo e ninguém dava trela, só Zé Cego que dizia: Vem cá, Sadoida, vem cá que te dou tudo, mulher! E ela respirava fundo, prendia o fôlego e falava fanhosa: Tu vai me dar o que, hem? Vem cá que te dou de tudo no frevo, levo pro maracatu, a gente cai no xaxado, casa, comida e roupa lavada! Eu, hem, vai só me enrolar! Vou não, sua catraia, vem cá, segura o baião que eu quero foder você todinha, quenga! E ela se ria e chegava pra perto ralando coco para fazer beiju: Eu quero beiju e beijar tu, mulher! E mais ria com um caldo de cana: Toma! Ô coisa boa! E ele puxava enquanto ela espremia nas coxas desnudas o milho para as pamonhas e canjicas do seu paladar, com os guardados tudo de fora: Deixa eu ver? Mas você é cego, ora! Vejo só em pegar. E pegava mãos buliçosas, enquanto ela oferecia um refresco de limão: Beba aqui! E ele deitava entre as pernas dela e sorvia o caldo que escorria do rego dos peitos pelo umbigo até o encontro dos lábios dele no sexo dela feito uma bica estrepitosa de ais e uis a fazer cosquinha no pinguelo dela de chega quase ter um piripaque de se tremer toda com o bico dos peitos empinados e toda arrepiada na pele fresca: Chega pra cá, minha doçura! E ele largava a viola e se esfregava nela que revirava os olhos, pegando no bico da chaleira e cheia de choques de quase clarear tudo, arriada na vara dele a bulir feito quem vai trotando pra cima e pra baixo, Ai, meu Jesus! E ele a usá-la na faca cega, gemedeira boa: Chupa o melaço do meu pau, vai! E ela chilepte com cada beiçada dele quase sumir de vez, era uma pisa de linguada dele gritar alto, era cada bocada dele chega se esvair inteirinho: É disso que eu gosto! E ela: Eu também, eita chambrego bom! E era cada peiada dela apitar mais que usina na safra, cada tacada como quem passa ferro e manda ver nas dentadas, era cada empurrada dela ficar doidinha demais da conta e a pedir mais e tome lapada de cabo a rabo, u-hu! Vira cá esse pé de rabo que eu quero fazer uma feira boa, vai! E ali os dois se engalfinhavam e findavam estirados no terreiro a passar pelos dias sem nem saber que dia era e o fim do mundo a cada instante: Não peida, homem, que isso é feio, piada de mau gosto! E ele se ouriçava de deixá-la pingando nas partes de baixo e mais que elevada à vigésima potência: Sou lá arraia-miúda, vou lhe estrompar, cachorra da moléstia! Ai como é bom! Não vá emprenhar, sua besta! E depois ficavam por ali como quem não quer nada, um à cata um do outro, até o dia que ele desconfiou: ela deixava os guenzos lamber suas intimidades afogueadas chega gemia sem conta e ele ouvi-la dengosa: O que é isso? O cão rosnou e quase mordeu sua mão: Isso é traição. Que é que é isso, velho? Sou mais tua não! Pouco importa! E ela se foi. Ele ficou triste feito no poema de Alexander Pushkin: Amar? Para quê? Por um tempo, não vale a pena. E, para sempre, é impossível. Abatumado, saiu de perto e foi para longe, tudo ficou tão quase, ela tornou-se de pedra no seu coração: Salve a vida que ao pó voltaremos.

 


TRÊS: LÍRICAS DA BELLE EPOQUE – Imagem: cena da atriz espanhola Ariadna Gil na comédia dramática Belle Epoque (1993), do cineasta Fernando Trueba, ao som de Johnny Smith Plays (1955), do compositor estadunidense Jimmy Van Heusen (1913-1990) – Vinte palavras trocadas e uma noite, digo uma vez e sempre, ela de farda, bigode desenhado sobre os lábios, quepe de ordens a me fazer vestes de mulher ao seu mando. Lá estava eu saia longa, blusa de rendas, salto alto e um bote à deriva do seu querer. Puxa-me pela mão e me leva pra dança: um tango e todos os olhos inquiridores no salão. Ela abusava mandona e pisava meus pés, sou-lhe mais que servil, tímido e contido, faço suas vontades. Leva-me pra rua e me quer só seu, indignada com o beijo de uma das quatro filhas charmosas do fazendeiro, e ela a quem me tem por anarquista desertor espanhol na terra solitária, o desafio era ali dela porque amo a viúva Clara, a sonhadora Rocio, a ingênua caçula Luz e ela, a lésbica Violeta... Não pode, Fernando! Pode. Art nouveau e saias, o êxodo rural e o divertimento dos cabarés, o telefone e o telégrafo sem fio, a bicicleta e o cinema, o avião e o automóvel, os cafés-concertos e as óperas, e aos sonhos daquela noite ela me leva pra fora, ganhamos às ruas e ela me oprime com um beijo ao pé da escada: Suba! E lá vamos para o sótão repleto de feno, ela me empurra, caio deitado no feno e desabotoa o blusão expondo a blusa negra por baixo, arreia as calças e monta sobre meu sexo catado entre suas mãos e cavalga, corpo a corpo e a outra metade que sou todo dela, e se serve de mim, apossada, imperiosa, me obriga deitado a servi-lhe de refém e vou mãos aos seios, blusa levantada, seminua e goza feliz para recitar Tempo de vida do poeta espanhol Dámaso Alonso (1898-1990): Peguei em minhas mãos / um punhado de terra. / O vento da terra estava soprando. / A terra voltou à terra. / Você me segura em suas mãos, eu / sou a terra. / O vento sopra / seus dedos, há séculos. / E o pequeno punhado de areia / - grão por grão, grão por grão - / o grande vento o leva embora. E lhe respondo com Cais do poeta cabo-verdiano Manuel Lopes (1907-2005): Nunca parti deste cais / e tenho o mundo na mão! / Para mim nunca é demais / responder sim / cinquenta vezes a cada não. / Por cada barco que me negou / cinquenta partem por mim / e o mar é plano e o céu azul sempre que vou! / Mundo pequeno para quem ficou... E mais me beijou e mais se satisfez, digo uma vez e sempre: é ela na noite que sou o dia que é dela. Até mais vez.

 

OLARIA OCRE & MESTRE BAIXINHA



O livro Olaria Ocre (Independente, 2008), de Joelson Gomes, Manoel Dantas Suassuna e Roberta Guimarães, artistas que ocuparam a Olaria do Baixinha, de Tracunhaem, e fundiram suas obras em um único objeto gráfico encadernado, condensando imagens e informações produzidas durante a estadia. A obra foi elaborada por uma equipe editorial, conduzida pelo designer Carlós Amorim, com a apresentação do material produzido pelos artistas e pela fotógrafa, em formato de livro, e texto de Luzilá Gonçalves, além das análises dos críticos de arte estrangeiros Mónica Carballas e Kevin Power. Veja mais aqui e aqui.


 


segunda-feira, janeiro 25, 2021

ORHAN PAMUK, PEPETELA, ROBERT BURNS, SÉRGIO FERRAZ, MARTA ROCA & EVGENIYA ABRAMOVA

 

 

TRÍPTICO DQC: SENTIDOS DO SER & OS MISTÉRIOS DO ESPELHO - Ao som do concerto ao vivo do violonista e compositor Yamandú Costa, em Boulder, Colorado (2016). – De manhazinha me achava pronto para ganhar o mundo, protagonista de um filme em cartaz tantas vezes visto e revisto e veja só o que me aconteceu. Sabe aquele dia em que tudo pode acontecer e dá-se assim mesmo, de levar um bocado de tempo pensando como é que não tomei a iniciativa certa, evitando o desagradável e ficado na cama com a sensação de ter perdido o que podia ser a chance de ouro e dali em diante tudo seria diferente, né não? Poderia, suponho: encontrar uma cartela de prêmio extraviada e ficar rico de uma hora para outra, ou cair num buraco de sair pelos esgotos me relando de quase morrer no Japão, qual. Ou dar de cara com uma sensual ET tarada que zarpasse comigo para galáxias distantes dessa loucura toda ou ficar quieto na parada da condução, encostado num poste e dois carros se chocarem no cruzamento e um deles me alcançar desavisado estendido lá longe entre a vida ou a morte, foi assim mesmo. Ou aparecer ressurreto Jesus aos brados contra os equívocos cristãos, insistindo em negar ter sido mais de três vezes: não sou, nunca fui, nem serei; ou ser levado pela desobediência civil de uma turba desvalida de squatters e okupas com máscara do Fawkes e palavras de ordem da memória ceciliana do Lima Barreto e das notas de Chomsky, contra a gentrificação e o desperdício descartável do consumo desenfreado, e a favor do amor livre, nenhum governo e coisa tal! Ou sei lá mais o quê, afinal, ou se mete pro que der e vier, ou deixa correr que não estou nessa de sair à toa. Dúvida cruel, devires. Quantas: faço ou não; desfaço ou deixo ao deus dará. Encruzilhadas, vórtices. Uma hora tem que desenganchar e tem que ir ou se mandar sem saber qual a da vez, assim: ou se mete de cara para ver no que vai dar, ou fica chocando à espera do que jamais advirá, ou. Opto sempre pela iniciativa e lá vou eu. Enfim, desci a ladeira no meio da nublada quietude: será que estão todos ainda dormindo e nem sei que horas são, ou todos fugiram e me deixaram sozinho, sei lá. Um pé de gente para dar bom dia, não havia. Um passo pra frente e as coisas ficando para trás e vice-versa. Mal cheguei à esquina, era como se via satélite fosse o tráfego de tudo, tráfico de sonhos e desejos. Aos borbotões os que vão e os que seguem pelo lado oposto, cada um se valendo do que há no bolso, compromisso ou passeio. Seguia acenando a quem avistasse reconhecido, que eram pouquíssimos ou ninguém, pensei que era. Nessa andança deu para notar que além de ser uma paisagem desbotada ou invisível, sou também indesejável ou ignorado, ô gente hostil para lá e para cá; sigo, então, acolá. O que presencio não é lá muito diferente de uma guerra como se ao redor fosse só desmoronamento, sofreguidão. Se de um lado há quem olhe pro chão e são muitos catando lá o que se possa imaginar; de outro, os de cara pra cima também em demasia, acho que à cata de algo que evidencie uma mudança repentina daqui e dacolá. Quase não distingo nada no meio da confusão que é a vida indo quando não voltando. Se há algo real só a escolha, ou sim ou não. Quase nem dá para ouvir no meio da algaravia o que reclamou Fernando Sabino: O diabo desta vida é que entre cem caminhos temos que escolher apenas um, e viver com a nostalgia dos outros noventa e nove. Quanto mais olvidar daquela do Neruda sobre escolhas e consequências, avalie. Poderia ter ficado em casa e me poupado disso. E para falar a verdade, nem saí e fiquei aqui inventando toda essa história para você. Vamos nessa.

 

 

DOIS: VOLTA DOÍDA AO PASSADO – Imagem: Andrei Bordeianu/Alamy Stock, ao som da Sonata para violín y piano em Sol menor, de Claude Debussy, com a violinista espanhola Marta Roca Alonso, no Salón de Honor, Centro Cultural Kirchner, Buenos Aires, 2017. – Voltei quase trinta anos depois e aqui estou na pele de Ka pela Neve (Companhia das Letras, 2006), do escritor turco e Prêmio Nobel de 2006, Orhan Pamuk. O retorno selara meu exílio. As ruas sujas pela fuligem do canavial e monturo de dejetos serviam para as ondas de gente num mar revolto. As calçadas estavam tomadas por mendigos, feirantes e sulanqueiros, gritaria de ambulantes e volantes sonoras, pastores irados, liquidações e ofertas, santinhos e flâmulas, noticiários e tragédias, vexames e filas. Quase não era a mesma, não fosse a providencial reconstrução após a trágica enchente de poucos anos atrás, tornando as casas com aparência de banheiros sanitários hoteleiros ou sarcófagos suntuosos que, para os moradores, significavam a última moda da arquitetura. Quase não reconheço mais ninguém; parente algum e muitos do convívio sepultados, outros escaparam e pouquíssimos resistiam naquele ar viciado de gente que nunca vi mais gordo e eu estrangeiro em meu próprio chão. É tempo de eleições e pandemia, as pessoas tristalegres se aglomeram no comércio, praças e eventos diuturnos, indiferentes à tragédia. Foi decepcionante vê-los de passagem como incólumes sonâmbulos erguendo bandeiras religiosas tão torpes e ideias políticas totalitárias, como se não vivesse o presente e o tempo regredisse para as trevas de cinco décadas atrás: ... sentiu o mesmo tipo de culpa e vergonha que sentia quando jovem, ao sair de reuniões políticas. Aquelas reuniões políticas o perturbavam não apenas porque ele era um rapaz de alta classe média, mas também porque as discussões eram cheias de atitudes infantis e exageros. Pessoas como eu só encontram a paz quando estão lutando por uma causa. Os jovens agora contaminados pela sofrência brega e o rebolado da funkada, pareciam suicidas como portadores da boa nova tão antiga e da mudança retrógrada, quando, na verdade, refaziam os horrores do passado para o pior. Diante de tudo isso havia em mim nesse reencontro aquele sentimento de Pepetela: A dor muito prolongada faz-nos cruéis e indiferentes à crueldade, o que é ainda pior. Num Universo de sim ou não, branco ou negro, eu represento o talvez. Talvez é não, para quem quer ouvir sim e significa sim para quem espera ouvir não. O que importa é mudar a ovalidade do mundo sem dele fugir. Esta cidade não mais reconhecida, não poderia ser aquela que tanto amei e em que vivi superando adversidades e correndo atrás do tempo perdido. Era outra, tão estranha quanto cosmopolita e desenganada.

 


TRÊS: QUINTESSÊNCIA – Imagem: da artista russa Evgeniya Abramova, ao som da Cello Sonata in C major, Op. 119, de Prokofiev, na interpretação do pianista Victor Asuncion e do violoncelista Brannon Cho, no Queen Elisabeth International Cello Competition (2017) – A cena é ela, à meia luz, não sei qual seria o seu papel naquela hora. Sempre dela e as outras tantas que povoam nela em meu ser asfixiado pela solidão. A minha salvação é ela Ïpek, aquela da minha paixão perdida e que será aquela que me alimenta de venturas e prazeres, de loucura inusitada, de transcendências e voragens. Ela chega silenciosa na cadência dos seus passos e me abraça como se o amanhã não mais existisse e só nos restava uma última hora e nada mais. Beijou-me com a urgência dos desencontrados e rolamos todos os pisos e tetos, e nos desnudamos de todas as vésperas e impedimentos, e nos fizemos inteiros maiores que a imensidão. Assim ela em mim e eu nela, tudo o que quisermos na inexistência dos limites. E só há o que de mim pra ela e dela pra mim, o acasalamento perfeito e divino. Depois do amor, abraçados no meio do silêncio. E inescrupulosamente desejei seu semblante fresco e toquei seus lábios no Jogo da Amarelinha de Cortázar, aproveitando cada detalhe de sua majestosa candura. Ouvi-la sussurrar Balzac: Ah, o amor é um mistério, que só tem vida no fundo dos corações... e abri bem os olhos e ela era Ana de Robert Burns: Ai, vinho que ontem bebi / Escondido numa choupana,/ quando em meu peito senti / os negros cabelos de Ana! / O judeu já no deserto / que bebia o que Deus mana / não sabia o mel oferto / nos lábios ardentes de Ana! / Reis, tomai o Leste e o Oeste, / desde o Indo até o Savana, / mas dai ao corpo que as veste / as formas trementes de Ana! / Encantos desdenharei / de imperatriz ou sultana / pelo prazer que darei / e tomarei só com Ana. / Vai-te, faustoso deus diurno! / Vai-te, pálida Diana! / Suma-se o claror noturno, / quando eu me encontro com Ana! / Venha a noite em negro manto! / Sol, Lua, Estrelas, deixai-nos! / Só com, penas de anjo o encanto / direi dos gozos com Ana. Quem dera a vida fosse somente nela. Até mais ver.

 

A MÚSICA DE SÉRGIO FERRAZ



Há um vasto caminho pela frente. A criação musical é como um oceano sem fim. Quanto mais mergulho nele, sinto que ainda posso ir mais fundo. Quero também estreitar relações com músicos do sul do Brasil, fazer novas parcerias, novos grupos. Estou a toda hora tendo ideias, espero ter tempo para por isso tudo em prática.

A arte do violinista, violonista, guitarrista e compositor Sérgio Ferraz, que é bacharel em música pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e iniciou seus estudos desde cedo Conservatório Pernambucano de Música, por volta dos anos 1980. Integrou os grupos Alma em Água, Sonoris Fábrica e Quarteto Romançal. Lançou os álbuns: Segundo romançário (2010), em parceria com Antonio Madureira; Sonoris Fábrica (2011), Dançando aos pés de Shiva (2012), A sublime ciência e o soberano segredo (2013), Concerto armorial (2014) e Flutuando sobre as ondas (2015). Veja mais aqui, aqui e aqui.