O diálogo interartes existe há
tempos, e é uma das vocações da música contemporânea – e digo “contemporânea”
não num sentido de gênero ou escola musical, mas de interação e impacto na
atualidade. É um caminho sem volta que a pandemia acelerou, essa de pensarmos a
música atrelada a um contexto audiovisual e dependente da tecnologia de
transmissão, mas acho que é um caminho inclusivo, pois sempre haverá espaço
para uma expressão mais “pura” da arte musical, voltada para espaços e
perspectivas de escuta tradicionais, como os concertos de música clássica ou
mesmo, a audição de um álbum digital.
Pensamento da pianista,
compositora, produtora e pesquisadora Lilian
Nakahodo, autora dos álbuns e EPs Corpo Urbano
(2011), Circo urbano (2015), Vilosidade (2018), Lusco-fusco
(2018), Sonhos (2020), No mundo de Maria João (2021) e Outro
Piano (2022).
HESTORIA DO QUE
FUI E VOO – Na correnteza das horas os dias
enovelados, o patíbulo e o carrasco: o tempo. A trajetória da semana: do alvo às
cinzas, a constatação de fugitivo d’A Invenção de Morel do Bioy Casares. Na minha ilha deserta o vaivém de uma gente insone sem sombra, nem rastro, muito menos reflexo
no espelho. Eles relinchavam e espojavam suas dores, carregavam seus pesadelos
e lástimas pelas infelicidades recorrentes conservadas nos baús de suas almas selvagens, como se vagassem perdidos
noutra ilha: a do Dr. Moreau de H. G. Wells. Passavam, teciam e
desteciam delirantes testemunhos de cães espantados nas
suas pestanas graves. Não sei o que remoíam tanto, suponho aflições inauditas
de sentinelas irredutíveis de uma inventada comoção, a bater o pé na mentira
feita verdade pelos cupins da pátria, pelos ratos da nação. Uma gente tortuosa
e exangue, mais pareciam mosquitos atazanadores: ansiavam mudança perpetuando o
passado a todo instante e pleito, reviviam seu museu ostentatório, puxavam-se
uns aos outros aos tropeços loquazes e rangentes, ruminavam suas dúvidas pelas
certezas destrambelhadas, falindo seus sonhos vencidos tão bem guardados de os
perderem pela primeira fresta da clausura. Chovia perenemente e o abandono do
centro se propagava pelos subúrbios e abominações: uma doença misteriosa, a
solidão e o esquecimento, resignação e desmoronamento. Eles mantinham a cara
pro céu de milagre nenhum, nem se tocavam equivocados a se perderem de vista com suas evidências atrozes. Entre
eles o meu exílio n’A Montanha Mágica de Thomas Mann. Talvez fosse
a vez do não outra vez e sequer percebia. De repente ela apareceu
como quem desceu do Cinturão de Vênus com um chega-pra-cá surpreendente e era Ana Karina belamente nua e alheia, como a Faustine indiferente a se avizinhar com
a ameaça do Super El Niño do Pacífico e um eclipse anular, quando, na verdade nada
mais era que uma sobrevivente dos atentados às mulheres de Santa Teresa, debulhadas nos crimes insolúveis
de Roberto Bolaño. Afinal, sua presença era alvissareira, apesar de
fazer pouco caso. Deu meia volta à beira do precipício e me encarou docemente
com seu ar Kathleen Burke na pele de Lota, a mulher
pantera voluptuosa, pronta para me estraçalhar. Cedi aos seus encantos e me
deixei levar por sua sedução, rendido aos seus sutis apelos - mesmo sabendo que
nunca mais estiaria ali, o único abrigo possível. Depois de um longo abraço
mostrou-me o crepúsculo. Era sinal de que não precisava me levantar, pois
estava à beira da tragédia, relegado a Asfódelos e a me fazer tomar na torneira aberta as águas apagadoras da
memória. Enfim, anoiteceu com a promessa dela de um outro dia, sabia: era como
se eu virasse a cara pro perigo. Nada mais, nada menos. Nem me importei, não
esperaria findar, só restava a generosidade dela. Então, preferi nela sonhar voos.
DITOS &
DESDITOS
Imagem: AcervoLAM.
[...] Provavelmente
a felicidade implica sempre uma poesia do mundo. [...] Não vejo outra
maneira de reconquistarmos um sentido de felicidade que seja pleno, que não vá
por esse caminho de nos restituir um olhar poético. O olhar poético não é
alguma coisa que tenha a ver com a poesia escrita ou como gênero literário, mas
tem a ver com aceitarmos que essa linguagem dos sonhos é uma linguagem válida,
que nos ajuda a ler o mundo. [...].
Trecho extraído
do discurso O poder de contar e ouvir histórias (Fronteira, 2017)
do escritor e
biólogo moçambicano Mia Couto, falando sobre a importância de escutar
histórias para o despertar da criatividade e o desenvolvimento da expressão.
Noutro trecho do discurso: Contar história para tomar posse do mundo,
ele expressa que: [...] Esta possibilidade de estarmos juntos, à volta das
histórias e dos livros, é quase um ato político. Eu vivi num regime de ditadura
e até os meus 20 anos era proibido haver ajuntamentos de mais de oito pessoas.
Celebrar, conversar, debater ideias e o nosso mundo é já um ato de resistência,
em que dizemos: nós estamos aqui. As pessoas começaram a relatar o que haviam
sofrido e eu pensava: sou um privilegiado, não vão me deixar entrar. Tive tempo
de pensar numa frase – ‘sofri porque vi os outros sofrer’ –, mas quando cheguei
lá fiquei engasgado e não disse coisa nenhuma. Um dos homens que estava na mesa
perguntou-me: você é aquele jovem que publica poemas no jornal? Então pode
entrar, nós precisamos da poesia. Eu comecei por escutar, ainda hoje escrevo
porque escuto. Essa dificuldade de nos apagarmos para ouvir realmente o outro,
não só a palavra, mas o silêncio do outro, o corpo, as pausas, esse é o
segredo. Por outro lado, falta fazer com que a escola seja mais viva, mais
inquieta, onde os meninos possam dizer coisas, serem mais sujeitos de si
próprios. Somos feitos de histórias, assim como somos feitos de células.
[...]. Veja mais aqui e aqui.
LEITURA & SOCIALIZAÇÃO – Durante as pesquisas
efetuadas merece destaque uma obra importante: A
importância do ato de ler (Cortez, 1989), de Paulo Freire. Nela o
autor expressa: [...] a leitura crítica da realidade, dando-se num processo
de alfabetização ou não e associada sobretudo a certas práticas claramente
políticas de mobilização e de organização, pode constituir-se num instrumento
para o que Gramsci chamaria de ação contra-hegemônica. Concluindo estas
reflexões em torno da importância do ato de ler, que implica sempre percepção
critica, interpretação e “re-escrita” do lido, gostaria de dizer que, depois de
hesitar um pouco, resolvi adotar o procedimento que usei no tratamento do tema,
em consonância com a minha forma de ser e com o que posso fazer [...] O
Brasil foi “inventado” de cima para baixo, autoritariamente. Precisamos
reinventá-lo em outros termos. [...]. Diante dessas afirmações, duas outras
complementaram minhas reflexões. A primeira de Michel Foucault: Existem momentos na
vida onde a questão de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa,
e perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para continuar a olhar
ou a refletir. A outra extraída da obra Pedagogia profana – danças
piruetas e mascaradas (Autêntica, 1999), de Jorge Larrosa, na qual
ele afirma: [...] O sentido do que somos depende das histórias que contamos
e das que contamos de nós mesmos [...], em particular das construções
narrativas nas quais cada um de nós é ao mesmo tempo, o autor, o narrador e o
personagem principal. [...]. E ambas me levaram a uma outra leitura: Dicionário do pensamento social do século XX (Jorge Zahar, 1996), de William Outhwaite: [...] Os
processos pelos quais os seres humanos são induzidos a adotar os padrões de
comportamento, normas, regras e valores do seu mundo social são denominados
socialização. Começam na infância e prosseguem ao longo da vida. A socialização
é um processo de aprendizagem que se apóia, em parte, no ensino explicito e,
também em parte, na aprendizagem latente – ou seja, na absorção inadvertida de
formas consideradas evidentes de relacionamentos com os outros. [...]. Depois
da família, as principais agências socializantes nas sociedades ocidentais são:
a escola e os grupos dos pares, o ingresso na vida econômica, a exposição aos
veículos de comunicação de massa, o estabelecimento de uma família e o
casamento, a participação na vida comunitária organizada e, finalmente, as
condições de aposentadoria. [...]. Foi com isso que me certifiquei do quão
importante é ler e contar hestórias. Veja mais aqui e aqui.
CONTAR & OUVIR HESTÓRIAS – Foi com
Mário Vargas Llosa que apreendi: Contar histórias é uma atividade
primordial, uma necessidade da existência, uma maneira de suportar a vida. Para
conhecer o que somos, como indivíduos e como povos, não temos outro recurso do
que sair de nós mesmos e, ajudados pela memória e pela imaginação, projetar-nos
nessas ficções; é refazer a experiência, retificar a história real na direção
que nossos desejos frustrados, nossos sonhos esfarrapados, nossa alegria ou
nossa cólera reclamem. Daí pros estudos de Fanny Abromovich,
sobretudo a sua obra Literatura Infantil:
gostosuras e bobices (Scipione, 2003), na
qual pude apreender: [...] é através de uma história, que se pode descobrir
outros lugares, outros tempos, outros jeitos de agir, ser, outra ética, outra
ótica. É ficar sabendo de história, geografia, filosofia política, sociologia,
sem precisar saber o nome disso tudo e muito menos achar que tem cara de aula
[...] Contar histórias é uma arte [...] e tão linda! É ela que
equilibra o que é ouvido com o que é sentido, e por isso não é nem remotamente
declamação ou teatro [...] Ela é o uso simples e harmônico da voz.
[...] Ouvir histórias é um momento de gostosura, de prazer de divertimento
dos melhores... É encantamento, maravilhamento, sedução [...]. E ela é
(ou pode ser) ampliadora de referenciais, postura colocada, inquietude provocada,
emoção deflagrada, suspense a serem resolvido, torcida desenfreada, saudades
sentidas, lembranças ressuscitadas, caminhos novos apontados, sorriso
gargalhado, belezuras desfrutadas e as mil maravilhas mais que uma boa história
provoca [...] (desde que seja uma boa história)... Quem não gosta de
ouvir ou contar hestórias? Veja mais aqui.
VOOS
Imagem: AcervoLAM.
Quando
criança bastava dormir \ e logo pular bem alto \ flutuar próximo às nuvens\ demandando
apenas um leve impulso\ com o tempo os vôos se tornaram rentes ao chão \ como
quem nada em uma piscina rasa\ apesar do grande esforço para pulos mais altos
que não\ ganham impulso suficiente para voar\ ainda assim despertavam o desejo
de voltar\ enquanto crescia, voar\ mergulhar ou dirigir se confundiam\ mas
bastou crescer para que o vôo se tornasse\ o de uma bruxa caricata em sua
vassourinha medíocre:\ confuso\ cansativo\ invisível. \ melhor acordar.
Poema da
poeta e professora Tatiana
Leal.
A ASSINATURA DE TODAS AS COISAS – [...]
Gostaria de passar o
resto dos meus dias em um lugar tão silencioso – e trabalhando em um ritmo tão
lento – que pudesse me ouvir vivendo. [...] Leve-me
a algum lugar onde possamos ficar juntos em silêncio. [...] Veja, eu
nunca senti a necessidade de inventar um mundo além deste mundo, pois este
mundo sempre me pareceu grande e bonito o suficiente. Tenho me perguntado por que não é
grande e bonito o suficiente para os outros – por que eles devem sonhar com
esferas novas e maravilhosas, ou desejar viver em outro lugar, além deste
domínio... mas isso não é da minha conta. Somos todos diferentes, suponho. Tudo o que sempre quis foi conhecer este mundo. Posso dizer agora, ao chegar ao meu
fim, que sei um pouco mais do que sabia quando cheguei. Além disso, meu pouco conhecimento
foi adicionado a todos os outros conhecimentos acumulados da história –
adicionados à grande biblioteca, por assim dizer. Isso não é pouca coisa, senhor. Qualquer um que pode dizer tal coisa
viveu uma vida feliz. […]. Trechos extraídos da obra The Signature of All Things (Riverhead Books, 2014), da escritora e
jornalista estadunidense Elizabeth Gilbert.
A MENINA QUE ROUBAVA LIVROS – [...] Eu queria contar muitas coisas para
a menina que roubava livros, sobre beleza e brutalidade. Mas o que eu poderia dizer a ela
sobre essas coisas que ela ainda não sabia? Eu queria explicar que estou constantemente superestimando e subestimando a
raça humana – que raramente eu simplesmente a estimo. Eu queria perguntar a ela como a
mesma coisa poderia ser tão feia e tão gloriosa, e suas palavras e histórias
tão condenatórias e brilhantes. [...] Odiei palavras e as amei, e espero tê-las corrigido. [...] Como a maioria das
misérias, começou com aparente felicidade. [...] Eu sou assombrado por
humanos. [...] Até a morte tem um coração [...] Imagine sorrir
depois de um tapa na cara. Então
pense em fazê-lo vinte e quatro horas por dia. [...] Ela o beijou longa e
suavemente, e quando se afastou, tocou a boca dele com os dedos... Ela não se
despediu. Ela era incapaz e, depois de mais
alguns minutos ao lado dele, conseguiu se desvencilhar do chão. Espanta-me o que os humanos podem
fazer, mesmo quando os riachos correm por seus rostos e eles cambaleiam... […]. Trechos extraídos da obra The Book Thief (Alfred A. Knopf, 2007), do escritor australiano Markus
Zusak.
Por que
inventar estórias quando a mais importante era a minha?
Aprendi os
primeiros cantares do povo e armazenei poesia para transfigurar a cidade em que
sofri e penei, fui alegre e chocarreiro, feliz e humilhado, transfigurá-la nos
meus romances e nas minhas novelas...
Trechos de
depoimentos de Hermilo Borba Filho, recolhido da obra Lendo Hermilo
Borba Filho: fisionomia e espírito de uma literatura (Atual, 1986), da
poeta e professora Sonia van Dijck. Veja mais aqui, aqui, aqui e aqui.