sexta-feira, novembro 20, 2020

HARUKI MURAKAMI, JUDITH MCNAUGHT, CATHY O'NEIL, MARIA DE MEDEIROS, RUUD KOOPMANS & JANAÍNA ESMERALDO


  

TRÍPTICO DQC: JANELÍRICA – Ao som do Concerto nº 3 in C major, Op. 26, do Sergei Prokofiev, com a legendária pianista Martha Argerich e a Singapore Symphony Orchestra Recorded, regida por Darío Alejandro Ntaca, ao vivo no Esplanade Concert Hall, Singapore, 2018. - Estava em um local em que havia apenas uma única porta para entrada e saída. Mal cheguei e fui recepcionado por uma mulher de beleza misteriosa, vestida numa túnica transparente de ver-lhe as proporções corporais. Estendeu-me a mão com um sorriso e disse-me: Você só está aqui porque foi predestinado para essa honra por nascimento ou golpe do destino. Se você possui a capacidade de sonhar e de acreditar nele, seja bem-vindo. Assenti e me acompanhou no embarque com uma caravana até a fronteira. Na alfândega, ela conduziu para um funcionário que me deu dinheiro e uma passagem de trem para a capital. Ele perguntou-me pela mala e eu apenas com as mãos abanando. Ela fez um cumprimento para ele e me puxou: Vamos para Perla! Durante a viagem me explicou que não é permitido ali nada novo, só se usa o que for de segunda mão. Como eu só tinha a roupa do couro e a coragem, a minha admissão se deu sem muita burocracia. E foi me contando sobre as coisas dali, de gente espiritualizada que possui a consciência das inter-relações de seus mundos individuais e acreditam apenas em seus próprios sonhos. Pude ver algumas cenas estranhas, como a cópula de um gorila que mordia inexoravelmente a cabeça de uma submissa e fogosa mulher nua. Mais adiante me deparei com uma mulher simpática com corpo de caveira e faces, barriga enorme e pernas humanas. Vi passar The Lady on the Horse, como também uma mulher nua deitada de quatro e com as ancas empinadas diante de uma gigantesca cobra com cabeça de tigre. Do outro lado, um cachorro gigante priápico que encurralava uma jovem donzela nua e indefesa que seria por ele estuprada. Mais adiante presenciei o estupro de uma camponesa da Morávia, assistida pela mulher que casou com um elefante e um grupo de homens estupradores com muitas mulheres nuas numa igreja. Antes que me impressionasse com o que via, ela, ao meu lado, passou-me um livro, cujo título estava grafado The other side - Die andere Seite: ein phantastischer Roman (Berlim, 1908), do ilustrador e escritor austríaco Alfred Kubin (1877-1959). Folheei e a narrativa era repleta de ilustrações, muitas delas registrando exatamente todas as cenas que vi durante a viagem. Chegamos, Florian! Hem? Sou Anna Sand, vamos antes que o estranho continue nos seguindo. Quem? Vamos realizar nossos sonhos: a liberdade absoluta! Perla? Não, El Dorado. Um anão nos recepcionou e nos abriu a porta para uma localidade barroca carregada de bizarrices e devassidão. Vi as faces dela afogueada e apertava minha mão com se os desejos e vontades desenfreadas acometessem seu ser. Foi então que explicou ser ali o Reino dos Sonhos, um refúgio para os insatisfeitos, todas as necessidades materiais são dadas de mãos beijadas, todas. Esta localidade foi fundada no final de século XIX pelo extravagante caçador Klaus Patera que, em um confronto com o raríssimo tigre persa, foi ferido e só curado pelo chefe de uma estranha e rara tribo isolada que praticava ritos excêntricos e indescritíveis. Foi ele quem construiu Perla e depois separou seu reino do mundo circundante com uma grande muralha, guarnecido por fortificações poderosas. Pude perceber pelas paisagens que uma parte território era montanhosa e, a outra, plana com colinas, grandes florestas, um lago e um rio. As coisas mudavam a cada passagem, agora tudo se parecia com o cenário do Traumstadt (1973), a versão do livro que eu levava e que foi dirigido pelo cineasta alemão Johannes Schaaf (1933-2019). Fiquei assustado e logo me percebi noutro sonho do reino quando ela me chamou de Lobo Negro. Era ela mesma, só que agora se chamava Jennifer e mudava meu nome vez outra, me tratando também por Royce. Demorei a entender que ela era uma rebelde prisioneira em busca do amor e que só o encontrou em mim, o seu captor. Como? Ela então me abraçou com um beijo irresistível e demorado. Não sei se pelo movimento das pessoas por perto, ou se algo a fez sair avisando que logo voltaria, me entregando outro livro: Um reino de sonhos (Bertrand Brasil, 2018), da escritora estadunidense Judith McNaught. Comecei a lê-lo sem perder a noção de que tudo mais mudava ao meu redor. Intrigado com tudo que me ocorria, a autora deste livro sentou-se ao meu lado, se apresentou e disse: Existirão algumas vezes na sua vida em que todos os seus instintos lhe dirão para fazer algo, algo que desafia a lógica, perturba seus planos, e pode parecer loucura para os outros. Quando isso acontecer, você deve fazê-lo. Ouça seus instintos e ignore tudo o resto. Ignore a lógica, ignore as probabilidades, ignore as complicações, e apenas vá nessa. Ela sorriu e saiu sem se despedir. Voltei à leitura e me senti bastante sonolento. Deveras, cansado de tantas acontecências e da loucura dos sonhos.


 

LIRISMO & ARMAS DE DESTRUIÇÃO – Ao som da Symphony nº 1 - Chimera (2006), de Lera Auerbach, witch Düsseldorfer Symphoniker, conductor John Fiore. - Meus dias foram noites ininterruptas e, apesar da monstruosidade e do alarido dos horrores, os pássaros cantavam ao Sol. Isso era raro e maravilhoso para quem só sabia máquinas, buzinas, motores, ventoinhas, luminosos, pigarros e cuspidas. E o mote era: quem foi, foi; que não, ficou. Quem voltou, que vá. Senão, não. Tudo fenece ao sabor dos disparos de armas destrutivas. É o que alerta a matemática, cientista de dados e escritora estadunidense Cathy O'Neil, com a publicação do seu livro Weapons of Math Destrution (Crown, 2016): Os privilegiados são analisados por pessoas; as massas, por máquinas. Algoritmos sempre funcionam bem para as pessoas que os projetam, mas não sabemos se funcionam bem para as pessoas-alvo desses algoritmos. Com algoritmos, estamos tentando transcender o preconceito humano, estamos tentando lançar uma ferramenta científica. Se eles falham, eles fazem a sociedade entrar em um ciclo destrutivo, porque eles aumentam progressivamente a desigualdade. É o que o sociólogo holandês Ruud Koopmans também considera ao observar no seu Movements and Media: Selection Processes and Evolutionary Dynamics in the Public Sphere (Theory and Society. 2004), que a partir das definições de visibilidade, ressonância e legitimidade, ou seja, visibilidade como extensão da cobertura que os veículos de comunicação de massa dedicam a determinado tema; ressonância como a capacidade de um tema gerar debate; e legitimidade como o tema gerando consenso a respeito de si mesmo; para concluir, sob esta perspectiva, que os discursos polarizadores tendem a ter mais visibilidade e ressonância na esfera pública pelo fato de não serem, em sua maioria, consensuais ou legítimos, gerando debate e focalização do assunto. Sim. Para onde nós vamos? Não sei, desconfio que nada de bom sairá disso tudo.

 


ELA, MARIA – Curtindo Caso de amor, música de Milton Nascimento & Wagner Tiso, na voz da atriz, cineasta e cantora portuguesa Maria de Medeiros. - Ela chegou cantarolando com sotaque lusitano, um beijo e um toque suave. Meu coração era só retreta e fogos de artifícios em sua saudação. Diante do meu entusiasmo, disse-me toda Anais Nïn: A vida se contrai e se expande proporcionalmente à coragem do indivíduo. Não vemos as coisas como são: vemos as coisas como somos. A nossa vida em grande parte compõe-se de sonhos. É preciso ligá-los à ação. E rodopiou, saias aos ventos seios livres, para o prazer do meu sonho de tê-la a todo instante, nua e lindamente exultante, entre meus beijabraços, como pássaros eternos por penínsulas e continentes. Depois de afagozos, afastou-se um pouco e recitou do escritor japonês Haruki Murakami como se fosse uma revelação: A coisa mais importante que aprendi na escola é o fato de que as coisas mais importantes não podem ser aprendidas na escola. Seja lá o que esteja procurando, não virá da forma que você está esperando... No fundo, todos aguardam o fim do mundo. Era ela a poesia viva, nada mais tão real quanto ela olhos grandes riso largo em mim. E veio até mim, saltitante Nadime Gordimer: A poesia é ao mesmo tempo um esconderijo e um alto-falante. A solidão da escrita é muito assustadora. Está muito perto da loucura, desaparecemos por um dia e perdemos o contato. Sim, sempre nos perdemos. E reconstruímos o mundo que era só nosso e em nós, e nos refizemos conosco mútua e solidária com a nossa loucura repleta de vida. Até mais ver.

 

A ARTE DE JANAÍNA ESMERALDO

A arte da quadrinista e ilustradora Janaína Esmeraldo, autora da newsletter de quadrinhos Cabelo-nuvem e dos zines independentes Frutila – quadrinhos autobiográficos; Cosmo – uma história de amor futurista; e O Polegar de Ouro – uma história única e autobiográfica. Veja mais aqui e aqui.