segunda-feira, agosto 26, 2024

ANNIE ERNAUX, DELIA STEINBERG, RENÉE FERRER & RECIFE DE URARIANO

 Imagem: Acervo ArtLAM.

Ao som dos álbuns Lua amarela (Jazz to Jazz, 2016), Imagina (2019), My Ideal (Venus, 2019), In New York (Venus, 2019) & Como la piel (2021), da trombonista, cantora e compositora espanhola Rita Payés Roma.

 

BATENDO MÃOS, PASSO AFIADO... - Ontem saí do passado: um calabouço pro meu itinerário. Deixei pra lá o ninho em que tudo se passou, nem dava tempo, já era tarde: quantos percalços no solado dos pés. Dia desse era anteontem, parece, lembrei de mais nada – cabeça de fósforo em pés de alfaces. Foi: o mundo desembestou, racharam as cordas de guaiamuns, danos irreparáveis. E na toxicidade insalubre os aloprados reinam com suas sandices. Estou cheio com tantos queixumes e mungangas: vão ver se não estou lá na esquina. Ah, teve quem se apavorasse com coisa besta, quem dissesse do quenturão torrando tudo nas beiradas dos infernos, quem tremeu de friagem botou o pé no forno e não sobrou alma que se salvasse: cada qual seus coprólitos e flatulências, chatos de galocha. Dito pelo calado: a coisa ficou feiosa e não havia óleo de peroba que desse vencimento. Naquela: deu merda! E quem não avisou já se esqueceu. Quem se importa, expectativas, perspectivas, frustrações... - sou pras ouvintes paredes amigas, mofando nas inquietações, pro que é incompletude, nenhum desdouro - seja lá o que isso queira dizer para quem sequer tenha onde cair morto. Quem foi lá no fim do mundo não sei se já voltou. Eu que não vou, saco cheio das ingresias. Quem tocou fogo que vá buscar vento nas latas d’água. Se eu fizesse força ninguém me livraria. Nunca desisti do lugar que me fez, mesmo o que de antipático tornou-se pro meu desconforto: a vida é sempre combate, o amor move o Sol e a Lua, o meu destino. Se a noite fosse o caminho, todos para seguir. Sou pela surpresa: de léguas em tombos fiz a travessia e não perdi a viagem – passageiro que não erra não volta pra casa. Se porventura fosse o vento no céu aceso, quem partiu do nada queria tudo. Esperava a vez das boias e de cada um no cortar do apito: brincante é qualquer vivente na manobra do cordão - passando dum lado pro outro, tudo embarcado pela força da pisada do cabloclinho, vencendo a demanda, fôlego aceso à água se entrega. Soçobrei sobrevivente: os dilúvios da carne, os abismos dos sonhos – o que vem a dar no mesmo, mas são outros quinhentos. Diálogos, escolher qual, a vez do pulmão no ponto de partida, desdobras na astúcia de criar – nenhum termômetro, nem significados, afora percursos, transpirações. E era só isso, aviso aí. Não há guia, nem manual: experiência que valeu! As marcas da matriz e o que deu certo ou não, entre o que confundi de real às quimeras. Um outro dia depois, esse o prelúdio: porque não tenho palavras ásperas e não lavei as mãos porque agora é a vez de amanhã. Ainda e sempre, até mais ver.


Louise Gluck: Olhamos para o mundo uma vez, na infância. O resto é memória... Veja mais aqui.

Eleanor Hibbert: Não é quantos anos você viveu, é como eles o deixaram... Veja mais aqui.

C.J. Cherryh: Lembre-se, constantemente, que quando você fala sobre 'tempo do subjuntivo', você não está falando sobre tempo. Você está deslizando por graus de realidade... Veja mais aqui.

 

TRÊS POEMAS

Imagem: Acervo ArtLAM.

BRINDE - Pegue a taça do meu coração \ e beba. \ Da sua tigela de sombra \ ele saboreia \ os brilhos arejados que me atravessam, \ da tensão vermelha dos seus nervos, \ o sabor do meu centro. \ Pegue meu coração \ e saboreie \ seu ressentimento nas pedras, \ a alegria espumosa da manhã, \ a doçura sentenciosa das despedidas, \ ao entardecer. \ Entre seus lábios \ pegue o canto do meu coração \ e saboreie \ o buquê adstringente do meu segredo. \ Se houvesse algo para beber \ eu te diria: \ pegue o cálice do meu coração \ e beba.

OBSTINAÇÃO - Essa falta de jeito de brincar com a vida \ É um mau truque não conseguir me vencer; \ esse jeito teimoso de te amar, \ prestes a entrar \ou já saindo da última tentativa; \ esse jeito teimoso \ para reacender a chama \ onde me encontrar um dia, \ mendigo do seu corpo.

SABOR - Na língua \ a lembrança salgada dos teus olhos \ e os sucos do beijo. \ Nas dobras da língua \ o sabor desolador da ausência, \ o tempero ardente do nosso hálito. \ Na penumbra da língua \ não tanto a doçura entrelaçada, \ mas o ácido febril da mordida. \ Na minha língua de cerâmica \ o poste dos teus olhos insones, \ o longo itinerário do teu corpo. \ Na língua \ o sabor metálico do seu desejo.

Poemas da escritora e dramaturga paraguaia Renée Ferrer de Arréllaga, autora de obras tais como: Entre el ropero y el tren (Alta Voz, 2004), Itinerario del deseo (Alta Voz, 2002), La colección de relojes (Arandura, 2001), El ocaso del milênio (Ediciones y Arte S.R.L., 1999), Vagos sin tierra (Expolibro, 1999), De la eternidad y otros delírios (Intercontinental, 1997), El resplandor y las sombras (Arandura, 1996), Desde el encendido corazón del monte (Arandura, 1994), Por el ojo de la cerradura (Arandura, 1993), entre outros. Veja mais aqui.

 

MEMÓRIAS DE MENINA - [...] Comecei a criar em mim um ser literário, alguém que vive como se suas experiências fossem escritas algum dia. [...] Ter recebido as chaves para compreender a vergonha não lhe dá o poder de apagá-la. [...] Todos os dias e em todo o mundo há homens em círculo ao redor de uma mulher, prontos para atirar pedras nela. [...]. Trechos extraídos da obra Mémoire de fille (FOLIO, 2018), da escritora francesa Annie Ernaux. Veja mais aqui.

 

FILOSOFIA PARA VIVER - [...] O especial modo de existência que aflige o ser humano nos últimos séculos faz com que se esqueçam certos valores simples, mas importantes, enquanto esse lugar é ocupado com elementos carentes de sentido. Por isso se demonstra tão difícil definir o que é a vida. É claro que viver é muito mais do que dispor de um corpo e tentar satisfazê-lo em todos os seus caprichos, na verdade dominando-o mal e pouco e sendo seu escravo na maioria das vezes. Tampouco é conseguir um lugar de destaque na sociedade, porque o prestígio e os elogios são sombras ilusórias que criam homens afundados na ilusão. O que existe hoje, amanhã desaparece sem razão aparente. Os que hoje exaltam uma atitude, amanhã a lamentarão com a mesma paixão. [...] Tudo é pouco para evitar o vazio do eu interior, que permanece mudo diante de nós mesmos. Para um filósofo, viver é muito mais do que tudo o que foi exposto até agora. Viver é uma escola, a mais completa e a mais difícil de todas. Corpo, sentimentos e pensamentos são as ferramentas que nos ajudam a superar as provas neste momento tão especial de aprendizado. O tempo é o grande mestre e o eu interior é o discípulo que recolhe experiências ao longo de toda a existência. Desse ponto de vista, as circunstâncias externas têm um valor relativo, o valor necessário para nos proporcionar situações apropriadas para o nosso desenvolvimento, mas não são essenciais nem definitivas e nem constroem o homem. Ademais, quando se aceitam as circunstâncias desta maneira, elas deixam de se converter em obsessões e podem ser manejadas e modificadas com muito mais perícia. Só então o homem começa a se transformar em dono de seu próprio destino. Viver é um ato de responsabilidade, diante de si mesmo e diante dos demais. Um filósofo não pode viver de qualquer maneira. Seus atos devem ter um sentido e uma lógica que possam transcender a simples sobrevivência física. Na escola da vida tudo tem um “porquê” e, por conseguinte, um “como” e um “para quê”. Viver é um ato de generosidade para consigo mesmo e para com os demais. Trata-se de se ajudar aprendendo e de compartilhar cada sucesso, cada aprendizado, de fazer valer a existência como uma entrega constante para o mundo no qual nos encontramos e, fundamentalmente, para a humanidade da qual fazemos parte. Viver é…. estar vivo. Não é um segredo, não é um jogo de palavras. É sentir-se parte do universo vital e de suas energias, é aproveitá-las e vibrar com elas. Assim o filósofo pode fazer da vida um ato eterno para uma meta de perfeição, que é também a eternidade. Seja como for, no final do caminho, a Musa da História espera, branca e firme, com os seus olhos serenos de mármore, para estender as mãos a quem ajuda a escrever o futuro e não apenas a contemplá-lo, a inspirar para todo o sempre os bravos e determinados, os protagonistas da vida, os conhecedores do início e do fim das coisas e, portanto, deste ambiente que agora percorremos. [...]. Trechos do artigo Preencher a vida (Nova Acrópole, 2023) da filósofa, música e escritora argentina Delia Steinberg Guzmán, autora de obra tais como: Los Juegos de Maya (1980), Hoy ví... (1983), Me dijeron que... (1984), El Héroe Cotidiano. Reflexiones de un Filósofo (1996), Peligros del racismo. Reflexiones acerca del problema del racismo y alternativas filosóficas para erradicarlo (1997), Para conocerse mejor (2004), Filosofía para vivir (2005), ¿Qué hacemos con el corazón y la mente? (2005) e El ideal de los Templarios (2015), entre outros. Em seu pensamento ela defende que: [...] A vida não pode ser uma soma de poder ou de riquezas, pois acontece o mesmo com os elogios e as censuras: alternam-se como em um jogo de luzes, onde é quase impossível reconhecer algo válido e estável. [...] As nossas ideias só são válidas se forem boas e justas, tanto para nós como para os outros, e se pudermos combiná-las com os melhores sentimentos, para que possamos aplicá-las da forma mais adequada. Uma ideia por si só, sem sentimento e sem ação consequente, está fadada a morrer. A experiência do dia a dia é suficiente para nos mostrar como é difícil colocar as nossas ideias em prática. Muitas vezes tendemos a permanecer no nível dos sonhos, ou melhor, dos devaneios, que acalmam os nossos desejos e nos poupam do esforço para transformar uma ideia em realidade tangível. [...].

 

DICIONÁRIO AMOROSO DO RECIFE

[...] todos cantam a cidade onde nasceram. Mas eu, que não tenho outra, canto o Recife. [...].

Trecho de À maneira de uma apresentação, extraído da obra Dicionário amoroso do Recife (Casarão do Verbo, 2014), do escritor e jornalista Urariano Mota. Veja mais aqui, aqui, aqui e aqui.

 

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segunda-feira, agosto 19, 2024

SUELY ROLNIK, KAMILA SHAMSIE, SOPHIA JAMALI SOUFI, PATRIMÔNIO & TERRITÓRIO CULTURAL

 

 Imagem: Acervo ArtLAM

Ao som do Sharon Mansur Trio - Full Concert @ The Zone (2024) e do EP The Gap - SHASHA (Kame'a - Independent Music Group, 2021), da pianista e produtora israelense Sharon Mansur.

 

O SANGUE DOS VERSOS, QUASE POEMA... – Um poema inventava a manhã no folguedo do dia: sorriso de Sol, coisas e seres. Era a arqueologia da mata de nunca mais fabricando mundos às palavralmas, que transbordavam garganta afora pros embriões do futuro e que seriam logo desfeitos no mormaço da tarde: nuvens nos olhos, o diverso e o complexo, o desejo e o chamado - tudo perdido às forças do presente, como se hoje fosse jamais e o que ficou pra trás o gabiru respirava como quem comia duma jaca inteira. Em que pesem as doidices, os fulustrecos da vida foram levados pelo desejo da fraude e, com todas as suas esquisitices, ainda lastimam o destino no reino do grotesco. Quantos xingamentos no meio das muitas ciladas e pelas algaravias doutros papos de víboras, quanta soberba, afora lunáticos de plantão destilando suas afecções e miasmas, papagaios de pirata da glória alheia que falavam depressa e não diziam nada pelos princípios e fins de quase nenhum meio: não decodificavam o acontecido sucedendo, nem o choro de tantos na sua alegria imoral. Tudo muito complicado, quando não muito chato, tristeza do tempo - só esgotamento de sonhos e realizações congeladas pelas gretas mofadas. Estou sufocado com a fedentina das queimadas e o êxodo por toda parte - os passos fatigados nas folhas caídas lembram dos séculos esquecidos. Desenturmado sigo nômade plasmando devires: só tenho pernas na impossibilidade de abraços, o coração sofre mais que o corpo esforçado de quem não perdeu nem ganhou. No meu exílio deixarei o terror dos abismos e o capim de nenhuma cana esmagada. Nenhuma saudade pesando na cacunda da evasão, nenhuma frívola certeza e sem a felicidade de nenhum ódio. Se paraqui estava eu, faltou uma mínima pitada de sal, aceno que fosse. Entre pingos e grãos, chiados e faíscas vai a vida e o poema que não cometi. Fui, até mais ver.


Annie Proulx: Sabe, uma das tragédias da vida real é que não há música de fundo... Veja mais aqui.

Mónica Ojeda: O lugar do medo é um espaço revolucionário... Veja mais aqui.

Barbara Kruger: Estou vivendo minha vida, não comprando um estilo de vida... Veja mais aqui.

 

DOIS POEMAS

Imagem: Acervo ArtLAM.

FLORESCER - seus lábios \ É uma uva que colho todos os dias.\ Rosas azuis ganham vida em suas bochechas a cada beijo\ diga-me\ Como posso escrever sobre sua beleza? \ no volume do vento\ que os ciprestes se perturbam com a fragrância do seu cabelo\ E as estações estão recitando seu nome...

GRITAR - feridas antigas \ Dores de cabeça constantes\ Célula por célula meu corpo grita de dor\ janelas cegas\ As sombras se foram\ As respirações se foram\ as memórias se foram\ nada volta\ Eu teço histórias para segredos em silêncio.

Poemas da escritora e arquiteta iraniana Sophia Jamali Soufi.

 

INCÊNDIO DOMÉSTICO - […] Para as meninas, tornar-se mulheres era inevitável; para os meninos, tornar-se homens era ambição [...] A tristeza era o que você devia aos mortos pelo crime necessário de viver sem eles [...] Tudo o mais você pode viver ao redor, mas não a morte. A morte você tem que viver. [...] Um homem precisava de fogo em suas veias para queimar o mundo, não de gelo para congelar tudo no lugar [...] O que você faria para ajudar as pessoas que você mais ama? Bem, você obviamente não ama ninguém muito se seu amor depende de que eles sempre permaneçam os mesmos. [...] Ela sentia, como acontecia na maioria das manhãs, o profundo prazer da vida cotidiana resumido ao essencial: livros, caminhadas, espaços para pensar e trabalhar. [...]. Trechos extraídos da obra Home Fire (Riverhead, 2017), da escritora paquistanesa Kamila Shamsie. Veja mais aqui e aqui.

 

MICROPOLÍTICA & CAPITALISMO - [...] É preciso fazer um trabalho de descolonização do desejo [...] Para me ler não é necessário contar com uma formação em psicanálise, filosofia ou ciências sociais, mas viver as experiências das quais falo e se autorizar a reconhecer que isso está aí, que quem escreve é alguém que vive a mesma experiência e que tentou colocá-la em palavras. Então, é a partir dessa ressonância que meus textos são lidos. [...] O capitalismo está conseguindo colonizar o conjunto do planeta, é um regime no qual já não conseguimos nos reconhecer em nossa experiência coletiva como sujeitos, que tem a ver com o eu, com a vontade, com a consciência, com a experiência que está estruturada segundo um repertório cultural. Trata-se da experiência do mundo como um conjunto de formas, de códigos, de cenários, de personagens, de uma certa distribuição de acesso a direitos..., aí utilizamos a percepção. Mas, a percepção, a visão, não é virgem. Eu vejo você e lhe associo com uma série de representações em minha memória: fixo-me na cor de sua pele, no cabelo, na roupa que usa, levo em conta sua profissão, relaciono você com a editora que me convidou, com o seu jornal que não é qualquer jornal... Com este conjunto de coisas, posso me localizar diante de você, situar-me. É uma ferramenta muito importante que nos serve para viver socialmente, comunicar. É o que podemos chamar de cognição e é muito necessária, mas há outra experiência que estamos fazendo ao mesmo tempo que esta, uma segunda experiência que para nós – brancos modernos ocidentais, no regime colonial capitalista antropocêntrico, logocêntrico – é menos conhecida. [...] a micropolítica não é a política da experiência fora do sujeito. É a experiência entre uma forma de existência e o que está para nascer, que transforma essa forma de existência quando essa forma de existência está sufocando a vida. A vida tem que encontrar outros corpos onde estar, onde se corporizar. E aí se definem as diferentes micropolíticas. No plano macropolítico, coexistem diferentes macropolíticas: desde as mais revolucionárias às mais reacionárias, ou seja, desde a máxima vontade de igualdade de direitos até a máxima vontade de manter os privilégios e a máxima capacidade para não deixar que se movam. No plano micropolítico é diferente, as micropolíticas vão das mais ativas, as que conseguem estar à altura do que a vida pede, deixando que essa germinação aconteça, até que se confirme o desejo de um corpo, de um modo de existência, onde isso que está procurando paz encontre o seu lugar. Isso transforma a realidade. [...] Podemos dizer que de um lado está politizar o mal-estar, do outro lado, está patologizar o mal-estar. Podemos politizar o mal-estar para o mal, conforme vimos falando. É necessário politizar para o bem. Sabemos que o mal-estar não é sinal de algo ruim no sentido de falta de algo, mas, ao contrário, é um sinal de uma saúde vital que está reconhecendo o mal-estar para que tenhamos a possibilidade de tomar consciência de que é necessário se colocar em luta, porque a vida está gritando que está sendo sufocada. [...]. Trechos da entrevista (El Salto, 2019) concedida pela filósofa, escritora, psicanalista e professora Suely Rolnik, autora de obras tais como: Esferas da Insurreição. Notas para uma vida não cafetinada (N-1 Edições, 2018), Cartografia Sentimental: transformações contemporâneas do desejo (Sulinas/ UFRGS, 2016) e Anthropophagie zombie (Blackjack, 2011). Veja mais aqui.

 

PALMARES CONECTANDO GERAÇÕES COM A EDUCAÇÃO PATRIMONIAL & TERRITÓRIO CULTURAL


O evento Palmares: conectando gerações através da Educação Patrimonial e do Território Cultural acontecerá de 19 a 23 de agosto, na Biblioteca Fenelon Barreto. No próximo dia 22 de agosto, participarei com a palestra Território Cultural dos Palmares: Identidade & Diversidade, na Biblioteca Fenelon Barreto, nos horários da manhã e tarde. Uma promoção da Biblioteca Fenelon Barreto & Amigos da Biblioteca. Veja mais aqui, aqui e aqui.

  

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segunda-feira, agosto 12, 2024

ELA URRIOLA, HELENA JANECZEK, LEONORE TIEFER, FREVO & CHORO

 

 Imagem: Acervo ArtLAM.

Ao som do álbum Nossos ventos (2024) e da peça violonística Sons da cidade: amanhecendo (2021), da premiada violonista e compositora Ana Clara Guerra, que é graduada em Música e Mestrado pela Universidade Federal de Uberlândia, integrante do Duo Guerra-Correia.

 

SUBA NO TAMPO & DIGA O QUE É... - A cada dia uma surpresa: o que virá, quem sabe... Entre a minha mão e a espera tudo de efêmero. Assim fui pro mundo aprender por iniciativa própria, a me arriscar sem importar com perdas ou ganhos. Perdi, só, babau. Segui em frente. A realidade é duríssima para quem vive na corda bamba com o abismo embaixo. O prazer é o outro lado do desespero, sabia quantas orgias me levavam de volta ao que não queria: quantas chantagens, tantos gargalos, relações parasitárias, putrefatos fingidores, encefalopatas vagantes, príons letais, estranhices enigmáticas, fanatismos estertorantes, verdadeira fauna do que havia de mais repulsivo quanto abominável, muito pânico entre esfinges e medusas. A potência e autoestima no pó do abandono: o inevitável e a execrável pseudocomédia da vida. Os meus riscos espontâneos eram fugas por lugares indefinidos. Vacilei zis vezes antes de abrir a boca: calado causava menos prejuízo. Tive medo até de mim mesmo pela necessidade de aterramento - minha raiz fora apagada há tempos. Não fiz o jogo e me decidi diante dos que amam à fórceps, autômatos, covardes. O mundo vinha abaixo recorrentemente: o drama das separações, lobos que se passavam por cordeiros, a destrutividade gratuita, sobrava só entre o ter e o ser, vencer e superar os medos. Tomei todas as decisões e aprendi na minha ascese: só ama quem tem capacidade de dar amor. Mas sou pouco e carreguei o peso da existência e dos sonhos esgarçados, afirmei e fui pro escanteio, descartado. Superei o rol de desesperos, muito embora quedava invariavelmente com os vínculos esfarrapados. Pude voltar: me desviei e, cônscio, retornei. Preenchido de vida e, mesmo que a meu lado só restasse a morte, o amor intransitivo e incondicional: comunguei com tudo e todas as coisas, senti-me separado para maturar pelo que fui e liquidar-me pela alteridade. O refúgio na solidão, satisfeito, sou o que sempre fui: xexéu na vida.

 

Kamila Shamsie: O amor é mais forte quando ele deixa ir ou quando ele persiste?... Veja mais aqui.

Jeanne Moreau: A idade não protege você dos perigos do amor. Mas o amor, até certo ponto, protege você dos perigos da idade... Veja mais aqui.

Pierre Louÿs: Quando todos os cadarços estão desfeitos, quando todas as anáguas caem, a mulher está vestida apenas com seu perfume... Veja mais aqui.

 

VOZES AO VENTO

Imagem: Acervo ArtLAM.

Sou uma voz que passa \ como o guincho de um trem \ entre as estações, uma \ voz \ desprezada e anônima \ que agita as nuvens da torre sineira \ na sua luta \ e na sua busca silenciosa de \ eco. \ Não foi um apelo estranho. \ Éramos um exército imberbe de vozes, \ a negação \ de um milagre, um \ naufrágio \ germinativo \ de corpos muito breves \ perpetuados \ em claustros e planícies; um \ coro \ seráfico \ estourado pela dança do bastão.\ Nos corredores, \ onde cantam os anjos, o pecado \ é açoitado com urtigas ; Nos corredores onde as almas são peneiradas sob a névoa \ rotineira do incenso, \ onde pedir que a luz chegue te manda para as sombras, \ ainda estamos lá .\ O mundo olha (aquele planeta celestial \ nas suas ideias, \ terrestre \ na sua hipocrisia) \ e diz que nos conhece.\ Não conheço seu rosto \ mas sei \ que às vezes você olha \ para o outro lado, \ e esse deserto em meu corpo não será suficiente, \ nem minha tristeza no mundo.\ Eu era uma voz que se elevava \ na torre sineira, \ um grito \ de certezas núbeis, \ era aquela voz \ que pedia a Deus \ que as derrubasse com um raio.\ Deixe-me ser \ a primavera que perfuma o vento; \ amanhã seja a árvore \ cujas raízes se transformam; \ Deixe-me ser alguém \ que não te odeia. \ Se eles voltarem, \ deixe-me desaparecer.\ A lua aparecerá na colina \ para saciar sua sede, \ e alguém \ consertará minha \ provação fútil com salmos. \ Quando dói, \ não basta acreditar. \ Sou uma voz que não pode ser silenciada, \ porque amanhã \ será tarde demais \ para o futuro.

Poema da escritora, filósofa e pintora panamenha Ela Urriola, que é doutorada em Filosofia Sistemática pela Karlová Univerzita (Praga) e investigadora em Estética, Bioética e Direitos Humanos. Atualmente atua como professora de Estética na Faculdade de Belas Artes nos cursos de bacharelado e mestrado, e de Filosofia, Ética, Bioética e Direitos Humanos na Faculdade de Letras da Universidade do Panamá. É autora de obras como As Coisas Deste Mundo (2020), A Neve na Areia (2014), Buracos Negros (2015), A Idade da Rosa (2018), Noemas (2002), Modus vivirdi (1997) e El grito e silêncio (1996).

 

A MENINA COM A LEICA - [...] O amor é um propulsor tirado do passado que você não sabe aonde ele te leva. [...] Gerda Taro uma alegria desavergonhada que se lança para conquistar o mundo [...] Até os olhos de uma estranha como ela podem ver que aqueles dois se reconhecem nos outros dois. E estão igualmente apaixonados. [...] Mas não foi o gosto pelo jogo de espelhos que os levou a fotografar o mesmo tema [...] A América é uma nação da qual fazer parte, não uma religião na qual renascer [...]. Trechos extraídos da obra The Girl with the Leica: Based on the true story of the woman behind the name Robert Capa (Europa, 2019), da escritora alemã Helena Janeczek, contando a história da fotógrafa judia alemã Gerda Taro, que foi uma ativista antifascista, artista e inovadora, morta enquanto documentava a Guerra Civil Espanhola e tragicamente se tornou a primeira fotojornalista a ser morta em um campo de batalha. Veja mais aqui.

 

VIDA & SEXUALIDADE HUMANA - A sexualidade é uma parte vital de nosso crescimento pessoal e desenvolvimento ao longo de toda a vida... Pensamento da educadora, pesquisadora, terapeuta e ativista estadunidense, Leonore Tiefer, que desenvolveu uma diversidade de ativismos, entre eles feminista, acadêmico, antimedicalização, anti-estupro, nos diagnósticos de DSM, em pesquisa sexual e mulheres, na cirurgia estética genital feminina e realizou a Campanha Nova Visão como um projeto educacional para criação de um novo modelo de saúde sexual feminina. O seu pensamento também enfatiza que: [...] Em uma sociedade onde a culpa é sua se você não faz sexo direito, e você tem que fazer muito sexo e tem que fazer direito, mas ninguém te ensina como... você está procurando uma maneira de desculpe-se. de seus problemas, e a biologia oferece essa desculpa. [...]. Ela é autora de diversas obras, entre elas Human Sexuality: Feelings and Functions (1979) e Sex is Not a Natural Act and Other Essays (1995), entre outros.

 

FREVO & CHORO

[...] São histórias muito importantes para a cultura brasileira que até então continuavam inéditas e restritas a Pernambuco. Juntar as duas histórias aconteceu por acaso. [...] A história do choro eu também tinha interesse em escrever, mas achava que seria mais difícil. A do Vassourinhas teve uma cobertura muito grande na imprensa daqui e do Brasil. A do choro quase nada [...] Mesmo assim acho que juntando o quebra-cabeças de matérias notas, entrevistas deu pra contar bem a história dessa viagem, que considero a maior epopeia do carnaval brasileiro [...].

Trechos extraídos da obra Choro e Frevo – Duas viagens épicas (Pagina21/Funcultura, 2023), do jornalista e crítico musical José Teles, autor de livros como Do Frevo ao Manguebeat (Editora 34 - SP); O Frevo Rumo à Modernidade e O Baião do Mundo (Fundação de Cultura Cidade do Recife); Lá Vem os Violados – Quinteto Violado 50 anos (CEPE); O Frevo Gravado – de Borboleta Não É Ave a Passo de Anjo (Funcultura/Edições Bagaço); Claudionor Germano – A voz o frevo; ( CEPE); Da Lama ao Caos – Que Som É Esse Que Vem de Pernambuco (Edições SESC-SP), entre outros. Veja mais aqui e aqui.

 

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segunda-feira, agosto 05, 2024

NADIA KISUKIDI, ANNA STAROBINETS, CAROLYNE ACEN & OSMAN LINS

 

Imagem: Acervo ArtLAM.

Ao som dos álbuns Elevation, Op76 nº.2 (Pastel Records, 2024), The Fauns, Op.60 (Pastel Records, 2024), Cécile Chaminade Performs Original Piano (Torill Music, 2019), Masters Of The Roll (James Stewart Music. 2019) e The Hall Collection, Vol. 1 - 1901-1927 (Pierian Recording Society, 2012), da pianista e compositora francesa Cécile Chaminade (1857-1944). Veja mais aqui.

 

CANÇÕES DO VENTO... – A primeira canção ao amanhecer: da janela a cidade e a brisa de Zéfiro pelas encruzilhadas transhumanas, corredores e túneis sombrios. Meus versos são escavações no asfalto aguando plantas, passos, direções invisíveis: opção de existir além dos limites, como um ressurreto indígena desgarrado de povoado extinto, escapando do apagamento e de todas as atrozes invisibilidades. Doravante uma ponte móvel, para lá e cá remexendo quase sem querer, como se eu fosse uma flecha viva dançante usurpando fronteiras. Iansã ensinou o toque da mão e a pedra, o corpo pensante, outridade sim, empatia sim, resistir sim e mais: todoutras, cada qual suas descobertas. Não sou nem nunca fui Medusa, quanta pedra e pó. Alijado experimentei pelos olhos mortos dos que estão sentados ou deitados nas bolhoutras e suas vindicações falazes, os meus versos ecosóficos diante das dicotomias existenciais. Sou-me sucessivos amanheceres. Vou-me pela segunda canção ao meio dia e com Rayka nas rajadas de Bóreas. Escrever pra quê? Transbordo, não mais cabendo em mim. Voo além, outroutra. E uma orquídea desabrocha no peito: é a arte rio que passa e o tempo do longe, o lugar às margens do agora bem-vindo, salvando-me de uma rede de alçapões com os dilemas da morte, da autorrealização e do isolamento. Pude errar muito e voltar, ser-me impreciso e aos malogros, reconhecendo-me vivências, oceânicas experiências interdimensionais, curando feridas, sarando talhos abertos. Quem não erra? Isso pode e deve ser afinal o acerto. A dor ensinava e aprendia, deixava deixar: devires, aporias diatônicas e cromáticas, artisticulturais. Tudo é possível! Sou o meu próprio prazer no cotidiano: um bicho feio pro riso das crianças. E a terceira canção entre alvoradas e ocasos não impediu o que previa: adivinhava a dor do deserto. As ideias são ratoeiras armadas e o corpo pagava o preço. O amor sempre foi e será paradoxo, quereres equidistantes. Quase sussurro só, um cochicho talvez, apenas. Fiz tudo que podia e me libertei com a descoberta da arte escondida: a vida plena e quantos sou, já gritei muito e fiquei rouco; hoje apenas digo e isso me basta: sorrir & dançar. A luta continua... Até mais ver.

 

Enid Blyton: Se você não pode cuidar de algo que está sob seus cuidados, você não tem o direito de ficar com ele... Veja mais aqui.

Charlotte Mary Yonge: As regras gerais são perigosas de serem aplicadas em casos particulares... Veja mais aqui.

Diane di Prima: Acho que o poeta é a última pessoa que ainda fala a verdade quando ninguém mais se atreve a fazê-lo. Penso que o poeta é a primeira pessoa a começar a moldar e a visualizar as novas formas e a nova consciência quando ninguém mais começou a senti-las; acho que essas são duas das funções humanas mais essenciais... Veja mais aqui.

 

DOIS POEMAS

Imagem: Acervo ArtLAM.

A SITUAÇÃO DE UM ESCRAVO - O ar a bordo era fétido e pútrido. Acorrentados pelos tornozelos em caixões, o mal arrastou a mim e a outros com cicatrizes nos lábios para bordo. Humilhadas sob o sol, fomos despidas, examinadas da cabeça aos pés e colocadas em alojamentos para sermos estupradas. Meus sentidos ficaram entorpecidos pelo abuso, crises de fome com náuseas, prisão de ventre e dores de cabeça me deixaram doente. As alucinações vindas da distância desamparada causaram arrepios na minha espinha enquanto sussurros embaladores de algemas me atormentavam. A âncora foi colocada, velas enormes fizeram o navio voar em meio a nuvens escuras ameaçadoras. O trovão retumbou como um monstro faminto. A brisa fria varreu o navio enquanto fiquei entorpecido de dor por meses. Couro pesado desceu sobre minha carne encolhida e meus membros algemados. Sofri a angústia de ontem enquanto o zelo sagrado em meu peito brilhava precedendo minhas angústias. Um palco elevado de madeira me recebeu em terra. Nus, expostos ao raio penetrante do sol, os lances eram computados cuidadosamente. As negociações foram feitas, eu agora pertencia à “massa”. Trabalhando no calor das plantações em condições adversas, minhas costas doíam e os ferimentos causados ​​pelas chicotadas do feitor doíam meus dedos sangravam por ter colhido algodão. Mentalmente subjugado, escondi-me atrás do bálsamo calmante da religião. Minha mente não era mais minha, esse corpo pertencia à “massa”. Eu constantemente empinava na noite sagrada, lamentando um futuro sem esperança para meu filho – cantarolando uma canção lânguida na esperança de que meus ancestrais pudessem ouvir minha situação. Levantei a cabeça para o céu e imaginei a carícia da liberdade sob uma constelação.

SAPIOSSEXUAL - Sinto-me sexualmente atraída pela inteligência. Conversas íntimas brotando de uma mente eloquente, despindo minha consciência e fazendo amor com meus pensamentos. Dando-me orgasmos estimulantes cerebrais a partir do intercâmbio ao vivo de discussões alucinantes, transmissões diretas estimulando meus sentidos de locutor em um jogo de palavras sensual onde nossos pensamentos lutam com nossos sentimentos em uma linguagem intelectual. Sinto atração sexual por um homem inteligente. Constantemente perdidos em um jogo de acasalamento mental enquanto nossos pensamentos convergem para uma fusão cósmica. Mentes se estendendo como estrelas binárias em uma galáxia. Nadando em um oceano de filosofia e psicologia, um mar de ideias brilhantes, e valsando em uma floresta de oportunidades em um ninho de amor analítico que transborda teorias e fatos sangrentos. No alto de um amor que me arrebata com cada palavra enquanto sou dominado por um extenso vocabulário. Dar gases que contraem nossos ouvidos e fazem nossas mentes se prenderem ao sexo da alma. Interesse despertado, cuidadosamente sintonizado com uma mulher peculiar como eu. Seduzindo meus nervos com conversas explosivas. Levando-me em uma jornada fascinante e pensativa para expor as maravilhas da mente. Através de desvios de lógica, verdade e sensualidade entrelaçadas em conhecimento feliz. Redirecionando o jogo sexual superficial e falso que os homens jogavam comigo. Sinto-me sexualmente atraído pela inteligência. De dois amantes sapiossexuais embriagados de paixão, construindo energia criativa e liberando vibrações intelectuais, culminando com a estimulação mental. Acariciando minha carne com poesia cognitiva a partir de emoções existentes enquanto o levanto em um profundo recital de poesia falada sobre o mundo. Educando-o, dando-lhe algo para meditar. Intrigando-me com sua bela mente, provocando meus pensamentos, despertando neurônios enquanto as sinapses de nossos cérebros executam danças complexas. As batidas tornam-se uma cadência ressonante. Fusão de instrumentos musicais enquanto nossos pensamentos giram e criam um ritmo harmonioso em uma dança mental orgástica profunda em um mundo que vive a pior revolução sexual. Um mundo onde a beleza física é superestimada e a inteligência subestimada. Mentes escravizadas, presas à paixão fugaz e à fachada física como a erva mágica. Ignorância que confunde a mente. Um mundo onde as mulheres inteligentes são intimidadoras e rotuladas de “Senhorita Sabe Tudo ou Cabeçuda”. Um mundo onde os homens inteligentes são intimidadores e rotulados de “Sr. Saiba tudo ou tenha orgulho”. Em um mundo onde mora uma mulher Sapiossexual como eu.

Poemas da artista e poeta ugandesa Carolyne M. Acen – Afroetry.

 

VOCÊ TEM QUE OLHAR - [...] Você não pode recuperar o que perdeu. Aqueles que perderam a aparência humana não podem voltar a ser pessoas. Mas o sistema pode ser corrigido e essa é a minha esperança. É por isso que indico os nomes reais de pessoas e instituições. É por isso que escrevo a verdade. [...] Não há razão para você sentir dor. Não há nenhuma razão para sentir dor [...] Mas se este livro ajudar alguém com a sua dor, significará que não foi escrito em vão. E que, pelo menos, o que nos aconteceu teve algum significado. [...]. Trechos extraídos da obra Tienes que mirar ( Batiscafo, 2022), da escritora, jornalista e roteirista russa Anna Starobinets.

 

O UNIVERSAL NA SELVA - [...] As cenas são múltiplas, disparatadas. E, em cada uma delas, o termo “universal” é brandido como um estandarte. É preciso combater o de perigo do deslocamento, as ameaças presumidas da separação. [...] Devolver a cada um o que é de cada um. Não se corta em pedaços a essência imaterial da humanidade. Fazê-lo é impedir-se de produzir enunciados de verdades partilhadas. Pior ainda, é renunciar ao discurso de uma emancipação comum. Alimentar pulsões tribais contra a paciente elevação do trabalho e da cultura. [...] É sabido: a nossa é uma época da recuperação e da distorção. As palavras, mastigadas e remastigadas na boca, acabam por significar aquilo contra o que, justamente, elas haviam sido forjadas. [...] O museu universal é acolhimento: ele defende uma hospitalidade viva. Limitá-la se constituiria em uma violência. Esse museu abre suas portas a todos os humanos, a todos os objetos, de onde quer que venham. Mais ainda, ele relembra o próprio de todo devir humano: a passagem, a travessia. Ser do mundo é, primeiramente e de maneira essencial, circular, estar em movimento, jamais ser determinado e entravado pelas fronteiras da pátria, do Estado-nação, que produzem exclusão. [...] Ali onde a colonização significava a monopolização do mundo por alguns, o imperativo da descolonização exige que se devolva o mundo ao mundo, que se dê a cada parte do mundo a possibilidade de acolher o mundo, de fazer mundo. “Assimilar, não ser assimilados”, como corolário do ato de restituir. [...] Nesse sentido, atrás da questão do universal se abriga sempre aquela da identidade, isso é, a da identificação do sujeito que fala, que toma a iniciativa de começar um relato e de configurar um mundo. As reflexões sobre o universalismo esbarram em uma dificuldade constitutiva e insuperável: o universal é sempre limitado pela situação daquele que o enuncia. [...]. Trechos do estudo O universal na selva (Concinnitas, maio de 2020), da filósofa e escritora francesa Nadia Yala Kisukidi, que é professora da Universidade de Paris 8 e autora da obra Bergson ou l’humanité créatrice (CNRS, 2013).

 

CENTENÁRIO DE OSMAN LINS

Duas vezes foi criado o mundo: quando passou do nada para o existente; e quando, alçado a um passo mais sutil, fez-se palavra. O caos, portanto, não cessou com o aparecimento do universo; mas quando a consciência do homem, nomeando o criado, recriando-o, portanto, separou, ordenou, uniu. A palavra, porém, não é o símbolo ou reflexo do que significa, função servil, e sim o seu espírito, o sopro na argila. Uma coisa não existe realmente enquanto não nomeada: então, investe-se da palavra que a ilumina e, logrando identidade, adquire igualmente estabilidade. Porque nenhum gêmeo é igual a outro; só o nome gêmeo é realmente idêntico ao nome gêmeo. Assim, gêmea inumerável de si mesma, a palavra é o que permanece, é o centro, é a invariante, não se contagiando da flutuação que a circunda e salvando o expresso das transformações que acabariam por negá-lo. Evocadora a ponto de um lugar, um reino, jamais desaparecer de todo, enquanto subsistir o nome que os designou (Byblos, Carthago, Suméria), a palavra, sendo o espírito do que - ainda que só imaginariamente - existe, permanece ainda, por incorruptível, como o esplendor do que foi, podendo, mesmo transmigrada, mesmo esquecida, ser reintegrada em sua original clareza. Distingue, fixa, ordena e recria: ei-la.

Texto do escritor Osman Lins (1924-1978). Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.

 

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