domingo, janeiro 31, 2021

GALEANO, AVALOVARA DE OSMAN, KAGE BAKER, CARL ORFF & TEREZINHA DO ACORDEON

 

 

TRÍPTICO DQC: DAS CARAS & MÁSCARAS (Releituras de Galeano) - Só a Lua conhece a minha solidão e o meu exílio. Renasço a cada alvorada e vou desfiando a vida e a pele de Deus, enquanto a peste fulmina e o ouro de agora é outro entre os sabidos e valentes que traficam granas e coisas ceifando vidas e manipulando poderes, decapitando esperanças e gangrenando a todos: a fortuna é a glória na festa das posses e do domínio. Aos deserdados o abraço e acolhimento de Pachamama: Lá embaixo da terra, os mortos florescem. Estamos todos no Pelourinho para o espetáculo do poder das retrancas e decepções. É nessa hora que se pode pensar em si, não há mais saída, nem adianta se perguntar o que seria se Benjamim Franklin nascesse mulher como a irmã dele, e Montesquieu não recriminasse a cristandade por admitir que os negros não são seres humanos, e o abade Raynal não abominasse a escravidão, e Rousseau não sentisse vergonha do ser humano diante de todas as ocorrências, e se a América não fosse um continente lavado de sangue e dor – e as veias abertas da latinamérica -, o que seria de nós tão desvalidos no eco iluminista noutras veias que não as nossas de mais de cento e vinte milhões de crianças no centro da tormenta. Não há como ignorar ou fazer de esquecido, não sou surdo aos reclamos da humanidade tácita, nem cego às expressões loucas e vozes múltiplas da realidade, sei do dever das desgraças e do haver das sortes. Melhor seguir as palavras andantes e outras que pinotam aqui e ali para dizer o que não consigo enxergar nem perceber. Nunca perdi tempo em contar o quanto tudo é tão valioso quanto inútil entre a denúncia das sombras e a celebração das luzes: tudo é muito contraditório, surpreendente e perigoso. É a vida. Resta o abraço fraterno, peito amigo, a nossa utopia desgraçada.

 


DOIS: SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS- Imagem do Quadrado Sator, painting by Quioc Laurent - Diante da janela do meu quarto sou o escravo Loreius Abel tentando decifrar a magia do preciso quadrado sator e identificar o palíndromo para alforria. Estou nas ruínas de Pompeia e descobri o que não precisava saber: a cortesã trai o senhor. Ou não consegui entender direito o que deveria ser revelado, só a lamentável constatação de que não importava aprender a desintegrar o átomo se pouco se sabia da realidade e muito menos se avaliava o que ocorre ao redor, ora, ora, se a Raínha dos Cárceres da Grécia ainda imperava sobre a vida de cada um e a indiferença inexorável e a censura política e religiosa roendo a coragem e danificando tudo a volta, ah, era isso: o fiel e a pedra dos nossos dias, uma guerra sem testemunhas. Restava desvendar o mundo pelas nove novenas e o que mais: ninguém pode fazer alguma coisa se não consegue pensar bem o que faz. Enfim, encontrei o Evangelho na Taba no canto do circo, e a busca do amor era uma aventura de alto risco e eu na minha Avalovara, interpretando gestos de outros gestos: a primeira foi Dalmília com seus olhos refulgentes, sua pele ariana... Nela tornei-me o semeador. A segunda foi Merca que sonhava bailarina nua na lua cheia, recitando os Cânticos de Salomão como se fosse Carmende Bizet. Ao encontrá-la tornei-me Arepo, Hapax Legomenon – palavra que aparece uma única vez em determinada língua. A terceira, Alcionélia com seu diário dos desejos e loucuras: nela tornei-me aquele que possui o funcionamento das rodas. E eu havia de decifrar a intersecção entre uma espiral e um quadrado, a tentativa de identificar o nome, os seres e as coisas, a transição do caos ao cosmos. Seguia incólume entre a obra e o artista, a solidão e o que eu não sabia: O criador mantém cuidadosamente o mundo em sua órbita. Eu sabia, não haveria mais saída e Osman Lins me dizia da mísera profissão de escritor: Escrever é um meio, o único de que disponho de abrir uma clareira nas trevas que me cercam. Há sempre um encontro, quer queira, quer não; quando não e nem tanto um reencontro marcado.

 


TRÊS: DA VIDA NELA – Imagem da premiada artista visual portuguesa Paula Rego, ao som da cantata dos Carmina Burana - As canções de Benediktbeuern: Cantiones profanae cantoribus et choris cantandae (1937), de Carl Orff. - Ela não veio ontem, anteontem nem nunca mais e se tornara viva no meu desejo de escritos inspirados no manuscrito encontrado naquele mosteiro dissolvido de Benediktbeuern, com as trezentos e dezoito canções, oito ilustrações e duas peças: a Natividade e a Paixão, algumas delas com notações neumáticas. Foi na leitura do códex com as suas subdivisões em seis partes goliardesca que a fiz minha e eterna: moralia et satírica e eu ria do falso moralismo; veris et amoris, e o amor era o sonho da minha vida; lusorum et potatorum, e imaginava nela por festas orgiásticas; a divina, e eu era Deus no sexo dela; ludi, e brincava nela nua todas as formas prazeres; e supplementum, o que ela inventava em mim para o gozo supremo. Agora que ela não mais apareceu, valia o décimo carme: A morte agora reina sobre os prelados que não querem administrar os sacramentos sem obter recompensas... São ladrões, não apóstolos, e destroem a lei do Senhor. E a procurava entre as estrelas, rincões e lonjuras com o décimo-primeiro carme: Sobre a terra nestes tempos, o dinheiro é rei absoluto... A venal cúria papal é cada vez mais ávida dele. Ele impera nas celas dos abades e a multidão de priores, com as suas capas negras, só a ele louva. Nada mais restava, solitário entre os clerici vagantes que se dedicavam ao vício mundanista e distante da clausura e da vida monástica, cultuando o profano e o licencioso, cantavam para o meu prazer: Ó sorte és como a lua mutável. Sempre aumentas ou diminuis. A detestável vida ora oprime e ora cura para brincar com a mente. Miséria, poder, ela os funde como gelo. Sorte imensa e vazia, tu roda volúvel, és má, vã é a felicidade sempre dissolúvel, nebulosa e velada. Também a mim contagias; agora por brincadeira o dorso nu entrego à tua perversidade. A sorte na saúde e virtude agora me é contrária. Dá e tira, mantendo sempre escravizado. Nesta hora sem demora tange a corda vibrante; porque a sorte abate o forte, chorai todos comigo. A sua ausência dói enormemente e não menor o desapontamento, a ponto de ouvir a voz da escritora estadunidense Kage Baker (1952-2010) me dizer no meio da noite sobressaltada: O que direi ao meu filho, então, se ele tiver dúvidas sobre a vida eterna? Mortais podem ter sido desprezíveis, é verdade, mas não totalmente maus. A única coisa que as pessoas aprendem sendo oprimidas é como oprimir os outros! Bem quando eu pensei que as coisas não poderiam ficar mais estranhas, eu estava errada. Ao lado dela Kenzaburo Oe sorria no seu jeito nipônico: Os mortos podem sobreviver como parte das vidas daqueles que ainda vivem. E mais riu. Não me fazia entender nem entendiam, o que disseram não me acrescentou em nada, até a chegada de Ken Wilber me chamando atenção: Finalmente, a espiritualidade integral - como o próprio nome "integral" implica - transcende e inclui a ciência, ela não exclui, reprime ou nega a ciência. Mais um labirinto e a gente aprende da forma mais dificil. Até mais ver.

 

ARTE DE TEREZINHA DO ACORDEON



A premiadíssima cantora, compositora e acordeonista Terezinha do Acordeon – Terezinha Bezerra Chaves, maestrina da Orquestra Sanfônica de Pernambuco, integrou o grupo Karolinas com K e fundou o Bloco Sanfona do Povo. Ela gravou o seu primeiro álbum Alegria do Sertão (1970) e, em seguida, Terezinha do Acordeon, Alegria do Sertão (1984), Terezinha do Acordeon (1994), Sina de Cigarra (1997), Coletânea (1999), De volta ao Passado (2002), 40 Anos (2006), Seis Ponto Zero (2010), Vai Baião (2012), Um Amor Assim (2014), Se Não For Assim... (2017), afora participações em diversos discos e gravações. Participou também de eventos como a Missa do Vaqueiro e do álbum Pernambuco em Concerto, além do Festival em Estocolmo, na Suécia, em 2005. Veja mais aqui e aqui.