quarta-feira, novembro 18, 2020

FERNANDO PESSOA, MARGARET ATWOOD, TOULA LIMNAIOS, CHE GUEVARA, LULA CARDOSO AYRES & SANDRA FILARDI


  

TRÍPTICO DQC: JANELA DOS SONHOS - Curtindo Pepperland, song by George Martin from the album Yellow Submarine (1968), The Beatles. - À janela os meus sonhos são muitos e vãos no crepúsculo. Estou perdido e diante de um templo repleto de morcegos sobre a selva cerrada de mandrágoras e papoulas gigantescas. O acesso é difícil e se parece distanciar o tempo inteiro. As altas muralhas exibem todas as cores do arco-íris e duas fontes jorram junto aos portões. Onde estou não sei nem o que fazer diante deste espetáculo. Luciano de Samósata surgiu em meu socorro, esclarecendo ser essa a Ilha dos Sonhos. O templo é da deusa da Noite e os morcegos são os seus pássaros. Uma das fontes é a do Sono Eterno e, a outra, a Noite Profunda: nelas a nascente do rio Viajante Noturno. A partir disso mostrou-me as portas do campo da Indolência pelas quais escapam sonhos terríveis, homicidas e pecaminosos; outras, como as de chifre, dão para o mar por onde passam sonhos verdadeiros; das de marfim brotam apenas os falsos sonhos. Não consegui ver nenhum habitante, mas ele me falou que possuem diversos aspectos, alguns pequenos, feios e desagradáveis; outros têm asas ou rostos espantosos. Logo percebi que não só ele, como outros povoavam o meu momento, a exemplo de um passante que logo reconheci, Fernando Pessoa e me falou: Tenho em mim todos os sonhos do mundo. De sonhar ninguém se cansa, porque sonhar é esquecer, e esquecer não pesa e é um sono sem sonhos em que estamos despertos. Logo apareceu Goethe: Gosto daquele que sonha o impossível. Ao lado dele, Edgar Allan Poe: Quem sonha de dia tem consciência de muitas coisas que escapam a quem sonha só de noite. Em seguida, Marcel Proust: Se sonhar um pouco é perigoso, a solução não é sonhar menos é sonhar mais. Mais vale sonharmos a nossa vida do que vivê-la, embora vivê-la seja também sonhar. Por fim, Che Guevara: Sonha e serás livre de espírito... Luta e serás livre na vida. Noite movimentada enquanto me mantive sem pregar os olhos.

 


AO PÉ DA BANANEIRA – Imagem: art by Sandra Filardi - Ao som de Bananeira, de João Donato & Gilberto Gil, na voz belíssima de Bebel Gilberto: Bananeira, não sei / bananeira, sei lá / a bananeira, sei não / a maneira de ver / bananeira, não sei / bananeira, sei lá / a bananeira, sei não / isso é lá com você / será / no fundo do quintal / quintal do seu olhar / olhar do coração. – Despertei e era ela esvoaçante na manhã, cantarolava radiante. Surpreso por me encontrar à beira-mar, à sombra da Musa paradisíaca – Musaceae, a erva do paraíso, originária da região Indo-malaia e ela sim, sim, ela tagarelava sobre a pacoveira, dizendo disso e daquilo, de que não é uma árvore, é uma erva gigante! Como é? Há o mito birmanês do Pyng Hnget, de que ela foi a primeira fruta que o homem comeu por alimento. Foi? Uma lenda indiana dá conta de que os antigos sábios descansavam à sua sombra e comiam de seus frutos. Há o mito chinês da donzela espectral, que faz de tudo para salvar os amantes separados e que, ao final da empreitada, se torna uma bananeira. Nas histórias africanas ela está relacionada com fertilidade e parto, incluindo que o primeiro homem nasceu dela. Em Uganda enterra-se a placenta do recém-nascido ao pé da bananeira. Há a lenda tailandesa do Nang Tani, um espírito silvestre feminino dos bosques da lua cheia que vingam as mulheres abusadas e maltratadas e é um fantasma que habita nas bananeiras não comestíveis, mas que possuem propriedades mágicas e curativas. No sertão nordestino é corrente que aquele ou aquela que meter uma faca na bananeira no meio da noite dos festejos juninos, verá o nome do futuro noivo ou noiva, escrito com as letras tremidas do tanino, conforme registrado por Câmara Cascudo. E tem a maior! Qual? Ah, não sabe, né? Não. É que anoitecia e no percurso de um caminho deserto nas proximidades da Várzea, aqui no Recife, e lá se ouviam temíveis gemidos femininos. Como é? Um certo dia, alguém deu uma de bravo e resolveu tirar isso a limpo depois de tomar umas e outras. Espia, só. Lá chegando constatou entre temores e hostilidades que o tal gemido horripilante era produzido pela fricção das folhas da figueira-de-adão. Era? Sim, o vento fazia com que se esfregassem e geravam a horrorosa lamúria. Então, o bicado corajoso respirou fundo, puxou do facão e cortou a maior folha entre elas, levando-a como prêmio para todos. Foi uma festa vê-la virar picadinhos. Dali em diante ninguém mais temeria passar pela localidade. Só que de madrugada, mais que entupido da carraspana, resolveu o destemido ir pra casa. Chegando lá, se banhou e ao se deitar se viu enrolado pelo lençol por um braço de mulher cortado, tal como ocorreu com o corte na folha da pacobeira. Dizem que disso ele enlouqueceu narrando repetidas vezes a desventura do fato. Eita! A manhã foi curta e já é meio dia para o alvoroço dela.

 


A DANÇA DA TARDE - Ao som de Dança das Cabeças (ECM, 1977), de Egberto Gismonti & Naná Vasconcelos - Ela entardeceu dançante e me falou Margaret Atwood ao arrebol: Na primavera, no final do dia, você deve cheirar a terra. Eu gostaria de ser o ar que habita você por apenas um momento. Eu gostaria de ser tão despercebida e necessária. E bailou rodopiante como se fosse a coreógrafa, performer e bailarina alemã Toula Limnaios, com seu sensual e transparente vestido encarnado. E seus pés pisaram os meus, suas pernas se enroscaram às minhas e me espremeu entre suas coxas; sua mão alcançou meu sexo aprumado ao seu, seu braço envolveu meu tórax, seus lábios às minhas faces, sua língua revolveu meus sonhos lúbricos, sua boca me tomou por inteiro, seu corpo é meu e ela dançava nua no meu coração, o nosso galope à beira-mar. E eu festejando nela Gonzaguinha: O galope só é bom quando é à beira-mar, o galope só é bom quando se pode amar... Até mais ver.

 

ASSOMBRAÇÕES & ARTES DE LULA CARDOSO AYRES

A arte do pintor vanguardista, desenhista, cenógrafo e programador visual Lula Cardoso Ayres (1910-1987). Veja mais aqui, aqui e aqui.