TRÍPTICO DQC: VIDOUTRA
– Ao som de Raua
needmine (Curse Upon Iron, 1972), do compositor estoniano Veljo
Tormis (1930-2017): Não sou eu que faço uso da música folclórica,
é a música folclórica que faz uso de mim. – Estou só e a inquietude de tudo
corre no meu sangue, poros, vísceras, interstícios. Alguém ronda o meu espaço,
procuro e me deparo com olhos um tanto amedrontados que flagram uma flor num
canto da janela. São olhos em todas as direções que pousam insistentemente na
flor e logo se perdem em busca de algo indistinguível e, como o heresiarca de Uqbar, parecem abominar a
cópula, o espelho e, também, a fotografia e os mortos que parecem perseguir
seus passos. Nada dizem além das apreensões. Seus pensamentos dialogam com os
meus e me dizem da sua infeliz situação de ser quem é, deseja ser outro, não
aquilo a que estava reduzido. Interrogo com o olhar. Silencioso e com emissões
de insatisfações por toda sua expressão responde tácito. De repente dá um chute
na flor e distancia-se até sumir na escuridão. Idiota! Pela margem esquerda
identifico a aproximação do escritor hondurenho Augusto
Monterroso (1921-2003): Acredite em você, mas
não tanto; duvide de você, mas não tanto. Na dúvida, acredite; Quando você
acreditar, duvide. Nisto reside a única sabedoria verdadeira que pode
acompanhar um escritor. Um tapinha às minhas costas, um cumprimento com um
sorriso contido e boa noite. Volto ao panorama da janela e mergulho em meus
pensamentos, até ser surpreendido pela bela jornalista franco-belga Valérie Dupont: Somos uma geração que viveu uma pandemia,
mas também não era exatamente uma guerra. Para
mim quase, não há como me defender do algoz invisível. Ela sorri, contempla o
céu e o seu olhar maravilhado me contamina. Extasiado com sua companhia
inesperada, a satisfação é maior e o visto até agora é nada diante do momento.
MEMENTO
EXCADESCERE - Imagem: A arte da performática artista visual Marta Oliveira - Ao som do Ballet Fantasia: Simbolismo e vivência do Jardim Botânico do Rio de
Janeiro (1976), da
compositora, pianista, violinista, maestrina e educadora musical Lycia de
Biase Bidart (1910-1991) – A sua chegada ali me trouxe fiapos de ótimas
lembranças e pudemos conversar por horas a fio, risadas e surpresas com a
deposição de algumas situações vexatórias a qual me submeti durante toda minha
vida. Simpaticamente receptiva, levou-me a encará-la e sua feição era a da
poeta e tradutora russa Marina
Tsvetáieva (1892-1941) a me dizer sorridente: Um engano que nos eleva é mais caro do que uma série de
verdades baixas. A conversa rolou: os males da guerra, o mal-estar
diante da pobreza e da miséria, os desgovernos e a prestidigitação política do
poder, a destruição da Natureza, o desencanto e, enfim, as perspectivas
escatológicas. Inevitavelmente a nossa interlocução foi levada às paixões e
amores, ao que ela inquiriu: Qual é a
principal coisa no amor? Para saber e se esconder. Para saber sobre quem você
ama e esconder que você ama. Às vezes, esconder (vergonha) vence o saber
(paixão). A paixão pelo oculto - a paixão pelo revelado. E sorriu
lindamente. Essa dicotomia nos levou ao ápice na discussão e eu havia me
lembrado de esquecer tudo que passou, precisava disso com a urgência de viver.
Deslembrar, simplesmente.
MARE NOSTRUM - Imagem: A arte da artista visual & ilustradora Luda Lima. Ao som de Novo amor, da compositora brasileira Najla Jabor (1915-2001), na
interpretação de Flávio Bastos Abbas (canto) e
Anderson Daher (piano). – Memorações e remorsos se diluíam diante do seu olhar
receptivo. E ela era agora a escritora francesa Louise-Victorine Akermann (1813-1890): Como é insuficiente o coração humano! Um longo amor acaba por cansar. Frase quase
desapontadora, temia o descarte. Para quem entre sucumbências e devires
bordejou as tantas e profundas águas revoltas das paixões, uma trajetória
carregada de alheios pruridos, fobias e libertinagens, não foi brincadeira, entendia
mesmo e muito do riscado. Percebi que ela mantinha entre as mãos o livro Quand
les femmes s'éveilleront... (Albin Michel,
2008), da psicóloga, escritora e jornalista francesa Valerie Colin-Simard. Abriu o volume, folheou e numa leitura
apurada foi encantando meus ouvidos às indagações: E se o feminismo apenas nos tivesse dado o direito de ser
como os homens? Hoje devemos ser ativas, eficientes, competitivas, conquistadoras.
Voltamos - como um só homem - ao molde do padrão masculino. Resta-nos hoje
reabilitar um feminino há muito denegrido, amordaçado. Ousar o feminino também
é ousar ser você mesmo. É também ousar a emoção, a vulnerabilidade, o vínculo,
o amor, essenciais ao nosso equilíbrio físico e psíquico e da empresa. Às vezes
também é ousar assumir a própria vulnerabilidade, para receber e não apenas
doar, ser mulher sem necessariamente ser mãe. Graças às feministas, as mulheres
agora são liberadas na sociedade. No trabalho como na vida privada, é hora de
ousar apresentar esses valores do feminino com mais respeito pela nossa
humanidade. Um novo feminismo? Imaginava tudo que
dissera misturado ao fascínio que ela exercia sobre mim. Diante do meu
silêncio, usou do escritor mexicano Andrés Henestrosa (1906-2008):
O
amor é a loucura mais lúcida que o homem tem... Nada mais aconchegante que ouvi-la noite adentro coroando o amor que
nos enfeitiçava com o gosto de eternidade. Até mais ver.
A MÚSICA DE CHICO SCIENCE
O sol nasce e ilumina / As pedras evoluídas / Que cresceram com a força / De pedreiros suicidas / Cavaleiros circulam / Vigiando as pessoas / Não importa se são ruins / Nem importa se são boas / E a cidade se apresenta / Centro das ambições / Para mendigos ou ricos / E outras armações / Coletivos, automóveis, / Motos e metrôs / Trabalhadores, patrões, / Policiais, camelôs / A cidade não pára / A cidade só cresce / O de cima sobe / E o de baixo desce / A cidade se encontra / Prostituída / Por aqueles que a usaram / Em busca de uma saída / Ilusora de pessoas / De outros lugares, / A cidade e sua fama / Vai além dos mares / E no meio da esperteza / Internacional / A cidade até que não está tão mal / E a situação sempre mais ou menos / Sempre uns com mais e outros com menos / A cidade não pára... / Eu vou fazer uma embolada, / Um samba, um maracatu / Tudo bem envenenado / Bom pra mim e bom pra tu / Pra gente sair da lama e enfrentar os urubus / Num dia de sol, Recife acordou / Com a mesma fedentina do dia anterior.
A cidade, música do cantor e compositor Chico Science (Francisco de Assis
França – 1966-1997), um dos principais colaboradores do movimento Manguebeat e
líder da banda Nação Zumbi, com quem
lançou dois álbuns Da lama ao caos (1994)
e Afrociberdelia (1996). Veja mais aqui,
aqui e aqui.