quinta-feira, novembro 19, 2020

GUIMARÃES ROSA, MAGDA SZABÓ, IMRE MADÁCH, EMMA LAZARUS, HIROSHI OSAKA, ÁGNES BERTALAN, HERMILA GUEDES & LAGO DOS SONHOS

 

TRÍPTICO DQC: JANELONÍRICA – Ao som da abertura d’A Louca, do compositor, maestro e professor Elias Alvares Lobo (1834-1901), com a Orchestra: Orquesta Sinfonica Nacional da Radio M.E.C., condutor Alceo Bocchino. – Adormeci ainda cedo da noite e logo um sonho para lá de estranho. Não sei como fui parar num hospital e sentei-me numa poltrona da sala de espera. Sem perceber fui picado por uma seringa que fez o mundo girar e eu como se estivesse a bordo de um eritrócito navegava por correntes sanguíneas. Apareceu uma senhora jovem muito bonita e vestida à moda oriental. Ela criava palavras de três letras de um alfabeto de apenas quatro, manipulando todas as combinações possíveis, diante de tabletes de argila vitrificada. Uma mão me puxou pelo braço e fui conduzido a subir os degraus de uma escada até chegar ao topo e recepcionado por um homem corpulento que nunca vi. Vestido de um blazer com o escudo da Universidade de Cambridge, estava acompanhado de um outro muito desalinhado com seu tênis sem cadarço. Ambos me conduziram a uma visita pela dupla hélice, o núcleo e os compartimentos citoplasmático. Era tudo muito estranho. Ao retornar recebi o auxílio de um gigantesco mensageiro para uma viagem em movimentos brownianos levados pela agitação molecular de partículas coloidais por um ambiente homogêneo de baixa densidade. Não entendia nada. E me deparei numa praia de músculos na qual doutos professores dialogavam estranhos problemas científicos. Maravilhado com o cenário, fui então informado de que aquela dama oriental que vira anteriormente, nada mais era que a dama Enzima, na verdade, senhorita DNA polimerase, que presidia a replicação do código genético. A escada que eu percorri, era dela, a do DNA. Lá me explicaram que ali era o Lago dos Sonhos, local onde se cantam fórmulas mágicas que fazem com que as nuvens assumam formas fantásticas. De fato, ao recitar o estranho cântico, logo se faziam das nuvens imagens de dinossauros, gliptodontes e pterodátilos às travessuras no céu. Ao acompanhar os discursos daqueles sábios, uma inhaca me incomodava, fedentina terrível. Um deles me explicou ser estrume. Sim? Respondeu-me cortesmente que os bois são animais atômicos que funcionam da mesma maneira que centrais nucleares de alta performance. E? É que o resíduo é fertilizante e a energia que usam vem indiretamente do sol por meio das plantas que comem. Ah, tá. Curiosamente tive outras explicações muito informativas, como, entre outras, a respeito da matemática da combinação dos genes, coisas que mais pareciam aulas de ciências do ginasial e colegial, nem lembrava mais. Não sei como retornei são e salvo. Dei pela presença do físico ucraniano George Gamow (1904-1968), que apertou forte minha mão com um riso largo e foi me questionando a respeito da viagem ao lago, se havia gostado ou não, estava curioso e nem me deixava falar de tão entusiasmado com minha experiência, a ponto de me informar entre perguntas irrespondíveis e gargalhadas soltas, que ali era o único do mundo em que é possível se pescar enquanto faz um curso geral sobre termodinâmica aplicada à biologia. Hem? Ele mais rio. E muito. Foi logo me presenteando a obra Mr. Tompkin inside himself, adventures in the new biology (Allen & Unwin, 1967), dele em parceria com o microbiologista lituano Martynas Yčas (1917-2014). Nossa, que sonho estranho! Lembrei do Quintana: Sonhar é acordar-se para dentro. E foi exatamente isso que me ocorreu. Chaplin passou e me disse em tom satírico o cochicho: Falar sem aspas, amar sem interrogação, sonhar com reticências, viver sem ponto final. Mais mordaz ainda foi a inesperada chegada de Shaw: Alguns homens veem as coisas como são, e dizem 'Por quê?' Eu sonho com as coisas que nunca foram e digo 'Por que não?'... Acho que estou ficando louco no meio da minha interminável solidão. Nisso aparece Anatole France: Para realizar grandes conquistas, devemos não apenas agir, mas também sonhar; não apenas planejar, mas também acreditar. Sei, com esses encontros e desencontros, me sinto o sujeito mais perdulário. Nada não, sei que a vira gira num redemoinho sem fim, não há como escapar: sempre se volta por onde passou.

 


A TRAGÉDIA DO HOMEM - Ao som do The Poem of Ecstasy, Op. 54 (1905-08), de Alexander Scriabin, played by the Philharmonia Orchestra and conducted by Esa-Pekka Salonen (2010). - Ela chegou nua ao amanhecer. Era Eva n’A tragédia do homem (1860 - Salamandra, 1980), de Imre Madách. Na cena escura ela recitou um trecho da cena II: E embora a luz do céu se apague no alto, aqui embaixo eu a encontro nos teus olhos: onde mais a encontrar, se não em ti, eu que devo o meu ser ao teu anseio? Se até o Sol, com seu jorro de luz, para não ficar só no mundo, pinta a própria imagem no lençol das águas e, alegre de ter par, com ela brinca, generoso a esquecer que é simplesmente um reflexo da sua própria luz, que, sem ela, se apagaria logo! Aproximou-se e quase senti sua respiração compassada num trecho da cena IV ao meu ouvido: Me esmaga, Faraó, mas me perdoa se a dor do povo não me deixa em paz! Sei muito bem que sou escrava tua e vivo só para te dar prazer, esquecer tudo o que existe em redor - grandeza e miséria, ilusão e morte - para ter riso alegre e beijo ardente. Mas quando o povo, este ser de mil braços. geme lá fora ao estalar do açoite, eu, filha do povo, e dele arrancada como um pedaço de um corpo doído, sinto em meu peito o que ele inteiro sofre. Deu uma volta ao meu redor e na minha nuca sussurrou um trecho da cena V: Na alma da gente há uma voz muito alta: a ambição! No escravo, ela está dormindo, ou, em tão baixo nível, gera o crime. Mas, provando o sangue da liberdade, é uma virtude cívica que esplende no que há de mais digno e mais grandioso. Quando é forte demais, vira-se contra a própria mãe - e uma das duas morre. Se em teu pai essa voz fosse mais forte e o levasse a trair a pátria amada, seria a maldição! Rezemos, filho! Deu mais uma volta e outra como se investigasse minha atenção. Não sei como, ouvi Lúcifer: Não passa o tempo: nós é que mudamos. Sim e ela já era a atriz húngara Ágnes Bertalan na adaptação fílmica em animação da peça, Az ember tragédiája (2011), dirigida por Marcell Jankovics. E me envolveu num longuíssimo sonho em que eu era Adão levado pelo falante Lúcifer numa visita às grandes civilizações do mundo a questionar sobre o significado da vida. Logo sou o Faraó Djoser que me apaixono por Eva agora uma escrava, e sou Milcíades conenado à morte, sou Tancredo iconoclasta, sou Kepler buscando a sabedoria, sou o sanguinário Danton e desperto entre ideias duradouras e poderosas. Não sou nada diante do penhasco. E ela, agora Magda Szabó me diz baixinho: Deus geralmente nos ignorava quando pedíamos algo, mas invariavelmente concedia o que temíamos. Eu ainda era bastante jovem, e não tinha pensado sobre isso, quão irracional, quão imprevisível é a atração entre as pessoas, quão fatal é sua corrente. Então ela afastou-se e à porta: Vem!

 


ELA OMNIRIDESCENTE – Imagem: do fotógrafo japonês Hiroshi Osaka. Curtindo o album Life Goes On (ECM, 2020), de Carla Bley with saxophonist Andy Sheppard and bass guitarist Steve Swallow. - Ela me leva pela mão e sua nudez reluz na minha gula. Num canto da sala ela me beija, vira-se de costa e me leva a comprimí-la contra a parede. Leva a minha ao seu sexo úmido e a outra a acariciar seus seios, enquanto ela me diz da poeta estadunidense Emma Lazarus (1849-1887): Parece que sempre tenho uma pequena janela voltada para a vida. Até que sejamos todos livres, nenhum de nós é livre. A poesia deve ser simples, sensual ou apaixonada. E mais se contorcia com o meu contato, meu sexo remexendo por sua carne caudalosa. Sussurrou excitada João Guimarães Rosa: É preciso sofrer depois de ter sofrido, e amar, e mais amar, depois de ter amado. Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa. Felicidade se acha é em horinhas de descuido. Viver é etecetera. E o amor se fez entrega e a vida mais que eterna em nós. Até mais ver.

 

A ARTE DE HERMILA GUEDES

Quero personagens que me transformem. Tive sorte por ter surgido trabalhos maravilhosos para mim. Mas também escolho personagens que me desafiam como atriz. Como não estudei artes cênicas, a minha escola é o trabalho, a maneira como sou conduzida pelos diretores é onde aprendo. Escolho personagens que me desafiam como profissional e como pessoa, que me transformam, que possam acrescentar e com os quais eu possa aprender muita coisa.

A arte da atriz Hermila Guedes, que estreou no teatro com a peça A Duquesa dos Cajus (1999) e depois atuou nas peças teatrais: Noite Feliz (2000); Paixão de Cristo (2001-2005), Meia Sola (2003); Angu de Sangue (2004); e, no ano seguinte, Três Viúvas de Arthur. Atuou em filmes como Cinema, Aspirinas e Urubus, de Marcelo Gomes e daí por diante vários filmes levaram-na para a televisão, atuando em especiais e telenovelas da TV Globo. Veja mais aqui e aqui.