domingo, março 07, 2021

MARISA REZENDE, TERESA NAZAR, JUANA DE IBARBOROU, JEFFREY EUGENIDES & CLÓVIS PEREIRA

 

 

TRÍPTICO DQC: SOS Brasil! - Ao som do álbum Amazônia (Carmo, 1990), de Egberto Gismonti. - Salve toda gente de Pindorama! Os dias não estão tão simpáticos assim, não mesmo. É que aqui a coisa vai de mal a pior já faz um bom tempo. Pudera, já se vão uns cinco anos desandando e empiorando a cada amanhecer. Nunca me passou pela cabeça que a gente, depois de tanta luta de décadas pela plenitude democrática, de uma hora para outra, ao invés de seguir adiante, o Brasil deu marcha à ré de ficar só nisso: dirigindo pelo retrovisor. Ainda me pergunto como é que pode na última eleição, entre tantos candidatos, o pior foi escolhido. Isso sem contar com golpes, um atrás do outro: roubaram nossos sonhos. Como é que pode? Pois foi, para completar o Kid Coisonário com a sua tresloucada trupe sentou-se em Brasília, patrocinado pela elite infame dos seculares sátrapas do nepotismo oligarca, imprensa vendida e salafrários trampolineiros da mão invisível a serviço da opressiva dominação das transnacionais corporações e lá tome voto regido a mentiras e orações. Queria mais? Sabia eu lá que haveria tantos Fabos, Cafos & similares ilegíveis do Mobral onipresente e do bestiário da Planolândia daqui (tão tóxicos e corrosivos da peçonha e as suas nada brilhantes inteligências que precisam de tratamento psiquiátrico por seus desequilíbrios mentais e estupidez à flor da pele, nenhum inimputável, diga-se de passagem), e aboletados com suas tronchuras tão levianas quanto ressentidas na Operação da Praga Duradoura e que se multiplicaram a cada ninhada, dando cria aos montes, não havendo direito qualquer perspectiva de erradicá-los no moribundo Brasil que virou o Corcunda Recalcitrante das Mil e Uma Noites: quem não suspeito? De quem a culpa, ora essa, tantas vidas perdidas e todo mundo ligado no Big Shit Bôbras, voyeurs e ególatras umbigocentristas, que não tem quem seja capaz de dar um breque na desabalada descida: Êêêêêê, boi do cu-cagado! Fico cá comigo pensando quem poderá sobreviver aos bregues detratores e aos esbarrões das ameaças furiosas das cabeçadas e patrioteiras carteiradas deles, como se isso fosse possível, digo logo, longe disso, são desumanos porque indiferentes, o que já é meio caminho andado para a barbárie. Meio caminho nada, já é. Quem conseguiria persistir humano se tudo virou como se fosse aqueles suntuosos casarões de outrora demolidos pela especulação imobiliária, o que me dá a impressão de pegar no sono e, de um dia pro outro, o país deixar de existir de tão esturricado no abismo e tragado pelo sensacionalismo do noticiário. Eita, pau! Já dizia acertadamente Sérgio Augusto: Nesta terra em que se corrompendo tudo dá! Parece mesmo um nó cego, senão insolúvel. Pois é, eu mesmo fico com a cara daquele escritor britânico, Kenneth Grahame (1859-1932): É o meu mundo e não desejo nenhum outro. Sim, mas ele alerta no seu The Reluctant Dragon (Egmont, 2008): A fera terrível deve ser exterminada, o interior deve ser libertado dessa praga, desse terror, desse flagelo destruidor. Mas são muitos e tantos, um exército de acéfalos com as fileiras engrossadas não sei como. Otimista por natureza, lá vou enfrentando a destruição como posso e não é nada, a desgraça com efeito em cadeia parece indestrutível, valha-me! Como sair do Fecamepa, SOS Brasil! Salve-se quem puder!

 


DOIS: Escapar da tirada de fino e bala perdida - Imagem: a arte da artista visual, escritora e professora Teresinha Soares, ao som do Canticum Naturale, per soprano e orchestra (1972), de Edino Krieger, com a soprano Evi Zeller & Philharmonisches Orchester Südwestfalen. – Por conta disso, lembrei-me que minha vó dizia insistentemente que a mãe havia jogado meu umbigo no rio, coisa que me levou a me afeiçoar tanto por água. Lá no quintal dos meus avós havia um brejo e eu menino só vivia pela beirada. E ela: Menino sai daí, tu ainda morre afogado, desgraçado! Um bocado de década se passou e nem morri de mesmo, exceto duas ou três vezes que fui do outro lado e voltei mais compenetrado que nunca, não me passando por aquele do Dente quebrado, do escritor venezuelano Pedro Emílio Coll (1972-1947), nem me aventurando por rios caudalosos ou mares tempestuosos. Ao contrário, me peguei muitas vezes naquela do escritor estadunidense Michael Hart (1947-2011): Muitas vezes foi dito que se Jesus voltasse à terra, ele ficaria chocado com muitas das coisas que foram feitas em seu nome e horrorizado com as lutas sangrentas entre diferentes seitas de pessoas que se dizem seus seguidores. Aí sim: quantos não vejo em nome dele tramar falcatruas, enrolar fieis e mandar na ver ajeitado no pé do cipa, pois é. Nem polícia, nem Justiça nem ninguém dá cabo deles: estão todos enrolados até o pescoço e em nome de Jesus, cruz-credo! Bem, olho pros lados e vejo: verdadeira perdição. Então, pensei na minha vó: de que poderia mesmo eu morrer, com tantos meteoros passando e tirando fino, tantos satélites pendurados, aeronaves para cima e para baixo, afora outras tantas ameaças, sobretudo do monstro invisível com a morte rondando aqui e acolá, ora, ora. Bem, dum sopapo da vida ou duma disfuncionalidade orgânica qualquer, não sei, vou escapando: passam triscando por mim, alguns arranhões e rugas, apenas. No mais, ileso e resiliente.

 


TRÊS: A VÊNUS DO QUINTAL - Imagens: arte da artista multimídia argentina Teresa Nazar (1936-2001), ao som de Cismas para trio de cordas, contrabaixo e piano (1997), da compositora Marisa Rezende, na interpretação da pianista Thais Nicolau & Quarteto Radamés Gnattali, no Festival de Música Contemporânea Brasileira (2018) – Ah, sim, pois foi exatamente pelo periodo em que era eu menino lá da beira do brejo, que se deu a descoberta duma estátua enterrada no quintal. Foi isso mesmo, verdade. Uma estátua enorme de Vênus, acho. Fiquei tão excitado com aquilo de querer ficar ao seu lado o tempo todo – ora, desde menino eu conversava com plantas, paredes e amigos invisíveis, ela seria real e em tamanho natural, muito melhor. Não deu, logo me tomaram e esconderam não sei onde, a ponto de, com o passar do tempo, esquecê-la, não antes chorar de sonhar dias, meses, anos. Pois bem, agora, depois de todos mortos, lá vou eu com questões de inventário, formais de partilha e me deparo com o quarto dos pertences dos meus antepassados. Nunca que poderia adivinhar que a família pudesse guardar tanta tranqueira. Tudo amontoado num dependência duma casa que sequer sabia existir. Pois bem, lá fui eu ver o que sobrara do espólio: meio mundo de coisa empoeirada e coberta por teias de aranha, nada mais. Um verdadeiro monturo. Quase desisti da conferência, não fosse na mínima vasculhada rápida, lá escondida estava ela, tal e qual a La Vénus d'Ille (1837), de Prosper Merimée: Apenas devemos fazer as tolices que nos agradam. E, talqualmente aquela do poeta francês Jules Barbier (1825-1901): E afinal era só uma boneca de olhos de esmalte. Isso mesmo quando se repetia no intervalo entre o primeiro e o segundo ato do seu texto operístico Les contes d'Hoffmann (1881), musicado por Jacques Offenbach: É ridículo: ninguém se apaixona por uma boneca! Tudo baseado na história da boneca de Hoffmann, que até virou filme dirigido por Michael Powell e Emeric Pressburger: Olympia não passava de uma enorme boneca mecânica. Pois sim, depois de remover todas as catrevagens, quase tudo direto pro lixo de imprestável, exceto a estátua que guardei no meu quarto. Ficou lá, encardida mas limpinha, como se fosse um troféu. Dia vai, dia vem, eu chegava, olhava para ela e ali ficava por horas até adormecer. Um dia lá, cheguei tão cansado que só deu tempo de me banhar e me recolher, nem olhei para ela, nem nada, tratei de dormir, mas o sono foi interrompido, ouvi alguém falar Juana de Ibarborou: O amor é fragrante como um ramo de rosas. Amoroso, todas as fontes são possuídas. A minha surpresa? Era ela, a Vênus Galateia do meu quintal, viva nudez no meu quarto. Como pode? Disse-me Jeffrey Eugenides: Essa obrigação de ser feliz paradoxalmente nos deixa cada vez mais infelizes. No final, não foi a morte que a surpreendeu, mas a teimosia da vida. Como é? Não entendi! Ela fitou-me firme e decididamente, abraçou-me deitando-se em minha cama como se fosse Maria Bonita governando Lampião, afinal, todo dia é Dia da Mulher e eu atravessasse com ela toda primavera. Era verão quando ela saiu e não mais voltou, nem disse adeus. Hibernei, só voltarei ao final do outono. Até mais ver.

 

A ARTE DE CLÓVIS PEREIRA



A arte do compositor, arranjador, pianista e regente Clóvis Pereira, autor de frevos, caboclinhos, maracatus e obras para coro e orquestra e de peças sinfônicas. Em sua homenagem a obra Clóvis Pereira: no reino da pedra verde (Cepe, 2016), do jornalista, pesquisador e crítico musical Carlos Eduardo Amaral, abordando a vida e uma coletânea importante para a música erudita pernambucana, além de informações sobre o lançamento das composições, formação instrumental, bem como iconografia e dados coletados com o próprio músico. Na primeira parte da obra é contada a trajetória do garoto pobre de Caruaru, apaixonado por música e cinema, ao respeitado professor universitário, com cursos na Berklee College of Music, em Boston, Massachussets, nos EUA, hoje gozando de uma confortável aposentadoria, e finalmente podendo conviver no dia a dia com a família, mulher, filhos, netos. A segunda parte é um catálogo da sua obra, envolvendo uma listagem e classificação das partituras e discos; consultas presenciais e online a bibliotecas do Recife, do Rio de Janeiro e de João Pessoa; entrevistas com músicos que interpretaram peças do compositor ou tiveram peças arranjadas por ele; e redação final. Veja mais aqui e aqui.


 


sexta-feira, março 05, 2021

BYUNG-CHUL HAN, MARK DANIELEWSKI, LACEY LEWIS, SIMON BISLEY & CÍCERO DIAS

 

 

TRÍPTICO DQC: Janelavai... – Ao som do álbum Études, preludes, choros (RRMR, 1986), de Heitor Villa-Lobos, na interpretação do violonista Turíbio Santos. Da janela a hora e já vou: a indiferença grassa, o morticínio tornou-se insuportável e a mordaça da negação ousa coibir a gritaria dos que sucumbiram e dos que escaparam aflitos. Recolho todos os meus mortos: os da convivência, os que se foram das mais longínquas plagas e todas as vítimas do irresponsável Genocídio do Fecamepa, que Mario Sergio Cortella flagra na tragédia: ... tem levado a população a uma situação de agonia cada vez mais forte. Na educação, na saúde, na cultura e na economia, a gestão federal tem sido desastrosa. E vem levando algumas instituições, como as Forças Armadas, à total desmoralização. Sensação das cinzas, dói demais e quem culatreia ou acuado na condução persecutória, salve-se quem puder ao deus dará. É o que se pode fazer pregados olhos no artigo O coronavírus de hoje e o mundo de amanhã, do filósofo Byung-Chul Han: Precisamos acreditar que após o vírus virá uma revolução humana. Somos nós, pessoas dotadas de razão, que precisamos repensar e restringir radicalmente o capitalismo destrutivo, e nossa ilimitada e destrutiva mobilidade, para nos salvar, para salvar o clima e nosso belo planeta. É o que nos resta depois de uma espiada aguda na sua obra Sociedade do cansaço (Vozes, 2015), na qual assevera: A sociedade do século XXI não é mais a sociedade disciplinar, mas uma sociedade de desempenho. Também seus habitantes não se chamam mais “sujeitos de obediência”, mas sujeitos de desempenho e produção. São empresários de si mesmos. Enfim, observa ele: O homem não nasceu para o trabalho. Quem trabalha não é livre. Respiro fundo e voo: a minha liberdade é inegociável, sou ave Patativa de Assaré: Onde a verdade aparece a mentira é destruída. E se eu tivesse que morrer hoje ou agora mesmo, tudo já teria valido a pena. Para onde vou será sempre dia; e o anoitecer, descanso. Por isso levo todos e quem quiser comigo bem dentro do coração: já nela vou lá.

 


DOIS: Escrita das imagens dos pedaços – Imagens: As heroínas do quadrinista e artista visual britânico Simon Bisley, ao som da Cello Sonata in C-Major, op. 119 (1949), de Sergey Prokifiev, na interpretação da pianista Sol Gabetta e da cellista Polina Leschenko (2016). – E vai a vida e gira e voo estrada afora sem contar as pedras dos caminhos, já foram tantas rolando ribanceira abaixo e nunca tive medo de me perder, quantos labirintos desatei das tocaias da legião de minotauros e sicários em série, desencantados nas rebarbas escatológicas do ermo real, fabricados pelas cloacas desiguais. Havia de me salvar não sei das quantas e sempre ela assomava do inopinado no valhacouto das circunstâncias, a me dizer Rosa Luxemburgo: Não estamos perdidos. Ao contrário, venceremos se não tivermos desaprendido a aprender. Há todo um velho mundo ainda por destruir e todo um novo mundo a construir. Mas nós conseguiremos... Quem não se movimenta, não sente as correntes que o prendem. A Liberdade é quase sempre, exclusivamente a liberdade de quem pensa diferente de nós. E era o pão de cada dia, fome saciada com migalhas agarradas pela mão. Lá estão estradas erradias e uma esperança indelével recolhida dos olhos do coração dela.

 


TRÊS: Olhar a alma de todos os sobreviventes - Imagem: a arte da artista visual estadunidense Lacey Lewis, ao som do álbum Satie: Complete Piano Works Vols. 1 e 2 (Brilliant Classics, 2010), de Erik Satie, na interpretação da pianista italiana Christina Ariagno. – Solidária solidão, não tinha mais onde ficar sequer para onde ir. Quando ela desaparecia, errava às cabeçadas muros e paredões, até ver-me sacudido pelas aversivas condições, a tê-la ao lado, arrimo de todas as horas, recitando Anna Akhmátova: Eu, como um rio, / Fui desviada por estes duros tempos. / Deram-me uma vida interina. / E ela pôs-se a fluir num curso diferente, passando pela minha outra vida, e eu já não reconhecia minhas próprias margens. O que se perde não ganha, mas o achado quando menos se espera. Quando não, no meio da tarde ela me dizia um trecho do House of Leaves (Pantheon, 2000), do escritor estadunidense Mark Danielewski: Paixão tem pouco a ver com euforia e tudo a ver com paciência. Não se trata de se sentir bem. É uma questão de resistência. Assim como a paciência, a paixão vem da mesma raiz latina: pati. Não significa fluir com exuberância. Significa sofrer. E para quem sofreu além da conta e ainda achava pouco, nunca demais, o cansaço e ela, era o que tinha mais haver, não mais. Ela ausente sequer imagina viver em mim, mesmo que nem me dê conta por onde anda ou vai, vive inteira e real em mim. É hora de prosseguir, mesmo que as tardes sejam madrugadoras ou as manhãs anoitecidas, ziguezague e vice-versa, eu voo: não passei do ponto, a hora é esta. Até mais ver.

 

A ARTE DE CÍCERO DIAS



Num clarão estranho, rompendo tudo, num ruído metálico de suas grandes asas, os poderosos arcanjos vão paliando pelas costas do Nordeste os corais. Corais e mais corais. Belos, rosas, vermelhos. Sabiam da luz das estrelas. Estrelas cadentes, bem vivas, a mostrar o caminho da vida eterna. E, ao abrigo de uma esfera celeste, colorida de um azul de anil, as formas e as cores se ajustavam.

A arte do artista plástico do Modernismo brasileiro Cícero Dias (1907-2003). Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui & aqui.


 


quinta-feira, março 04, 2021

BERNANOS, BASSANI, IVAN ANTÔNIO, NOBUYOSHI ARAKI, KHALED HOSSEINI & LAYZA PEREIRA

 

 

TRÍPTICO DQC: O trâmite da solidão - Ao som de From My Life - String Quartet N.1 in E minor, de Bedrich Smetana. – Cada qual seu caminho, luzes acesas ou não, chuvadas ou estio, às tacanhices e reificações. Olho para céu recorrentemente, piso o chão atento às esquinas e a finitude se desenha nas estrelas inalcançadas e pelas estradas que não sei aonde vão dar. Persigo na passada a me desprender da redoma do que sou, a ponto de ser-me tão longe de sequer reconhecer-me. Ouso o impossível com a minha exiguidade, a ouvir do escritor francês Georges Bernanos (1888-1948): O acaso assemelha-se a nós. O pobre prefere um copo de vinho a um pão, porque o estômago da miséria necessita mais de ilusões que de alimento. Não me basta o que já foi percorrido, por mais andejo tudo foi muito pouco. O futuro? Ah, melhor diz Nikolai Gogol: A única coisa que vale a pena é fixar o olhar com mais atenção no presente; o futuro chegará sozinho, inesperadamente. É tolo quem pensa no futuro antes de pensar no presente. Quanto mais sublimes forem as verdades mais prudência exige o seu uso; senão, de um dia para o outro, transformam-se em lugares comuns e as pessoas nunca mais acreditam nelas. Sim, quantas mentiras que se passam por verdade, incautos ou estúpidos que se deixam levar. Retomo a caminhada e não haverá nunca camisa-de-força ou limite territorial, estou com Valery: Há momentos infelizes em que a solidão e o silêncio se tornam meios de liberdade. E me recrio a cada instante enquanto voo sozinho.

 


DOIS: A cena solidária - Ao som das Afinidades Brasileiras (1985), do compositor e flautista belga Mathieu-André Reichert (1830-1880), na interpretação da concertista e flautista francesa Odette Ernest Dias e da pianista Elza Kazuko Gushikem. – Sozinho, vida aberta, mãos pelos bolsos, voo pelas calçadas. A noite é longa e deserta. De repente me deparo com alguém talvez perdido que recita um poema afetuoso a um ouvinte das ruas, assim me parece. Saúda a minha presença ali e sai por aí aos versos e cantos. Sigo seus passos pelas praças e periferias a poetar cantante. Há algo de íntimo de afinidade, como se fosse alguém que veio da caatinga e se tornou um operário da arte. No arruado da beira do rio me fala do Teatro da Solidão Solidária: método de inclusão social por meio da arte e da cultura da paz em prol da solidariedade humana, em suma: um método de mediação de conflitos e inclusão social através da arte, com a expectativa de protagonizar a interação entre empresários, pessoas em situação de rua, policiais, ex-presidiários, advogados, professores, estudantes, assistentes sociais, psicólogos, donas de casa, enfim, um conjunto plural e diversificado de pessoas. Ou como ele mesmo reitera: Fiz uma imersão nas dores e na desesperança de crianças, homens e mulheres em situação de rua numa pesquisa que durou dez anos. E passava dias embaixo das pontes e marquises, esmolando pelos albergues e recintos hospitaleiros. Ao percorrer o reino dos invisíveis nas cidades que são minhas e dele: São dezoito países da Europa, América Latina, além dos Estados Unidos, que vivencio na prática as dores e a desesperança de pessoas em estado de exclusão extrema, depois compartilho minha pesquisa com meus alunos de segmentos sociais diversificados (empresários, advogados, artistas, psicólogos, médicos, professores e estudantes) para juntos criarmos meios de amenizar as diferenças e as desigualdades entre todos nós. Dele ouvi canções de Eus... da fúria à ternura (2018) e poemas do seu Amor Revolução Silenciosa (Kalango, 2019) e doutras suas publicações poéticas mobilizando pessoas: para o socialmente mais justo e artisticamente mais pleno. E praticar o bem, sem olhar a quem. Quem era? O poeta, dramaturgo e compositor Ivan Antônio: A solidão em mim se faz tão companheira desde a minha infância, mesmo tendo ao meu redor pessoas que tanto amo e que sou amado, sinto uma “solidão do mundo,” desde cedo, inexplicavelmente ela me acompanha e percorre os mais submersos cantos da minha alma e a arte, a música tem sido ao longo da minha existência uma amiga que aponta caminhos e que tornando-se farol pra mim, me faz entender melhor esse processo de solidão. O interessante é que a mesma música que me salva da tristeza do sentir-se só, foi motivo de desespero e desesperança na minha infância (risos) por ser muito desafinado e mesmo assim amar tanto o “cantar”, o bullying era a festa dos meus amiguinhos na infância e depois na adolescência. No deserto da madrugada, era hora de voltar, me despedi e ficamos de nos cruzar em qualquer encruzilhada da vida deste mundão arrevirado e de porteira escancarada. Na volta para casa, me assustei com a aproximação de alguém desconhecido. Precavido, quase mudo de calçada. Uma mão ao meu ombro, temi pelo pior, dei de cara com o escritor italiano Giorgio Bassani (1916-2000): O medo sempre foi um mau conselheiro. Na vida, se você quer entender, realmente entender como são as coisas neste mundo, você tem que morrer pelo menos uma vez. Para quem já havia morrido duas vezes na vida, uma terceira morte seria um novo aprendizado para mim.

 


TRÊS: A Deusa da Lua - Imagens: a arte do fotógrafo japonês Nobuyoshi Araki, ao som do Konzert für Streichorchester und Zheng (2015), do compositor chinês Tan Dun, com a Frankfurt Radio Symphony Orchestra, Yuan Li & regência de Julian Kuerti. – Retomei a caminhada de volta para a casa e percebi que algo se movia no céu entre as nuvens carregadas. Estava prestes a chover e algo minimamente brilhante contornava o espaço aéreo. Era um ponto fulgente que, a cada volta, ampliava suas dimensões e ziguezagueava justamente acima do trajeto que eu percorria. Havia uma certa aproximação a cada giro, a ponto de atravessar a rua e pousar próximo na calçada na qual eu seguia. Logo foi se transformando em uma coisa parecida com uma árvore de cores vermelhas e, mais se transformando, por fim, tornou-se uma linda mulher de pele macia e vestido longo transparente com tonalidades de azul e prateado. Saudou-me e me disse ser Chang. Abraçou-me dizendo: Espero o meu amado há muito tempo, lá na Lua, sozinha. E contou-me que trouxe uma porção do elixir da eternidade que a Rainha Mãe do Monte Kunlun lhe dera para mim. Para mim? Sim, eu mesma tive que ir até ela, atravessando o Rio das Águas Afogadoras e a Montanha das Chamas Ardentes. Foi ela que me apontou e me mandou até você. Não beba toda a Poção da Imortalidade, só a metade, senão ficará condenado a subir ao céu como um imortal. Eu mesma derivei desolada para a Lua, onde passo o resto dos meus dias em meu palácio solitário, na companhia apenas do coelho de Jade. Foi a Rainha Mãe quem me indicou você: a minha salvação e não precisarei mais retornar para lá. Tome. Desconfiado, olhei pros lados e ela insistente: Tome. E mais se explicou ser a deusa guardiã da Lua e logo sentou ao meio fio, me puxou deitando minha cabeça sobre seu colo para contemplar tudo e todas as coisas. Vi-a acenar não sei para quem e riu com meu ar de interrogação: É o Coelho de Jade que está nos saudando de lá da lua, retribuí o gesto. E rimos. Acariciou meus cabelos, tateou minhas faces e me disse Ding Ling: Encontramos a felicidade lutando no meio de uma tempestade violenta, não tocando alaúde ao luar, ou recitando poesia no meio das flores. Olhou-me atentamente, alisou meus lábios e me beijou demoradamente. Depois levou-me a face aos seios e falou do escritor afegão Khaled Hosseini: De todas as dificuldades que uma pessoa tem de enfrentar, a mais sofrida é, sem dúvida, o simples ato de esperar. E seguir tocando a vida. Porque, no fundo, sabia que era tudo o que podia fazer. Viver e ter esperanças. E me beijou novamente por dias e noites sem fim. Acenou para mim de lá da Lua, jogando-me beijos e fazendo gestos de que vela por mim a todo instante. Chamei-a e veio, está aqui agora, amém. Até mais ver.

 

IANDÉ DE LAYZA PEREIRA



Iandé é um projeto desenvolvido pela fotógrafa Layza Pereira, que remete a “nós” e compartilha saberes ancestrais retratados no cotidiano e vivência da comunidade indígena Potiguara, da Paraíba. As obras da exposição foram destinadas à promoção de condições de vida para as famílias da etnia. Veja mais aqui e aqui.

 



quarta-feira, março 03, 2021

MICHAEL NYMAN, AGNÈS LETESTU, EDUARDO GIANNETTI & TERÇA NEGRA NO RECIFE


 

TRÍPTICO DQC: Filosofia, Ciência & Arte - No último sábado, 27 de fevereiro, atendi o convite do parceiramigo, José Carlos Calheiros, diretor da Escola de Filosofia, Ciência & Política, para desenvolver uma exposição acerca da temática Filosofia, Ciência & Artes no dia a dia das pessoas. Na ocasião iniciei com apresentação com a definição dos termos e uma abordagem histórica e conceitual acerca das três áreas compreendidas, desde a Antiguidade antes e pós gregos, o advento do cartesianismo e o mecanicismo, o dualismo psicofísico, o holismo de Smuts e a holística contemporânea, a quântica, a teoria da relatividade de Einstein e as teorias consequentes, o papel das artes no desenvolvimento humano, a psicanálise de Freud e Carl Jung, a fenomenologia e a pós-modernidade, as neurociências, a hipernormalização e a estupidologia, e as perspectivas humanas diante da pandemia e contexto socioeconômico, confrontando ideias para o dia-a-dia em debates sobre as ocorrências dos dias atuais. Foi um encontro proveitoso por oportunizar que reiterasse as conduções adotadas durante a entrevista que concedi na sexta, dia 26 de fevereiro, ao radialista e advogado Mavio Alves, no programa Falando Sério da Cultura FM, sobre tema similar.

 


DOIS: A rainha de Candaules & O Anel de Giges - Ao som do álbum Gattaca (Virgin, 1997), do compositor minimalista, pianista e musicologista britânico Michael Nyman. - Ao despertar no domingo, meio rouco e indisposto, levantei meio alquebrado e fui depositar os braços cruzados sobre a janela para contemplar a paisagem. Era de descanso e merecido. Logo alguém apareceu e, para meu espanto, era o rei Candaules me saudando: Giges! Quem? Ah, meu predileto, hoje você verá a rainha nua e poderá comprovar tudo que eu disse até hoje sobre a beleza dela. Hum? Sabemos todos que se confia menos nos ouvidos do que nos olhos, então você comprovará o quão estonteantemente bela é a sua rainha e só você terá esse privilégio porque é o único em quem deposito minha total e irrestrita confiança. Você verá: ela é a mais bela, não há outra. Já tenho tudo pronto, venha. Nossa! Sabia que o rei era apaixonadíssimo por ela e a mim confiava os seus mais íntimos pensamentos e confissões. Diante desta situação, não sabia o que fazer. Há tempos ele vinha me provocando para que eu desse um jeito de vê-la nua para confirmar sua formosura. Sabia eu que quando uma mulher se despe não são somente as vestimentas que são removidas, desaparece também o pudor. Precaução nunca seria demais. Resisti o mais que pude, tinha de escapar e não foi possível. Ele insistente então me levou pelo castelo e me escondeu atrás da porta do seu quarto: Fique aí e cuide para que ela não o veja, ouviu? Sim. Ali fiquei quieto, preocupado: em que fui me meter, ora bolas! Ele logo se deitou. Algum tempo se passou e em seguida ouvi passos. Era ela e se aproximou do trono, retirou uma a uma de suas vestes e as depositou sobre ele, ficou completamente despida. Ao afastar-se, desfilou em direção à cama e lá ia a beldade de costas, um espetáculo do universo! Acompanhei cada gesto, cada passo. Deitou-se. Pude ver tudo e esperei um tempo para poder sair. Com a quietude no recinto, antecipei-me e escapuli de fininho, ufa! Nunca mais! E dei-me por livre de tal situação, limpando tudo na mente e esquecendo que um dia ali estive e que nunca a vira. Fiz o que pude para não encontrar o rei com suas perguntas a respeito e tanto me esquivei o quanto pude. Porém, no dia seguinte, lá ia com os meus afazeres para lá e para cá e logo a rainha mandou-me chamar. Já me aprontava para atender-lhe, mas havia alvoroços nas proximidades: notei que ela se aproximava. Mantive a calma e ao vê-la chegar, empurrou-me contra a parede: Ou mata o soberano ou morre. Como? Isso mesmo: ou mata o rei, se apodera de mim e do governo dos lídios, ou terá de morrer agora para nunca mais obedecer ao rei e ver o que não deve. E agora? Assustado só me restava dizer: Majestade. Ela irredutível. Desse momento em diante, todos os dias ela em riste com a ameaça. Vendo-me sem saída, eis que me presenteou o Anel: tome! Sim, exatamente o Gýgou Daktýlios, aquele cobiçado artefato mágico que recebeu menção na História (Nova Fronteira, 2019), de Heródoto e n’ A República (UnB, 1996), de Platão, e que concedia ao possuidor o poder de tornar-se invisível para aprontar, traduzindo a ideia de que a pessoa inteligente, para o filósofo grego, era aquela que seria considerada justa por não temer qualquer má reputação ao cometer injustiças. Sim, sim, aquele mesmo do De Officiis (Clarendon, 1994), de Cícero e também d’O homem invisível (Zahar, 2017), de H. G. Wells. E, mais recentemente, da obra O anel de Giges: uma fantasia ética (Companhia das Letras, 2020), de Eduardo Giannetti: Desde que nos damos por gente, a vida em sociedade nos faz atores; ela nos educa e afia, em atos e palavras, na arte de expor e ocultar. Imagine a existência de um anel que faculte ao seu dono o privilégio de ficar invisível ao olhar alheio: ao simples girar do engaste no dedo a pessoa desaparece e, ao retorná-lo à posição normal, ela volta a ficar visível aos olhos de todos. O anel de Giges é o salvo-conduto da invisibilidade: transparência física, nudez moral. Sim, era a rainha linda&nua, a aliança noitedia e o que será de mim não sei.

 


TRÊS: O cisne & ela - Imagem: a arte da bailarina francesa Agnès Letestu, ao som de O Lago dos Cisnes (1877- Movie Play, 2006), de Tchaikovski, com o Ballet da Ópera Nacional de Paris, regente Vello Pahn. - Ao despertar estava à beira de um lago paradisíaco e do outro lado um belo cisne voava sobre as águas. Fiquei entre surpreso e admirado: uma rara beleza daquela ave. Acompanhei todo o seu percurso e ao contornar, veio pela margem em que me encontrava, dando-me a impressão de que me vira e vinha em minha direção. Ao se encontrar bem próximo a mim, pousando no chão, de repente: não mais cisne, era uma bela mulher nua e assustada com a minha presença. Não vou lhe fazer mal, o que houve? Sou Odette, fui vítima dos horrores de um feiticeiro e tenho apenas algumas horas neste estado, logo tornarei a ser cisne, essa a minha maldição pela eternidade. Este lago foi formado com as lágrimas da minha mãe, é nele que vivo, só me libertarei no dia em que um corajoso me salvar. Vivo a fugir do meu algoz, mas ele me captura e me mantem sob seu jugo. Como? Nem abrira a boca e logo aparecera o feiticeiro Rothbart ao seu encalço. Procuro protegê-la sem nem saber como, abracei seu corpo frágil e forcei a um mergulho comigo. Ela nem teve forças para resistir, desejava livrar-se daquele que a aprisionara. Jogamo-nos às águas e fiz o que pude para nos distanciar daquele asqueroso perseguidor. Não sabíamos nadar, mas consegui arrastá-la segurando um tronco que boiava, alcançamos o rio e descemos pela correnteza até sermos jogados contra a pedraria e sairmos a salvos sem nem saber onde estávamos àquela altura. Recuperamos o fôlego e caminhamos pelo matagal à procura de algum caminho que desse para algum lugar hospedeiro. A certa altura da caminhada, ela procurou descansar em alguma raiz de mangueira exposta. Sentou-se, tocou seu corpo como se interrogasse o que havia acontecido a ela, foi aí que levantou as vistas para mim e disse: Estou desencantada! Abriu um sorriso largo e pulou sobre mim abraçando-me: Ah, Siegfried, meu príncipe! Como foi bom vê-lo à beira do lago para me salvar. E fez dançar ao seu ritmo. Não sabia o que dizer nem fazer, apenas envolvê-la com meus braços e ouvi-la do filósofo francês Émile-Auguste Chartier (1868-1951): Amar é descobrirmos a nossa riqueza fora de nós. É preciso querer ser feliz e contribuir para isso. Se ficarmos na posição do espectador impassível, deixando para a felicidade apenas a entrada livre e as portas abertas, será a tristeza que entrará. E falava e bailava e sorria e me beijava levitando ave solta. Foi então que me beijou novamente as faces e fez um gesto como se livrasse de todos os seus véus para ser minha, e eu comigo, observando aquela beleza toda, como se eu fosse o escritor britânico Arthur Machen (1863-1947): Você pode achar que tudo isso é um absurdo estranho; pode ser estranho, mas é verdade, e os antigos sabiam o que significava levantar o véu. Eles chamaram isso de ver o deus Pan. Sim, era ela agora a amada náiade Sírinx com o presente do Siringe, para que eu possa tocá-la inteira e encantar a vida com um verso do escritor sul-africano Peter Abrahams (1919-2017): Cada homem está deitado sobre o seu povo, sua história, sua cultura e valores. Foi assim que ela tornou-se a minha vida. Até mais ver.

 

TERÇA NEGRA NO RECIFE



A obra Terça Negra no Recife: música, dança, espiritualidade e sagrado (Cepe, 2020), da pesquisadora em Ciências da Religião na Unicap, Lúcia dos Prazeres, reúne histórias sobre o fortalecimento da identidade, cultura e espiritualidade de afro-pernambucanos, vividos a partir da Terça Negra – evento que acontece às terças-feiras à noite no Pátio de São Pedro há 20 anos, iniciada em 2000 e já recebeu mais de 300 grupos, entre afoxés, maracatus, grupos de samba, dança, hip hop, coco, bandas de samba reggae e manguebeat. Na pesquisa destaca a representação dos valores e a cultura africana, em cinco capítulos com as narrativas de 12 personagens que transformaram a experiência do povo negro no Recife e tiveram suas próprias histórias fortalecidas pelos encontros de música e dança no Pátio de São Pedro. São nomes como Vera Baroni, militante do movimento negro e integrante da Casa de Religião de Matriz Africana, Ylê Obá Aganju Ocoloiá; Marta Almeida, militante negra, coordenadora do Movimento Negro Unificado de Pernambuco; Frei Tito, Doutor em Antropologia, com experiência em Antropologia da Religião; e Elza Maria Torres da Silva, sacerdotisa de matriz africana conhecida como Mãe Elza. Veja mais aqui e aqui.


 

terça-feira, março 02, 2021

LEONORA CARRINGTON, MULTATULI, THEODOR SEUSS, FASSBINDER, RIEFENSTAHL BERTINO FERNANDES

 

 

TRÍPTICO DQC: Amanhece e é maravilhoso viver - Ao som da Quinta Sinfonia Rückert (1901-1902), de Gustav Mahler, com a Chicago Symphony Orchestra, conducted by Sir Georg Solti Recorded live at Bunka Kaikan, Tokyo (1986) – Meu olhar insone paira na despedida da noite, os primeiros raios de Sol trazem a esperança perdida anteontem. O dia amanhece como se fosse para sempre e contemplo lá longe a relva, na qual uma sombra se projeta por trás dos galhos imprecisos. Insisto na contemplação e é ela que surge estranha escultora, pintora e escritora surrealista Leonora Carrington (1917-2011) e entrega: Esta é uma carta de amor para um pesadelo. Devemos ter cuidado com aquilo que levamos quando partimos para sempre. A razão deve conhecer as razões do coração e todas as outras razões. Eu estou tão triste, tão triste que o meu corpo se tornou transparente, de tanto que eu chorei. Será possível alguém se dissolver em água sem deixar nenhum rastro? Nós descemos para o jardim do silêncio. A madrugada é o tempo em que nada respira, a hora do silêncio. Tudo está paralisado, apenas a luz se move. Mesmo assim, recepciono amável a sua hospedagem na minha solidão, a dizer uma e outra coisa jogada no tempo. O dia passa como uma verdadeira festa e ao anoitecer, ela se faz forasteira e dorme nua encolhida: braços cruzados e largados sobre o corpo nu. Ao despertar fulgurante modelo desnuda da minha arte, recito: Essa luz não se pode forjar. Precisa se aproveitar. Aqui fora tudo se move. Até a luz se move. Vê essas folhas? Há milhões delas e todas são singulares. Poderia viver cento e cinquenta vidas e mal teria tempo para vislumbrá-las. Por isso que você precisa de um conceito. Precisa encontrar um conceito. Se não encontrar, tudo será uma perda de tempo. Ao vê-la ali, renasce em mim a arte adormecida, reinaugurando a contemplação do espetáculo e ouso ao tato transitar hesitante tocando suas formas, curvas, contornos e volumes que concretizam a ideia de Rembrandt: A velhice é um obstáculo à criatividade, mas não pode esmagar o meu espírito jovem. Escolha apenas um mestre - a Natureza. Tente colocar em prática o que você já sabe e fazendo isso, você descobrirá, com o tempo, as coisas escondidas sobre as quais agora você se questiona. Pratique o que você sabe e isso ajudará a tornar claro o que agora você não sabe. Quanto mais perigoso, mais belo! O olhar na ideia de seu fugitivo corpo nu e minhas mãos passeiam errantes na força do afeto o percurso da sua pele. E ela invade meus dedos e me afogueia a epiderme, os ossos, músculos e vísceras, rouba de mim o que sou e nela me faço Deus na gênese de toda criação. É nela que brota de mim a Eva que desfruto no azeite e a engravido para me dá o seu filho Adão e semeio toda humanidade. Depois do amor, ela se vai como se me dissesse do escritor e cartunista estadunidense Theodor Seuss Geisel (1904-1991): Não chore porque acabou. Sorria porque aconteceu. Uma pessoa é sempre uma pessoa, não importa o quão pequena ela seja. Eu gosto de coisas que não fazem sentido: isso acorda as células do cérebro. Fantasia é um ingrediente necessário em nossas vidas, é um modo de olhar a vida pelo lado errado do telescópio. Isso é o que eu faço, e isso permite que você ria das realidades da vida. Experimente, experimente, e você pode! Experimente e você pode, eu digo. Avante por muitos riachos assustadores, embora seus braços fiquem doloridos e seus tênis possam vazar. Oh! Os lugares que você irá!  Você pode ter ajuda de professores, mas você vai precisar aprender muita coisa sozinho. Quanto mais você ler, mais você vai aprender. Quanto mais você aprender, mais lugares diferentes você vai visitar. Sim, realmente ela se foi para nunca mais. Em mim amanheceu e é maravilhoso viver. (Leitura livre inspirada no filme O artista e a modelo (2012), do cineasta Fernando Trueba, contando a história sobre a obsessão de um escultor diante da modelo num momento da crise de criação, destaque para atuação da lindatriz espanhola Aida Folch).

 


DOIS: Um ano a mais das treze luas - Imagem: a arte da atriz espanhola Aida Folch, ao som do Piccolo Divertimento op. 111 (1978), do compositor e pianista José Carlos Amaral Vieira, com o Quinteto Lorenzo Fernandez (2015). - No meio da manhã dou conta do meu pesadelo Fassbinder: Atiro em todas as direções. Posso dormir quando estiver morto. E ela passa como se fosse Hanna Schygulla n’O casamento de Maria Braun (Die Ehe Der Maria Braun, 1978). Passa e não mais a vejo, retornando como a selvagem adolescente Effi Briest (1974), no balanço do jardim de seu espírito aéreo dos amores das páginas literárias. Faz um gesto qualquer para mim e se ocupa em seus estudos como se fosse a Anna do The Merchant of Four Seasons (1972), e me olha como se Karin Thimm no Die bitteren Tränen der Petra von Kant (1972) e se levanta como se fosse Susanne Gast em The Third Generation (1972) e acena como se fosse a Joanna Reiher em Gods of the Plague (1970) e vai-se embora como se fosse a amiga da Sra. R. no Warum läuft Herr R. Amok? (1971). No meio da tarde ela retorna intrusa Barbara Sukowa, uma atriz polonesa que se mostra cantoramante Lola (1981), quando eu só conhecia Marie-Louise e jamais saberia quem era quem na minha paixão e eu absorto com seus encantos. Depois de me seduzir ardilosamente, desaparece para só ressurgir ao crepúsculo na pele de Margit Carstensen como se fosse a paranoica bibliotecária Martha (1974), que me mostra um volume com versos do poeta russo Ievgueni Baratýnski (1800-1844): O futuro da humanidade industrializada e mecanizada será brilhante e glorioso no futuro próximo, mas a felicidade e a paz universais serão compradas à custa da perda de todos os valores mais altos da poesia... E, inevitavelmente, após uma era de refinamento intelectual, a humanidade perde sua seiva vital e morre de impotência sexual. Então a terra será restaurada à sua majestade primordial. Ouvi tudo e ela não mais, a noite é longa e os versos me perseguem pela madrugada.

 


TRÊS: As cinco vidas dela – Ao som da Tristorosa, de Heitor Villa-Lobos, na interpretação da violonista bielorrussa Tatyana Ryzhkova. - Novamente a madrugada se vai e a manhã chega com o seu bailado além da nudez do corpo: sou pulsante em cada passo. Ela percebe meu alvoroço e se entrega como atriz de todos os textos e cenas: o gozo inevitável. E mergulha extasiada como se eu fosse o oceano de sua redenção. E depois de satisfeita, faz poses para flagrar meus gestos em suas fotos. E logo me leva por tramas épicas cinematográficas em que ela, personificando Leni Riefenstahl (1902-2003) me diz: Sou fascinada pelo que é belo, forte, saudável, o que é viver. Eu procuro harmonia. Há pessoas para quem sou uma lenda e que querem me ver e tocar para saber se de fato estou viva ou se sou um múmia. E sorri com uma frase de Georg Simmel: O homem é algo que deve ser superado. E me encara como se nada mais, a me dizer do escritor neerlandês Multatuli (1820-1887): Talvez nada seja totalmente verdade e talvez nem mesmo isto. Duas semi-verdades não fazem uma verdade. Todas as virtudes têm irmãs ilegítimas que desonram a família. O desgosto e a alegria dependem mais do que somos do que daquilo que nos acontece. Quem nunca caiu não tem bem a noção do esforço que é preciso para se manter de pé. Nós não ficamos a querer menos a quem conhece os nossos defeitos do que a nós próprios por sofremos deles. Muitas vezes é preciso mais coragem para enfrentar as futilidades do que para lutar contra abusos graves. Disse o que tinha a dizer, olhou-me apaixonante, beijou-me a face, afastou-se comedida e a vi sair se dissolvendo como miragem no ar. Até mais ver.

 

CINEMA PERNAMBUCANO



[...] O idealismo e a força de vontade muito concorreram para que a indústria cinematográfica em Pernambuco, atingisse os seus objetos, colhendo seguidas vitórias, como aconteceu noutras cidades brasileiras. Como é do conhecimento dos cineastas, a produção é a alma da indústria, sendo importante e necessário para mantê-la próspera e em atividade, de elevados recursos financeiros para a preparação e rodagem das películas, como a escolha do diretor, roteiro, realizador, operadores de som, decoradores, argumentistas, figurinistas, desenhistas, contrato de astros, estrelas e coadjuvantes. [...].

Trecho extraído da obra No mundo fantástico do cinema (Massangana/Fundaj, 2005), do advogado, memorialista, historiador, jornalista e compositor musical, Bertino Fernandes Silva, tratando sobre as origens da sétima arte, o nascimento de Hollywood, do cinema silencioso ao cinema falado, e o cinema em Pernambuco. Veja mais aqui e aqui.