segunda-feira, dezembro 26, 2022

ELENA FERRANTE, JULIA KRISTEVA, NOELLE-NEUMANN & HIDEKA TONOMURA

 

 

Ao som Concert Classical Guitar at Siccas Guitars, da violonista inglesa Alexandra Whittingham.

 

TRÍPTICO DQP: - O legado & o abismo me vê ali... - A rua está deserta e as lembranças saltam pelas frestas do guarda-roupa como uma batucada de Naná Vasconcelos e dão conta de como tudo se tornou tão cruel agora, assombro e sombrio... Ouvi e vivo incerteza, a pupila dilatada pelo volátil e o ameaçador, quantos lobos nem sei mais. Para conversar restavam apenas o Gato de Schrödinger que brincava com minhas ideias desarrumadas. Do outro lado os besouros da caixa de Wittgenstein insistiam que a vida é só pra viver, que deixasse de lado todo viés da confirmação, pronto! Mais nada porque não adiantava eu me defender de todas as tribos, nunca pertenci a nenhuma delas e fui alijado até da família: ou luto ou fujo para a galáxia espiral NGC7469 lá na constelação de Pegasus. Eu me ajudo o mais que posso. Como os outros, a culpa é geral e lá estou eu exposto ao oganessônio – ou é polônio, sei lá! As galáxias se diluem e a existência é o que importa: sou o verdadeiro desconhecido. Sei que não é o desejável, nem nunca será: o arrependimento virá de qualquer jeito, mesmo que aprenda de cor as metamorfoses do espírito que Nietzsche me fez do camelo ao leão e a criança, ao amor fati. O bom foi que no meio da doidice pura pude ouvir Elena Ferrante: A vida era assim e ponto final, crescíamos com a obrigação de torná-la difícil aos outros antes que os outros a tornassem difícil para nós... Em todas as investidas eu ia com punho fechado pro inopinado e me desarmei, fui em frente: nunca esperei por milagre ciente de que jamais sairia impune. Ninguém é sábio para ser imune aos infortúnios. Duvidava do mero acaso porque o mundo se dilatava sem que tivesse de constranger caminhos. Aturdido, sabia: o que tenho apenas é vida, nada mais...

 


Pacto: o caos sou eu... – Escrevi o poema e não tinha a quem dedicá-lo porque não é nada: nem ele, nem dedicatória alguma, como se os ditirambos hesitassem dos meus umbrais, enquanto eu me fartasse da carne da estátua, do uivo da pedra, das dores dos insetos. Estou tão cansado como se o chão cansasse das pisadas, a casa dos seus moradores, o crepúsculo do dia, deste a madrugada, e esta da noite, do mesmo modo que ela de tarde, o cansaço geral... Consegui me desvencilhar das alegorias da caverna e dos metais, da mentira nobre de Platão, das qualias, Post hoc, e me afastei ao máximo do zoadeiro, porque não havia como me conformar com a navalha de Hitchens: O que pode ser afirmado sem provas pode ser rejeitado sem provas - Quod gratis asseritur, gratis negatur. Cá comigo, os filósofos não sabem nada, mas nos dão a lição: precisamos aprender, ora! Estamos todos neuróticos e confusos como o diário de Neil Young, não há significado e isto soa como uma bomba no meu juízo! Parafraseando Montaigne: Escrever é aprender a morrer. Posso ser excêntrico e me viro, mas não divido a cena com essa realidade paralela do doidismo escroque, porque não tenho nenhuma preocupação com o que acontecerá depois da morte, o agora é que o problema, o que será não mais importa entre o suficiente e o desejado, suportar a finitude enquanto a cabeça segue infinitas ideias... Tudo passará, não adianta.

 


Coração de areia… – Imagem: arte da fotógrafa japonesa Hideka Tonomura. - Sou coração ao vento arrancando as vestes aos varais e a vida desnuda das flâmulas e bandeiras tremulantes. É só vento... E ela aparece Olga de Kiev depois que subjugou os Drevilianos e agora era a minha vez e pregou uma peça com seu bote de tigresa, trazendo o saco da noite de Valpurgis: Vamos comemorar com Julia Kristeva: O amor é a hora e o espaço onde "eu" me entrego o direito de ser extraordinária. E me levou qual musa da elegia de Donne para, depois de tudo, se insinuar Elizabeth Noelle-Neumann: Solta-se o verbo quando se sente que está em harmonia com o espírito de seu tempo... E depois da agonia dormimos na rede de pernas pro ar, graças! Ainda bem que normalmente tudo acaba em sexo, u-hu! A festa é dela quando sou vento de maio entre as pernas da moça, saia esvoaçante e o cheiro da vida... Quando sou vento forte agito as páginas, parafraseando Heine: Quem indiferente aos livros, também às pessoas... Faço o rascunho da vida, escarafunchei o que passou... Sobrevivi pra contar... Até mais ver.

 


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segunda-feira, dezembro 19, 2022

ANNIE ERNAUX, ADELA CORTINA, ELEANOR PORTER & NATHALIA PROTAZIO

 

 

Ao som de Da Pacem (Harmonia Mundi France, 2006), do compositor estoniano Arvo Pärt, Estonian Philharmonic Chamber Choir, Paul Hillier With Christopher Bowers-Broadbent.

 

TRÍPTICO DQP: - Quandamanhece... - Onde eu moro uma metade é de manhã; a outra, de tarde. Só que no meio toda noite são solidões desligadas, o som baixinho: vivo o que posso e me resta de outras tardamanhãs. Quarentanos passaram e nada pra comemorar. Claro, não tenho onde cair morto. Ademais, até hoje não fiz nada que prestasse, tudo desperdiçado, nada não. Fui sempre no agora, apostei nisso e nenhuma liga. O que tenho, negativo de nada. O que fiz: se juntar tudo não dá uma única porqueira sequer pra remédio. Assando e comendo. Amanhã, Deus dará. Sempre assim. Nunca fui coitadinho, sou meu pior verdugo. Se não aprendi é porque me perdi nas linhas das mãos. Quem mandou, os tantos eus no meio do alter ego. Inútil topar no caminho com Deucalião que, acompanhado de Pirra, salvaram a humanidade. Será que valeu a pena, disseram ter feito apenas a sua parte. Os estúpidos são muitos e se multiplicam aos borbotões, proliferam como ratos. Restou-me o que dissera Eleanor Porter: Em tudo há alguma coisa de bom. A questão é descobrir onde está. O que a gente não conhece é sempre mais atraente do que aquilo que temos... Quem sabe, depois disso, não me torne exemplar. O que sei mesmo é que quarentanos depois só as memórias e besteiras que rondam desde não sei quando, tudo vive de manhã...

 


Quandentardece... Claraluz, caleidoscópio. Entre aspas: já fui menino e Nitolino ainda é. Toda vez que ele aparece sou outro. Rejuvenesço com ele e só quero me divertir. Acho que a vida foi feita pra diversão, a gente quando cresce complica tudo. Na verdade ele me ensina a ser melhor que sou. Quando entra em cena é ele mesmo e o que fui. O menino cresce, ele não: permanece menino. E eu erro dos ventos, das águas, das árvores. Às vezes levo a pior. Mas vou como quem pega um mote pra mode logo glosar. É como ouço Aqui dentro de Nathalia Protazio: Vivemos tempos difíceis pra se manter acreditando em qualquer coisa... Quando não sou intimado pela alagoana Maria das Dores Sena e boto a mão na massa pra peleja do repente: o verso é minha deixa e lá vou eu pelas trinta e duas estrofes, o que me falta fazer mais no meio da cantoria. E folgo porque chegaram as septilhas desaforadas da Susana Morais na peleja deusística com a Mariane Brigio. Aí levo minha loa pelos cinco mil alto-falantes: o meu grito é a minha cabala na réstia do Sol. Assim vou pelo mormaço da tarde, pelejando demais, brincadeira não! Fico na minha, ora, vou lá ter um troço! Quem tiver seus pantins que se ajeite...

 


Quandanoitece... É muita doidice. Viver no mundo da Lua não, envelopando raios no gelos das nuvens pelas ilhas de Kerguelen, ou mesmo nas paragens de Ittoqqortoormiit, como seu eu fosse pela enteléquia de Rabelais, cuja rainha nua dispõe tudo que eu quiser como se eu fosse aquele das façanhas de Apolinaire. Foi lá que vi a memória de menina de Annie Ernaux: Amo minha vida, gosto de ser cosmopolita, gostaria de visitar toda a terra e amar tudo... Sou dotada da vasta memória da vergonha, mais detalhada e implacável do que qualquer outra, um dom exclusivo da vergonha... O que sei de mesmo é que todos morreram: os que tinham dinheiro no banco ou dormiam embaixo da ponte; os espoletados da soberba ou quem não tinha nem conta dos sete palmos de chão; os que se achavam donos das ventas ou os mesmos que nem sabiam por onde espirrar; os que andavam com um rei na barriga ou os pelancudos famélicos divagantes... Pois é, quem ainda não foi um dia a vida leva, não tem outra, memento mori, diálogo da noite... Até mais ver.

 


Quando as crianças são ensinadas a se relacionar apenas com as pessoas certas, isso é anti-educativo porque a criança aprende que esta é a maneira de prosperar na vida. Isso não é educar pessoas ou cidadãos. Com essa formação, é normal que os pobres sejam deixados de lado, e os pobres não são apenas aqueles que não têm dinheiro, mas também aqueles que não têm nada para contribuir em nosso benefício... Os pais devem estar interessados em  que seus filhos aprendam, não em passar a qualquer preço. Assim, eles deixarão de ver o professor como um adversário. O que acontece é que o poder político costuma concordar com os pais porque são muitos eleitores.

Pensamento da filósofa espanhola Adela Cortina Ortz. Veja mais Educação & Livroterapia aqui e aqui.

 



segunda-feira, dezembro 12, 2022

MANSFIELD, CHINUA ACHEBE, VICTORIA CAMPS, DANIEL FILIPE, LUÍS GAMA & MULHER DO FREVO

 

Ao som do Violinkonzert (2014), de Strawinsky, na interpretação da violinista moldava-austríaca-suíça Patricia Kopatchinskaja, witch hr-Sinfonieorchester (Frankfurt Radio Symphony Orchestra), dirigent Andrés Orozco-Estrada.

 

TRÍPTICO DQP: - Surpresa de nada... - Amanheceu enevoado e a cidade é um campo minado em que todos celebram as anedotas já sem graça alguma, parece mais que todos se deixaram levar pelas envenenadas obsessões de quatranos agudos no bafejo das ameaças. O meu país rasteja sobre o perigo para vergonha de Deus e furiosas usurpações, como o genocídio indígena e as veementes agressões, o despejo compulsório, porque o terrorismo de Estado aqui vige e quase nem percebo lá longe a condenação dos três irmãos Howeitat por se recusarem a deixar suas terras na Arábia, porque aqui todas as reais forças constitucionalmente protetivas flertam com golpes tramados pelos donos dos latifúndios e nazifacistas neopentec com suas esquisitas missões de arruinar e a estridência das suas cercas soando grosseiras às margens das rodovias. Entre os néscios metidos a filósofos, eis que ressurge do nada Luís Gama cantarolando sua sina: Sou um retumbante Orfeu de carapinha: desprezei a lira porque sou da marimba e do cabaço d’urucungo... Oh! Eu tenho lances doridos em minha vida, que valem mais do que as lendas sentidas da vida amargurada dos mártires... Faço versos, não vate, digo muito disparate. Mas só rendo obediência à virtude, à inteligência... Ele saúda festeiro e apressado a minha nada inédita incompetência de alcançar qualquer felicidade. Ele sabe como eu das tramas secretas para dizimar meu povo já tão dilacerado pela injustiça e todo tipo de fome. Não é só o desgoverno ou o monstro pandêmico: o horror é visível na festa dos desmiolados patriotários, tão incivilizados quanto jactantes: só querem matança e devastação. Não temo que o dia escureça, aqui é noite faz tempo...

 


Palimpsesto: Metafísica não é, vida sim!... – Imagem da pintora e escultora britânica Maggi Hambling. – Sigo e insisto, persigo e a conversa lá fora me diz que estou vivo e entre viventes. Vinte acenos no meio de outras antipatias e eu procurando o gabarito da vida na eudaimonia, quem sabe, como se fosse para dar sorte. Só lampejos e esgares, o cronômetro inexorável joga fora tantos talentos jamais alcançados, resta o silêncio perturbador da indiferença. Alguém me passa os seis chapéus, qual deles? Já tenho os meus na clausura madrugadora, quando Chinua Achebe me diz em sua rouquidão: Ninguém pode me ensinar quem eu sou... Até que os leões tenham seus próprios historiadores, a história da caça sempre glorificará o caçador... Difícil definir o que virá, o presente é uma esfinge e embaralha o passado relegado a terceiro ou quartos planos. Quase nem lembro mais nada, a argila da memória se dissolveu no teorema da incompletude: não sei onde vamos parar... Só sei que ficou tarde demais, sabe-se lá deus por que...

 


Coordenadas líricas, enfim... – Imagem do artista, crítico de arte e professor Vicente Vitoriano. – Lá longe um jato brilhante, o que seria eu não sei. Ah, só depois ficou mais claro: era o AT2022cmc do buraco negro supermassivo e só eu via e o Zwicky Transiet Facility. Quando a poeira baixou não era nada disso: era uma mulher da cor do frevo que pousava do inesperado. Irrompeu com o encanto de sua pele imorredoura realçada pelas vestes soltas estampadas, arrodeada pelos bichos imaginários de Lula Cardoso Ayres e imagens das pinturas míticas rupestres, pedras polidas que rolavam para desenterrar cerâmicas, utensílios e esqueletos da Serra da Capivara. Beirava intensa ventania provocada pelo bico saliente dos seios à mostra na blusinha de alça. Foi então que cruzou os braços e às mãos ao cós, ousou tirá-la enquanto me dizia que nasceu de um solo de Nelson Ferreira e foi gerada ao som de Capiba. Assim de topless fez um simples gesto vinte e quatro vezes por segundo de afeto e flagrei a sua anatomia benfazeja, enquanto endeusado por seu inefável poder de sedução dizia-me Katherine Mansfield: Queria correr, ao invés de caminhar, executar passos de dança descendo e subindo a calçada... ou ficar quieta e rir de nada, simplesmente... Devotado à sua vertigem pecaminosa ali palpável, acompanhava seu movimento de ir duma estrela à outra até me levar na viagem do poema para a Pasárgada de Bandeira, tão desmedida quanto equatorial, mais prevalecia sobre meus trópicos, para me recitar a Invenção do amor de Daniel Filipe: Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração e fome de ternura e souberam entender-se sem palavras inúteis Apenas o silêncio A descoberta A estranheza de um sorriso natural e inesperado... Foi assim que me fez suportar a fragilidade humana diante do furor de seu olhar obsceno e suas máscaras confessaram e não disseram rigorosamente nada. Viu-se crucificada em meu sexo e tombou lânguida sobre meus músculos para me dizer que era tempo de migrar mais pro Sul, mas eu dizia que lá havia hostilidades demais para apagar as memórias de tantos gozos. Nela eu sabia que a melhor forma de viver não seria outra senão com a coragem. E foi assim que assumi: sou minhas escolhas e sou feliz razoavelmente. Sempre soube: a vida vale a pena!... Até mais ver.


 

[...] Educar é socializar para que a pessoa acabe sendo um indivíduo autônomo e um fator de sua própria vida [...] Um clima tirânico igualitário reina nas salas de aula. Excelência, esforço e talento já não são muito apreciados. Ser disciplinado significa ter assumido uma certa austeridade consigo mesmo e com os outros. Significa ser educado emocionalmente. A sensação de que as regras devem ser seguidas, gostem ou não, diminuiu consideravelmente. Quando você não aprende a respeitar o superior que impõe as regras, é lógico que ele não merece nenhum tipo de consideração e você acha que é normal e lógico, até divertido e engraçado, transgredi-las. [...].

Trechos extraídos do estudo Acredite na Educação (2008), da professora espanhola Victoria Camps. Veja mais Educação & Livroterapia aqui e aqui.



sábado, dezembro 03, 2022

GRAMSCI, NANCY MITFORD, DARIO FO, FRANCES POWER COBBE, EDITH CAVELL & ADRIANA DO FREVO

 

 Ao som do Violin Concerto nº 1 in G minor, Op. 26 (1866), do compositor alemão Max Bruch (1838-1920), na interpretação da violinista francesa Alexandra Soumm, conductor Pablo González & Franz Schubert Filharmonia.

 

TRÍPTICO DQP: - Manultimora... - Quandé domingo, segunda ou sábado, dia de feira ou feriado, tanto faz: eu me divirto compondo para mim mesmo, versejando ou aos pinotes nos pincéis ou canetas mundafora, madrugadia pelos quatro cantos do meu modesto ateliestúdio. Quando não peiticando com meus fantasmoutros dos tantos eus, inventando esquinas com a surpresa dos tentáculos dum sifonóforo gigantesco aplacando minhas passadas e outro mundo lá pra trás ficando cada vez mais distante. Às vezes nem me dou conta de quanta truculência no meio dum palíndromo existencial em cada rito de passagem, ciclo atravessado, etapa vencida, gente como a praga para nada. Salvo pelo gongo com a Nancy Mitford que puxa conversa: A vida às vezes é triste e muitas vezes monótona, mas há groselhas no bolo, e aqui está uma delas. Ao lado dela faço meu caminho entre o consensual e o disputável, perseguido pela pontaria de um meteorito em queda, ela me puxa prum abrigo qualquer e mantenho o fôlego com meus heréticos paradoxos, contra as máquinas invisíveis de moer gente que almeja o pacto fáustico da glória pelos motivos errados - melhor ser monoglota e fazer uso do grammelot presses timoratos que sucumbem à ruína, como válvula de escape. Como se eu fosse irmão caçula do absurdo, resta um manuscrito de última hora...

 


Túnel de praxe... – Imagem: Woman with guitar, da pintora espanhola Maria Blanchard – Há sempre uma entrada escura com nuvens carregadas, neblinas espessas, só adentrar de cara pelos catabis do percurso. É no meio que vem a sensação de quem almeja a mudança e não sai do lugar: o biênio golpista, o quadriênio da caquistocracia do Fecamepa coisonário – recaídas do meu país como se esperasse o pior do pior -, a aflição pandêmica, ah, um longo período ameaçador - Estou de saco cheio com os pirados, os ridículos e chatos, daqueles que mais parecem o Woyczeck de Büchner, submetido a um energúmeno capitão, um salafrário doutor e à sua mulher infiel, só para se tornar tema de Alban Berg e filme de Werner Herzog. Não fosse Edith Cavell me dizer: ... percebo que o patriotismo não é suficiente. Não devo ter ódio ou amargura por ninguém. Algum dia, de alguma forma, farei algo útil, algo para as pessoas. Eles são a maioria deles, tão indefesos, tão feridos e tão infelizes. Confesso, não fosse ela, não saberia mais o que fazer depois de Dario Fo: O envenenamento do planeta, das águas e do ar que respiramos é resultado de interesses econômicos privados com a cumplicidade do poder público em meio ao descaso geral... No final do túnel um repórter de verdades canalhas, vira e mexe as besteiradas rendem risíveis situações, uma injeção nos escrotos e eu mais condoído sigo adiante quase sem esperança...

 


Quantas vezes Cordélia... – Imagem do artista visual canadense Jason Sauve. – Quase a salvo vi-me envolvido por um poderoso eflúvio, algo além da imantação sem que soubesse de onde proviria. Era algo poderoso, com certeza: perfume de mulher. Não demorou muito e estava diante da favorita Cordélia do Rei Lear na pele da Sarah de Shakespeare, aquela que não se submeteu à adulação nem à hipocrisia como suas duas irmãs: fora deserdada e expulsa do reino justamente por isso. E mais: condenada à morte por um conluio secreto, escapara não se sabe como, mas não se esforçou nada para mudar o fato de ter sido dada por morta. Deixou claro tratar-se de uma princesa que abandonou a monarquia e era ela a mesma das cartas do Diário do Sedutor de Kierkegaard. Falava pelos cotovelos como se estivesse aprisionada às cenas das Futilidades públicas de Patrícia Gaspar, e asseverando toda Frances Power Cobbe: O amor inverte naturalmente a ideia de obediência e faz com que a luta entre quaisquer duas pessoas que se amam verdadeiramente não seja quem deve comandar, mas quem deve ceder... E nem me deixou sequer refletir sobre a sua afirmação, pois já se mostrava toda Adriana Lima – a Adriana do Frevo -, aos requebros da fascinante dança no céu olindense. Era como se estivesse em casa, isso eu sabia no meio do turbilhão de dias. Era o que precisava para recomeçar a vida e prosseguir na caminhada. Nela eu fui. Até mais ver.


 

[...] Criar uma nova cultura não significa apenas fazer individualmente descobertas “originais”, significa, também e sobretudo, difundir criticamente verdades já descobertas, “socializá-las” por assim dizer; transformá-las, portanto, em base de ações vitais, em elemento de coordenação e de ordem intelectual e moral. O fato de que uma multidão de homens seja conduzida a pensar coerentemente e de maneira utilitária a realidade presente é um fato “filosófico” bem mais importante e “original” do que a descoberta por parte de um “gênio filosófico” de uma verdade que permaneça como patrimônio de pequenos grupos intelectuais. [...].

Trecho extraído da obra Cadernos do cárcere (Civilização Brasileira, 1999), do filósofo italiano Antonio Gramsci (1891-1937). Veja mais Educação e Livroterapia aqui e aqui.

 



domingo, novembro 27, 2022

CHARLAINE HARRIS, SEBASTIAN SEUNG, CONNIE PALMEN, MIHÁLY BABITS & JORGE WERTHEIN

 

Ao som do Concerto Instrumental (2015), gravado ao vivo pela violonista alémã Jule Malischke, nas oficinas em DD-Hellerau.

 

TRÍPTICO DQP: - Ainda é primavera... - Ainda é primavera e eu bebo a chuva da alvorada, enquanto Sebastian Seung me diz: Eu sou meu conectoma... E eu que sempre tive pra mim que todos éramos nossas glândulas endócrinas nem me espantei! Jamais me espantaria justo porque sei de Mihály Babits: O que é uma opinião? Um limite imposto a nós mesmos... Ah! como seria bom hoje ser surdo como Deus. Exatamente e só o que me espanta mesmo é que ainda é primavera e eu não tenho pra onde ir porque roubaram as margens dos rios e a fogueira das queimadas me manda pra longe. Ainda é primavera e coisominions patriotários param o relógio da manhã como se fosse mentira ir e vir, esburacando a sorte e a sobrevivência de quem não tem nada a ver com suas idiossincrasias. É isto que me espanta como todos vão se Qatar com a minha bandeira confiscada em Doha, com a extinção em massa de não sei quantos seres vivos e de como o ódio faz vítimas com seus ataques às escolas de Aracruz. É o que me espanta nos alicerces de conluio, telhados de porcelana, o verdadeiro mais cinza que existe, olhos da morte pelas brechas com os gritos escapando pelas frestas das janelas e portas. Há muita zoada para confundir, ninguém escapa e é triste seguir sozinho...

 


Quando houver amanhã... - Imagem da exposição Nhande Marandu – Uma história de etnomídia indígena, criada por Anápuàka Tupinambá, reunindo artistas de etnias diversas. - O que é de céu ou chão a gente perdeu faz tempo, só o vento nos leva não se sabe mais para onde. Quando eu era menino as coisas eram menos dolorosas, doíam sim, mas já passaram; hoje dói mais e duradouro, parece até não mais ter fim. Quantas vezes quis ser mais que sou, pobre de mim, era pequeno e feliz, juro não ter nenhuma ambição assim de esguelha, só juntei farelos nos dedos. Restou-me o que aprendi de Connie Palmen: Você deve fazer o que tem medo, porque é a coisa mais segura. A boa escuta requer empatia e abandono de preconceitos. O paraíso só surge no momento em que você o deixa ou antes de entrar nele... Se eu soubesse antes que era assim, afinal ninguém sabe depois, só do que teima em se manter em todas as circunstâncias. Quando houver amanhã talvez nem mais seja o Sol do meio dia, nem mesmo o mando espragatando com pisada forte a coragem de ir mais além, a quentura do convívio frio distante e a sede para água que não mais há... Quando houver amanhã saberei mais que ontem e o que foi e será. Tudo será passado...

 


Guia do caminheiro das sonhações... - Imagem: arte do artista australiano Gil Bruvel. - Lá estava entre os milhares de voluntários de Tunick na praia australiana de Bondi, para saber do cuidado com o câncer de pele grassando. Sentia-me com todos e só, até esbarrar na exuberante nudez de Zederina que também escapava das idas e vindas pandêmicas. Agora, mais linda que nunca, da surpresa me disse com um sorriso Olga Benário: Em momentos difíceis é preciso pensar em alguma coisa bonita... Preparar-me para a morte não significa que me renda, mas sim saber fazer-lhe frente quando ela chegue... E mais se achegou contando das torturas de ser filha da dor: suas carências íntimas e a saudade da filha que lhe tomaram recém-nascida e nunca mais viu. A mim se agarrou e mais terna que nunca dei-lhe mais que afeiçoado. Ela quedou com os meus carinhos e senti seu hálito perfumado ao se expressar Charlaine Harris: Nunca fui uma mulher de relações de uma noite só. Quero ter a certeza, se dormir contigo, de que o faço porque queres passar algum tempo comigo e porque gostas de mim por quem eu sou e não pelo que sou. Retribuí aos seus encantos e aos beijos atravessamos a noite até amanhecer ali na praia. Estrada afora ela não me disse sim, muito menos não, seguimos. E nas andanças nos deparamos com as Mulheres de Repente, como o da Luzilá Gonçalves Ferreira. E nos embalamos com a Luna Vitrolira, Dayane Rocha, Thaynnara Queiroz, Francisca Araújo, Elenilda Amaral e Milene Augusto, maior rastapé de perder a noção dos dias e das noites. Sabia dela e ela de mim. Não é impossível sonhar acordado, eu vejo de olhos de fechados. Até mais ver.

 


[...] O culto ao mercado que está se tornando uma condição de sobrevivência, de pessoas e países, influencia de forma crescente a educação, começando mesmo a determinar-lhe os fins e, por consequência, subtraindo ao indivíduo uma das mais caras conquistas do homem ocidental que é a liberdade de ser e de fazer opções e escolhas. [...] possam visualizar numa tela do projeto escolar e do processo educativo, interações e interdependências, sentidos, convergências e a necessidade de uma construção coletiva, sem a qual dificilmente se poderá perceber e entender a dimensão holística do pensamento educativo.

Pensamento do educador e filósofo da educação argentino Jorge Werthein.Veja mais Educação & Livroterapia aqui e aqui.

 


domingo, novembro 20, 2022

EMMA LAZARUS, NADINE GORDIMER, LAGERLÖF, YOURCENAR & JOAN RODRIGUEZ

 

 Ao som de Pavane por une infante défunte (1899), de Maurice Ravel, com a Orchestre National de France, sob a regência da maestrina finlandesa Dalia Stasevska.

 

TRÍPTICO DQP: - A solidão do poema... - A lenha da palavra e a combustão da ideia: a fogueira da poesia. A cidade é uma penumbra asfixiante, mais parece a nuvem tóxica de Nova Delhi. Emma Lazarus surpreende a caminhada: Então a Natureza moldou o coração de um poeta - uma lira/ de cujos acordes a brisa mais leve que sopra / deu uma música trêmula... Olhos escondidos perseguem a minha clausura andeja. Confesso arrasado na rotina ordinária, renegado pela intolerância e mediocridade. Quantas aspirações, fingimento, privações. Era como se eu fosse o lenhador de fadas com a missão secreta d’O Golpe de Mestre do Fairy Feller de Richard Dadd: a imaginação cheia ao deitar por malograr no atentado ao papa e o parricida esfaqueando o demônio a mando de Osíris entre fadas e gramíneas, gnomos e flores, elfos e o machado pronto para o golpe na castanha; a libélula ao trombone para a rainha Mab com seus centauros, o menino e o monge anão com outros mágicos, uma aranha tecelã, o lavrador e o político dos patriotários, o dândi de fada por cima da ninfa, um pedagogo agachado, duas empregadas e um sátiro, um esfarrapado e o bisbilhoteiro, as crianças nas margaridas e uma nova carruagem para a realeza dos sonhos de Oberon e Titânia, nos sonhos de uma noite de verão de Shakespeare. Lá iam as investidas criminosas e a disrupção psicótica para enlouquecer com o Queen nas xilogravuras do Clique, as vozes instigantes e as gargantas cortadas, o non compos mentis como na narrativa do Perceval de Bateson e o fetiche por ovos e cerveja. Senti na pele o doloroso pesadelo, não era eu e só despertei com Marguerite Yourcenar: Creio que quase sempre é preciso um golpe de loucura para se construir um destino... Também duvido da minha sanidade, talvez eu seja um perigo paratodos, resta a companhia de mim mesmo, não há saída: a vida reduzida ao poema e nada mais...

 

O grito rasga o dia... – Imagem: Arte do escultor, pintor, gravador e professor Rubem Valentim (1922-1991). - Tudo parece em ordem, mas não está. O que previsivel diante do inesperado? Não era apenas afeto ou asco, nem apenas heroi ou vilão no conflito entre pícaros – quem se aceita a si mesmo? Passado e presente embaralhados: o heroi sem carater, o golpista dissimulado e o céu de vermelho-alaranjado com o silêncio desesperador e seus fantasmas. Os amigos se foram e eu fiquei com o toque de melancolia, o grito de Munch: o fracasso do amor e a alienação dos outros. Assim a existência com suas perdas, a tristeza das doenças, a ansiedade e a morte, o socorro agozinante e a vida real na Noite da rua Karl Johan - eliciadores do medo e a revivescência, os nervos à flor da pele, ameaças e quantos pretextos para viver as muitas versões: A dança da vida em Åsgårdstrand e lá estava o friso da vida na Madonna nua e feita de Amor e dor - era Marina Abramović como Selma Lagerlöf: Ninguém pode livrar os homens da dor, mas será bendito aquele que fizer renascer neles a coragem para a suportar. A alegria é a dor que se dissimula - à face da Terra só existe a dor. Como reconciliar eu não sei, só se um OVNI viesse abduzir-me com a supressão da memória, mesmo que os erros batessem à porta e eu me esquecesse da paixão antiga pela tia – como se fosse antes da Revolução de Bertollucci, nem lembrasse de quantos amores se perderam e nada mais pudesse viver de benéfico nem de venturoso. Seguir pelas pedras e rieiras...

 


Não estava só na loucura... - Imagem: arte da artista visual Gio Simões, que se dedica ao desenho, à pintura e à fotografia. – Lá estava ela como se fosse a Dormeuse aux persiennes de Picasso: desligada de tudo, cansada e recolhida em si mesma. Olhou-me com surpresa e me disse Don DeLillo: A loucura é tão pessoal. É difícil saber quem compartilha nossos segredos... Logo abriu o jogo e fez-se tagarela inquieta, atormentada. Era como se sobrevivesse às lembranças da infância – o estupro de menina e o casamento falido dos pais, ela tragada como se protagonizasse If Only Alcyone Would Wake, de Joan Rodriguez. Insistia nua para lá e para cá: precisava acordar e assumir o controle de sua vida depois da depressão pós-parto – a lembrança dos seus dois lindos filhos, a sua infância com o conforto da arte na solidão e mais tamponava a dor na ideação suicida. Não poderia, jamais. Mais uma vez fitou-me severa e insistia em dizer que teve medo com a sua história despedaçada, precisava esquecer suas raízes, a escravidão disfarçada, fantasiar o presente sem que precisasse da aceitação ou recusa, e reiteradamente disse que nunca revelaria o seu segredo, pois, condenada a viver na escuridão. De repente se fez Nadine Gordimer: Eu sou a chama de uma vela que balança em correntes de ar que você não pode ver. Você precisa ser aquele que me firma para queimar. Eu falhei em muitas coisas, mas nunca tive medo. Todo mundo acaba caminhando sozinho em direção a si mesmo. Minha resposta é: Reconheça-se nos outros... Ah, não, era preciso cuidar dela, assim me fiz e nela do pesadelo à fantasia viva de amar. Era mesmo preciso, não estava só nas minhas andanças, uma vez mais e a vida. Até mais ver.

 


[...] Avaliar é indispensável em toda atividade humana e, portanto, em qualquer proposta de educação [...] A avaliação é inerente e imprescindível, durante todo processo educativo que se realize em um constante trabalho de ação-reflexão-ação [...] Precisamos, então, fazer com que nossa prática educacional esteja conscientemente preocupada com a promoção da transformação social [...] avaliar não pode ser um ato mecânico nem mecanizante para que possamos contribuir para a construção de competência técnicas sócio-política-culturais. [...].

Trechos extraídos da obra Avaliação: novos tempos, novas práticas (Vozes, 1998), do professor e pesquisador Edmar Henrique Rabelo. Veja mais Educação & Livroterapia aqui e aqui.