terça-feira, março 02, 2021

LEONORA CARRINGTON, MULTATULI, THEODOR SEUSS, FASSBINDER, RIEFENSTAHL BERTINO FERNANDES

 

 

TRÍPTICO DQC: Amanhece e é maravilhoso viver - Ao som da Quinta Sinfonia Rückert (1901-1902), de Gustav Mahler, com a Chicago Symphony Orchestra, conducted by Sir Georg Solti Recorded live at Bunka Kaikan, Tokyo (1986) – Meu olhar insone paira na despedida da noite, os primeiros raios de Sol trazem a esperança perdida anteontem. O dia amanhece como se fosse para sempre e contemplo lá longe a relva, na qual uma sombra se projeta por trás dos galhos imprecisos. Insisto na contemplação e é ela que surge estranha escultora, pintora e escritora surrealista Leonora Carrington (1917-2011) e entrega: Esta é uma carta de amor para um pesadelo. Devemos ter cuidado com aquilo que levamos quando partimos para sempre. A razão deve conhecer as razões do coração e todas as outras razões. Eu estou tão triste, tão triste que o meu corpo se tornou transparente, de tanto que eu chorei. Será possível alguém se dissolver em água sem deixar nenhum rastro? Nós descemos para o jardim do silêncio. A madrugada é o tempo em que nada respira, a hora do silêncio. Tudo está paralisado, apenas a luz se move. Mesmo assim, recepciono amável a sua hospedagem na minha solidão, a dizer uma e outra coisa jogada no tempo. O dia passa como uma verdadeira festa e ao anoitecer, ela se faz forasteira e dorme nua encolhida: braços cruzados e largados sobre o corpo nu. Ao despertar fulgurante modelo desnuda da minha arte, recito: Essa luz não se pode forjar. Precisa se aproveitar. Aqui fora tudo se move. Até a luz se move. Vê essas folhas? Há milhões delas e todas são singulares. Poderia viver cento e cinquenta vidas e mal teria tempo para vislumbrá-las. Por isso que você precisa de um conceito. Precisa encontrar um conceito. Se não encontrar, tudo será uma perda de tempo. Ao vê-la ali, renasce em mim a arte adormecida, reinaugurando a contemplação do espetáculo e ouso ao tato transitar hesitante tocando suas formas, curvas, contornos e volumes que concretizam a ideia de Rembrandt: A velhice é um obstáculo à criatividade, mas não pode esmagar o meu espírito jovem. Escolha apenas um mestre - a Natureza. Tente colocar em prática o que você já sabe e fazendo isso, você descobrirá, com o tempo, as coisas escondidas sobre as quais agora você se questiona. Pratique o que você sabe e isso ajudará a tornar claro o que agora você não sabe. Quanto mais perigoso, mais belo! O olhar na ideia de seu fugitivo corpo nu e minhas mãos passeiam errantes na força do afeto o percurso da sua pele. E ela invade meus dedos e me afogueia a epiderme, os ossos, músculos e vísceras, rouba de mim o que sou e nela me faço Deus na gênese de toda criação. É nela que brota de mim a Eva que desfruto no azeite e a engravido para me dá o seu filho Adão e semeio toda humanidade. Depois do amor, ela se vai como se me dissesse do escritor e cartunista estadunidense Theodor Seuss Geisel (1904-1991): Não chore porque acabou. Sorria porque aconteceu. Uma pessoa é sempre uma pessoa, não importa o quão pequena ela seja. Eu gosto de coisas que não fazem sentido: isso acorda as células do cérebro. Fantasia é um ingrediente necessário em nossas vidas, é um modo de olhar a vida pelo lado errado do telescópio. Isso é o que eu faço, e isso permite que você ria das realidades da vida. Experimente, experimente, e você pode! Experimente e você pode, eu digo. Avante por muitos riachos assustadores, embora seus braços fiquem doloridos e seus tênis possam vazar. Oh! Os lugares que você irá!  Você pode ter ajuda de professores, mas você vai precisar aprender muita coisa sozinho. Quanto mais você ler, mais você vai aprender. Quanto mais você aprender, mais lugares diferentes você vai visitar. Sim, realmente ela se foi para nunca mais. Em mim amanheceu e é maravilhoso viver. (Leitura livre inspirada no filme O artista e a modelo (2012), do cineasta Fernando Trueba, contando a história sobre a obsessão de um escultor diante da modelo num momento da crise de criação, destaque para atuação da lindatriz espanhola Aida Folch).

 


DOIS: Um ano a mais das treze luas - Imagem: a arte da atriz espanhola Aida Folch, ao som do Piccolo Divertimento op. 111 (1978), do compositor e pianista José Carlos Amaral Vieira, com o Quinteto Lorenzo Fernandez (2015). - No meio da manhã dou conta do meu pesadelo Fassbinder: Atiro em todas as direções. Posso dormir quando estiver morto. E ela passa como se fosse Hanna Schygulla n’O casamento de Maria Braun (Die Ehe Der Maria Braun, 1978). Passa e não mais a vejo, retornando como a selvagem adolescente Effi Briest (1974), no balanço do jardim de seu espírito aéreo dos amores das páginas literárias. Faz um gesto qualquer para mim e se ocupa em seus estudos como se fosse a Anna do The Merchant of Four Seasons (1972), e me olha como se Karin Thimm no Die bitteren Tränen der Petra von Kant (1972) e se levanta como se fosse Susanne Gast em The Third Generation (1972) e acena como se fosse a Joanna Reiher em Gods of the Plague (1970) e vai-se embora como se fosse a amiga da Sra. R. no Warum läuft Herr R. Amok? (1971). No meio da tarde ela retorna intrusa Barbara Sukowa, uma atriz polonesa que se mostra cantoramante Lola (1981), quando eu só conhecia Marie-Louise e jamais saberia quem era quem na minha paixão e eu absorto com seus encantos. Depois de me seduzir ardilosamente, desaparece para só ressurgir ao crepúsculo na pele de Margit Carstensen como se fosse a paranoica bibliotecária Martha (1974), que me mostra um volume com versos do poeta russo Ievgueni Baratýnski (1800-1844): O futuro da humanidade industrializada e mecanizada será brilhante e glorioso no futuro próximo, mas a felicidade e a paz universais serão compradas à custa da perda de todos os valores mais altos da poesia... E, inevitavelmente, após uma era de refinamento intelectual, a humanidade perde sua seiva vital e morre de impotência sexual. Então a terra será restaurada à sua majestade primordial. Ouvi tudo e ela não mais, a noite é longa e os versos me perseguem pela madrugada.

 


TRÊS: As cinco vidas dela – Ao som da Tristorosa, de Heitor Villa-Lobos, na interpretação da violonista bielorrussa Tatyana Ryzhkova. - Novamente a madrugada se vai e a manhã chega com o seu bailado além da nudez do corpo: sou pulsante em cada passo. Ela percebe meu alvoroço e se entrega como atriz de todos os textos e cenas: o gozo inevitável. E mergulha extasiada como se eu fosse o oceano de sua redenção. E depois de satisfeita, faz poses para flagrar meus gestos em suas fotos. E logo me leva por tramas épicas cinematográficas em que ela, personificando Leni Riefenstahl (1902-2003) me diz: Sou fascinada pelo que é belo, forte, saudável, o que é viver. Eu procuro harmonia. Há pessoas para quem sou uma lenda e que querem me ver e tocar para saber se de fato estou viva ou se sou um múmia. E sorri com uma frase de Georg Simmel: O homem é algo que deve ser superado. E me encara como se nada mais, a me dizer do escritor neerlandês Multatuli (1820-1887): Talvez nada seja totalmente verdade e talvez nem mesmo isto. Duas semi-verdades não fazem uma verdade. Todas as virtudes têm irmãs ilegítimas que desonram a família. O desgosto e a alegria dependem mais do que somos do que daquilo que nos acontece. Quem nunca caiu não tem bem a noção do esforço que é preciso para se manter de pé. Nós não ficamos a querer menos a quem conhece os nossos defeitos do que a nós próprios por sofremos deles. Muitas vezes é preciso mais coragem para enfrentar as futilidades do que para lutar contra abusos graves. Disse o que tinha a dizer, olhou-me apaixonante, beijou-me a face, afastou-se comedida e a vi sair se dissolvendo como miragem no ar. Até mais ver.

 

CINEMA PERNAMBUCANO



[...] O idealismo e a força de vontade muito concorreram para que a indústria cinematográfica em Pernambuco, atingisse os seus objetos, colhendo seguidas vitórias, como aconteceu noutras cidades brasileiras. Como é do conhecimento dos cineastas, a produção é a alma da indústria, sendo importante e necessário para mantê-la próspera e em atividade, de elevados recursos financeiros para a preparação e rodagem das películas, como a escolha do diretor, roteiro, realizador, operadores de som, decoradores, argumentistas, figurinistas, desenhistas, contrato de astros, estrelas e coadjuvantes. [...].

Trecho extraído da obra No mundo fantástico do cinema (Massangana/Fundaj, 2005), do advogado, memorialista, historiador, jornalista e compositor musical, Bertino Fernandes Silva, tratando sobre as origens da sétima arte, o nascimento de Hollywood, do cinema silencioso ao cinema falado, e o cinema em Pernambuco. Veja mais aqui e aqui.