quarta-feira, março 03, 2021

MICHAEL NYMAN, AGNÈS LETESTU, EDUARDO GIANNETTI & TERÇA NEGRA NO RECIFE


 

TRÍPTICO DQC: Filosofia, Ciência & Arte - No último sábado, 27 de fevereiro, atendi o convite do parceiramigo, José Carlos Calheiros, diretor da Escola de Filosofia, Ciência & Política, para desenvolver uma exposição acerca da temática Filosofia, Ciência & Artes no dia a dia das pessoas. Na ocasião iniciei com apresentação com a definição dos termos e uma abordagem histórica e conceitual acerca das três áreas compreendidas, desde a Antiguidade antes e pós gregos, o advento do cartesianismo e o mecanicismo, o dualismo psicofísico, o holismo de Smuts e a holística contemporânea, a quântica, a teoria da relatividade de Einstein e as teorias consequentes, o papel das artes no desenvolvimento humano, a psicanálise de Freud e Carl Jung, a fenomenologia e a pós-modernidade, as neurociências, a hipernormalização e a estupidologia, e as perspectivas humanas diante da pandemia e contexto socioeconômico, confrontando ideias para o dia-a-dia em debates sobre as ocorrências dos dias atuais. Foi um encontro proveitoso por oportunizar que reiterasse as conduções adotadas durante a entrevista que concedi na sexta, dia 26 de fevereiro, ao radialista e advogado Mavio Alves, no programa Falando Sério da Cultura FM, sobre tema similar.

 


DOIS: A rainha de Candaules & O Anel de Giges - Ao som do álbum Gattaca (Virgin, 1997), do compositor minimalista, pianista e musicologista britânico Michael Nyman. - Ao despertar no domingo, meio rouco e indisposto, levantei meio alquebrado e fui depositar os braços cruzados sobre a janela para contemplar a paisagem. Era de descanso e merecido. Logo alguém apareceu e, para meu espanto, era o rei Candaules me saudando: Giges! Quem? Ah, meu predileto, hoje você verá a rainha nua e poderá comprovar tudo que eu disse até hoje sobre a beleza dela. Hum? Sabemos todos que se confia menos nos ouvidos do que nos olhos, então você comprovará o quão estonteantemente bela é a sua rainha e só você terá esse privilégio porque é o único em quem deposito minha total e irrestrita confiança. Você verá: ela é a mais bela, não há outra. Já tenho tudo pronto, venha. Nossa! Sabia que o rei era apaixonadíssimo por ela e a mim confiava os seus mais íntimos pensamentos e confissões. Diante desta situação, não sabia o que fazer. Há tempos ele vinha me provocando para que eu desse um jeito de vê-la nua para confirmar sua formosura. Sabia eu que quando uma mulher se despe não são somente as vestimentas que são removidas, desaparece também o pudor. Precaução nunca seria demais. Resisti o mais que pude, tinha de escapar e não foi possível. Ele insistente então me levou pelo castelo e me escondeu atrás da porta do seu quarto: Fique aí e cuide para que ela não o veja, ouviu? Sim. Ali fiquei quieto, preocupado: em que fui me meter, ora bolas! Ele logo se deitou. Algum tempo se passou e em seguida ouvi passos. Era ela e se aproximou do trono, retirou uma a uma de suas vestes e as depositou sobre ele, ficou completamente despida. Ao afastar-se, desfilou em direção à cama e lá ia a beldade de costas, um espetáculo do universo! Acompanhei cada gesto, cada passo. Deitou-se. Pude ver tudo e esperei um tempo para poder sair. Com a quietude no recinto, antecipei-me e escapuli de fininho, ufa! Nunca mais! E dei-me por livre de tal situação, limpando tudo na mente e esquecendo que um dia ali estive e que nunca a vira. Fiz o que pude para não encontrar o rei com suas perguntas a respeito e tanto me esquivei o quanto pude. Porém, no dia seguinte, lá ia com os meus afazeres para lá e para cá e logo a rainha mandou-me chamar. Já me aprontava para atender-lhe, mas havia alvoroços nas proximidades: notei que ela se aproximava. Mantive a calma e ao vê-la chegar, empurrou-me contra a parede: Ou mata o soberano ou morre. Como? Isso mesmo: ou mata o rei, se apodera de mim e do governo dos lídios, ou terá de morrer agora para nunca mais obedecer ao rei e ver o que não deve. E agora? Assustado só me restava dizer: Majestade. Ela irredutível. Desse momento em diante, todos os dias ela em riste com a ameaça. Vendo-me sem saída, eis que me presenteou o Anel: tome! Sim, exatamente o Gýgou Daktýlios, aquele cobiçado artefato mágico que recebeu menção na História (Nova Fronteira, 2019), de Heródoto e n’ A República (UnB, 1996), de Platão, e que concedia ao possuidor o poder de tornar-se invisível para aprontar, traduzindo a ideia de que a pessoa inteligente, para o filósofo grego, era aquela que seria considerada justa por não temer qualquer má reputação ao cometer injustiças. Sim, sim, aquele mesmo do De Officiis (Clarendon, 1994), de Cícero e também d’O homem invisível (Zahar, 2017), de H. G. Wells. E, mais recentemente, da obra O anel de Giges: uma fantasia ética (Companhia das Letras, 2020), de Eduardo Giannetti: Desde que nos damos por gente, a vida em sociedade nos faz atores; ela nos educa e afia, em atos e palavras, na arte de expor e ocultar. Imagine a existência de um anel que faculte ao seu dono o privilégio de ficar invisível ao olhar alheio: ao simples girar do engaste no dedo a pessoa desaparece e, ao retorná-lo à posição normal, ela volta a ficar visível aos olhos de todos. O anel de Giges é o salvo-conduto da invisibilidade: transparência física, nudez moral. Sim, era a rainha linda&nua, a aliança noitedia e o que será de mim não sei.

 


TRÊS: O cisne & ela - Imagem: a arte da bailarina francesa Agnès Letestu, ao som de O Lago dos Cisnes (1877- Movie Play, 2006), de Tchaikovski, com o Ballet da Ópera Nacional de Paris, regente Vello Pahn. - Ao despertar estava à beira de um lago paradisíaco e do outro lado um belo cisne voava sobre as águas. Fiquei entre surpreso e admirado: uma rara beleza daquela ave. Acompanhei todo o seu percurso e ao contornar, veio pela margem em que me encontrava, dando-me a impressão de que me vira e vinha em minha direção. Ao se encontrar bem próximo a mim, pousando no chão, de repente: não mais cisne, era uma bela mulher nua e assustada com a minha presença. Não vou lhe fazer mal, o que houve? Sou Odette, fui vítima dos horrores de um feiticeiro e tenho apenas algumas horas neste estado, logo tornarei a ser cisne, essa a minha maldição pela eternidade. Este lago foi formado com as lágrimas da minha mãe, é nele que vivo, só me libertarei no dia em que um corajoso me salvar. Vivo a fugir do meu algoz, mas ele me captura e me mantem sob seu jugo. Como? Nem abrira a boca e logo aparecera o feiticeiro Rothbart ao seu encalço. Procuro protegê-la sem nem saber como, abracei seu corpo frágil e forcei a um mergulho comigo. Ela nem teve forças para resistir, desejava livrar-se daquele que a aprisionara. Jogamo-nos às águas e fiz o que pude para nos distanciar daquele asqueroso perseguidor. Não sabíamos nadar, mas consegui arrastá-la segurando um tronco que boiava, alcançamos o rio e descemos pela correnteza até sermos jogados contra a pedraria e sairmos a salvos sem nem saber onde estávamos àquela altura. Recuperamos o fôlego e caminhamos pelo matagal à procura de algum caminho que desse para algum lugar hospedeiro. A certa altura da caminhada, ela procurou descansar em alguma raiz de mangueira exposta. Sentou-se, tocou seu corpo como se interrogasse o que havia acontecido a ela, foi aí que levantou as vistas para mim e disse: Estou desencantada! Abriu um sorriso largo e pulou sobre mim abraçando-me: Ah, Siegfried, meu príncipe! Como foi bom vê-lo à beira do lago para me salvar. E fez dançar ao seu ritmo. Não sabia o que dizer nem fazer, apenas envolvê-la com meus braços e ouvi-la do filósofo francês Émile-Auguste Chartier (1868-1951): Amar é descobrirmos a nossa riqueza fora de nós. É preciso querer ser feliz e contribuir para isso. Se ficarmos na posição do espectador impassível, deixando para a felicidade apenas a entrada livre e as portas abertas, será a tristeza que entrará. E falava e bailava e sorria e me beijava levitando ave solta. Foi então que me beijou novamente as faces e fez um gesto como se livrasse de todos os seus véus para ser minha, e eu comigo, observando aquela beleza toda, como se eu fosse o escritor britânico Arthur Machen (1863-1947): Você pode achar que tudo isso é um absurdo estranho; pode ser estranho, mas é verdade, e os antigos sabiam o que significava levantar o véu. Eles chamaram isso de ver o deus Pan. Sim, era ela agora a amada náiade Sírinx com o presente do Siringe, para que eu possa tocá-la inteira e encantar a vida com um verso do escritor sul-africano Peter Abrahams (1919-2017): Cada homem está deitado sobre o seu povo, sua história, sua cultura e valores. Foi assim que ela tornou-se a minha vida. Até mais ver.

 

TERÇA NEGRA NO RECIFE



A obra Terça Negra no Recife: música, dança, espiritualidade e sagrado (Cepe, 2020), da pesquisadora em Ciências da Religião na Unicap, Lúcia dos Prazeres, reúne histórias sobre o fortalecimento da identidade, cultura e espiritualidade de afro-pernambucanos, vividos a partir da Terça Negra – evento que acontece às terças-feiras à noite no Pátio de São Pedro há 20 anos, iniciada em 2000 e já recebeu mais de 300 grupos, entre afoxés, maracatus, grupos de samba, dança, hip hop, coco, bandas de samba reggae e manguebeat. Na pesquisa destaca a representação dos valores e a cultura africana, em cinco capítulos com as narrativas de 12 personagens que transformaram a experiência do povo negro no Recife e tiveram suas próprias histórias fortalecidas pelos encontros de música e dança no Pátio de São Pedro. São nomes como Vera Baroni, militante do movimento negro e integrante da Casa de Religião de Matriz Africana, Ylê Obá Aganju Ocoloiá; Marta Almeida, militante negra, coordenadora do Movimento Negro Unificado de Pernambuco; Frei Tito, Doutor em Antropologia, com experiência em Antropologia da Religião; e Elza Maria Torres da Silva, sacerdotisa de matriz africana conhecida como Mãe Elza. Veja mais aqui e aqui.