sexta-feira, janeiro 29, 2021

GRAZYNA MILLER, PIERRE SANSOT, NICK HORNBY, JACOB BAER, SOFIA HULTÉN, HELTON & VERTIN

 

 

TRÍPTICO DQC: QUADROS DO ENSAIO (LENDO BOULEZ) - Ao som de Répons - dois pianos, harpa, vibrafone, sinos, címbalo, orquestra e eletrônica (1980-84), de Pierre Boulez, Ensemble intercontemporain, conduct Matthias Pintscher. – Solidão, ah, solitude: as lembranças no pequeno cortejo dos antepassados, um diálogo de sombra dupla para quem experimentou as necessidades da época, a minha e dos demais. Sou eu, perfil único e insubstituível, e outro eu mesmo dos muitos eus que sou na fluidez dos devires. Se poesia, não sei; ausência, álbum em cotejo. Não sei com precisão, solto rabisco no imprevisto um esboço de mensagens de nenhum sentimento, o que me toca e toco, o conflito, fragmento, e sucessões de pedaços de mim se revelam na narrativa escorrida a disparar ao incerto, porque eu dobrei de acordo com a dobra do rosto nupcial, um martelo sem mestre e o inconcluso. Nem a morte, a vida. Renasço e persigo o que toco e me toca, mesmo que seja só entre indiferenças e incompreensões, mediocridade no varejo. Recomeço sempre e saio jeito que for por aí e o que disse o antropólogo francês Pierre Sansot (1928-2005): Ai dos seres mundanos que brilham em suas réplicas, que não se aprofundam, que se expressam com respeito natural! Cada um de nós está ameaçado pela contaminação do já dito, do já visto, do já sentido, cuja escrita parece tão fácil. Não se pode dizer, portanto, que escolhi existir pelo tédio, mas antes que o tédio constitui para mim um meio de usar o mundo com lealdade, de me aproximar dele, de renunciar a ele, de tentar de novo saboreá-lo. O que não sei, mesmo assim, o dedo aponta e vou se não tiver o que precise dizer. Digo e pronto, está feito, saiu, escapou. Se em silêncio, escuto o escritor inglês Nick Hornby: Todo mundo sabe como falar, e ninguém sabe o que dizer. A vida pode ser dramática para qualquer um; não é preciso ser viciado em drogas ou poeta para experimentar sentimentos extremos. Você apenas precisa amar alguém. Sim, o amor é a vida. E amo e até demais da conta, aprendo e reaprendo e sigo adiante até que a noite governe o reino dos sonhos perdidos.

 


DOIS: ASSIM, SEM PERDER A TERNURA - Imagem: Ninfa, aquarela sobre marfim (1898), do pintor, ilustrador e fotógrafo estadunidense William Jacob Baer (1860–1941), ao som das Cartas Celestes, de Almeida Prado, na interpretação do pianista Fernando Lopes - Dadinha menina nem se deu conta e debutou, olhos se encheram nela. A mãe, Predestinação de Ascenso, coração na mão: Valei-me meu Jesuisinho! E ela, aceno pra vampirada que subia a ladeira só pra vê-la e amolar os dentes: colírio aos olhares atrevidos. Prevendo o pior, a genitora pegou a danada e levou pro coronel tirar o cabaço: Antes que seja tarde demais, melhor pro ganho! Ela freou: Vou não! O grandão quase teve um troço: Te pego, safada! A mãe: Mas, minha filha... E tanto rodou, ele e uma tuia de marmanjo tudo aboticado atrás das suas pegadas e tudo o mais dela. Nem, nem. Ela crescia e se fazia robusta esperando seu príncipe encantado, coitada, enquanto o juízo da marmanjada maldizente fugia pro mocotó: Ela me paga! Aí ela deu um breque: engraçou-se por um parrudo e contraiu núpcias, assim, sem mais delongas. Está feito. Coração materno aos prantos por todos os devotados e mãos pendentes. O escolhido além de não ter onde cair morto, não aguentou o repuxo e bateu as botas: enviuvou pra repúdio das senhoras e pretendentes. Trancou-se para se livrar da fúria alheia: Sou gente, não sou objeto. Se passasse na rua, ou era desaforo, ou era lábia injuriada. Amadurecia na preferência pelo altruísmo, mesmo sob todas as condições adversas. Deu-se então uma enchente e toda cidade teve que subir o morro, lá só ela e a mãe solidárias. O povo reticente virou-lhe as costas, mal-agradecidos: Dessa nem mesmo pintada a ouro. Recusavam-lhe dádivas, odientas de sua boa vontade. Mais dia, menos dia, nada da água baixar, a ruindade se acovardava e já achegavam aos mimos dissimulados. Mantimentos em socorro chegaram de fora, general condicionou a assistência: Haverá fartura para todos se com ela me casar! Ela fitou o desafiante, fez careta e disse não. Foi-um-deus-nos-acuda! Que mulher mais ranzinza! Tantos paparicados, promessas e louvações. Lá vai ela ao cadafalso depois de todo tipo de pedintório geral. Diante de tantos rogos, cedeu. O graduado nela pintou e bordou, mas quando se fartou: Já sou casado! E zarpou. Ela lá ficou. E o que era paraíso voltou a ser o inferno de antes, como se ela fosse a Bolo de Sebo de Maupassant ou Geni da ópera do Chico. A vida tem dessas coisas e dela jamais perder a ternura.

 


TRÊS: CRÔNICA DE AMOR POR ELA - Imagem: arte da premiada artista sueca Sofia Hultén, ao som da Hungarian Fantasy, do compositor e flautista ucraniano Albert Franz Doppler (1821–1883), na interpretação da flautista israelense Sharon Bezaly, no Flute Festival Korea (2017). – Ontem ela não deu as caras, nem anteontem. Para quem dava o ar da graça todo santo dia e o dia todo, entra e sai, vai e volta, agora era um castigo daqueles de não se saber qual a culpa ou dolo. Foi. A porta se abria, não era ela. Era Germaine Greer: A tristeza é a matriz da qual surgem o humor e a ironia; a tristeza é desconfortável e criativa, razão pela qual a sociedade de consumo não pode tolerá-la. Se pudermos encontrar meios de colher a energia da dor oceânica das mulheres, moveremos montanhas. Ficou do lado acompanhando meus passos. Da janela, outros passos na calçada. Era a escritora polonesa Grazyna Miller (1957-2009): Entre a vida e a morte - um horizonte. Abraçando Ontem e Amanhã - não sabia que você era o meu Hoje. Precisamos de um caminho: o caminho do amor. Sim, o caminho do amor e o pior era a solidão do abandono. Ao lado dela apareceu Colleen McCulough sorridente e contando uma história: Existe uma lenda acerca de um pássaro que só canta uma vez na vida, com mais suavidade do que qualquer outra criatura sobre a Terra. A partir do momento em que deixa o ninho, começa a procurar um espinheiro, e só descansa quando o encontra. Depois, cantando entre os galhos selvagens, empala-se no acúleo mais agudo e mais comprido. E, morrendo, sublima a própria agonia e solta um canto mais belo que o da cotovia e o do rouxinol. Um canto superlativo, cujo preço é a existência. Mas o mundo inteiro para para ouvi-lo, e Deus sorri no céu. Pois o melhor só se adquire à custa de um grande sofrimento. Comovente história para um pássaro ferido como eu, as três riram e me pediram para cantar da Crônica de amor por ela. Até mais ver.

 

ARTISTA, DE HELTON & VERTIN



Esse álbum tem uma coisa viva, visceral, orgânica. Muita música ficou do jeito que foi cantada de primeira, respeitando muito a expressão e a emoção daquele momento em que foi gravada. Não tem muitos elementos, mas muita expressão. Fizemos esse disco totalmente independente de governo, mas muito dependente das estratégias de como fazer... e dos amigos também, de pessoas que a gente admira e que a gente queria ali.

O álbum Artista (2020), dos multiartistas irmãos Moura, Helton & Vertin. Helton Moura é cantautor, ator, instrumentista, diretor musical e artístico, autor dos álbuns Maquete Sonora (2010) e Círculo, ao vivo (2017), atua no teatro e no cinema, além de já ter participado de shows, saraus e festivais, como Fliporto, Recitata, Sesc Pompeia/SP, FIP, FLIOS-IlhéusBA, Pernambuco Nação Cultural, EXPOIDEA, entre outros. Vertin Moura é cantautor, poeta, ator, compositor, estudante de Filosofia da UFPE, é autor do livro Maria; Duo Artista e Filhosofia (2012), do álbuns musicais Filhosofia (2012) e Pássaro Só (2018).Imagem: arte (capa do CD) da artista visual Cyane Pacheco. Veja mais aqui, aqui & aqui.