segunda-feira, março 25, 2024

HIRONDINA JOSHUA, NNEDI OKORAFOR, ELLIOT ARONSON & MARACATU

 Imagem: Acervo ArtLAM.

Ao som dos álbuns Refúgio (2000), Duas Madrugadas (2005), Eyin Okan (2011), Andata e Ritorno (2014), Retalhos do Brasil (2019), Noite e dias (2022) e Abertura das Águas (2024), da pianista, compositora, arranjadora e diretora musical Christianne Neves, que é Mestre em Música pela Unicamp e integrou a Orquestra Heartbreakers (1994-2000) e Havana Brasil (2000 a 2009).

 

PEQUENA FUZARCA DELIRIOSA... - Eternizar o momento e cada um dos que sucedem é o que faz cada ser pensante ascender ou desmontar a todo instante na vida, a ponto de assuntar acerca de um tanto de hipóteses agora tão exóticas. O certo é que a gente não diria tanta besteira se sacássemos a similaridade entre a teia cósmica e a rede neural. Afinal, a gente destrói tudo que é integração. E se chegamos ao ponto crítico da interconexão, outras interrogações nos assolam do absurdo pro que é conveniente, e o possível do que não é. Não fossem os paradoxos, a gente parava e ria à toa. Tome tento! Quem aparece no espelho pode ser outro e é preciso botar o lixo pra fora, dar fé da bússola e fazer o que precisa ser feito. Quem tem garrafa pra vender que se safe; quem não tem, que dê seus saltos soltos. O que foi de ontem não é mais, o de amanhã é pragora. Pois bem, uma situação dessa na esquina da hora, sem muxiba no moquem, nem ponto cardeal por direção, assim do nada, dei de cara com uma distinta jovem - coisa tão desmantelada que ouvia rufarem os tambores de Alagoinhanduba pelo que se parecia com a queda do Bennu. Tei bei. Pra se ter uma ideia, logo de sopetão, ela se achegou Annie Vivanti: Nasci com paixão pelas distâncias... Eu sou mulher, quero te ver... Precavido com o sopapo tentei dar um passo atrás, o que foi inútil, ela segurou-me pelo braço e desfiou o rosário: Sou Margarida Gretchen, filha do imperador da grande ilha de Nimpatan do Holmesby! Onde? Vamos. Oxe! Nem pisquei os olhos e já chegávamos à Kelso, que nem eu nem ela nunca tínhamos visto. Caminhamos por suas ruas estreitas e sujas, até adentrarmos ao palácio que se tornou um amontoado de barracas imundas. Ali ela assumiu o trono e não sabia o que fazer no meio daquela desordem total. Levou-me com alvoroço ao Repositório do Conhecimento e, entre os objetos nem tão valiosos ali expostos, estavam o enxoval do bebê que nunca fora, seu berço e urinol, brinquedos e utensílios infantis. Comovida saiu dali me puxando para gormarksees, o asilo dos lunáticos. Hem? Ah, era o recinto mais luxuoso daquelas paragens, ao que ela furiosamente desalojou os ocupantes para servir-lhe de morada com o futuro marido. Como? Explicou-me: ao nascer seus pais mandaram-na para um convento, no qual ficou enclausurada por muitos anos. Uma das freiras confidenciou reservadamente que ela era cobiçada pela paixão e luta fratricida entre dois irmãos apaixonados. Mesmo? Nem se animara direito e logo soube da causa perdida: ambos se mataram no confronto. Ah! Ao desanimar foi, então, avisada que o pior ainda estaria por vir. Seu pai acabava de falecer e, como princesa, precisava assumir o trono. E sua mãe? Ela olvidou e abria portas, até sumir corredor adentro, deixando-me no salão por algum tempo. Nada admirável nem pra se ver, mãos abanando por entretenimento. Pensei em dar no pé e ela logo retornou com as faces abusivamente cobertas por ruge, colares enormes e pesados ao pescoço, sufocando-se com os seios comprimidos por cotas de malha que se alargavam na cintura, a tropeçar na barra duma saia estendida por vários metros, dando-lhe a aparência de sinos, dizendo-me que assim se vestia em conformidade com os costumes femininos do lugar. Estou bonita? Ah, tá. Uma coisa me chamou a atenção: à cintura trazia uma corda enrolada, na qual aparecia uma garrafinha pendurada, com algo vivo se mexendo dentro, parecia. Ao flagrar minha olhadela no frasco considerou que eu não comiserasse, pois se tratava do Fausto de Goethe, um desgraçado que se aproveitou dela anos atrás. O farsante havia feito juras de amor e, no afã de ficar a sós com ela, propositalmente conduzindo-a a dar uma poção do sono para a vigilante mãe dela. Foi iludida pelo tal e assim procedeu inocentemente. Na verdade, ele queria só se aproveitar dela e partiu para abusá-la. Pior: não deu certo mesmo porque a coitada da genitora bateu as botas ali na hora, aos estertores e envenenada. Um escarcéu. Foi assim que ela engravidou dele sem saber como, fato que levou o seu irmão a amaldiçoá-la e, por isso, foi pelo desalmado devidamente assassinado. Dois crimes sem ter nem pra quê. Em sua fuga ela retornou atormentada para o convento, perseguida noites e dias pelo espírito maligno. De repente viu-se grávida e, pouco tempo depois, deu à luz. Uma bronca! Então, secretamente afogou o filho recém-nascido e livrou-se como podia, até ser capturada e condenada à morte por seu ato insano, aprisionada para cumprir a sentença em dia e horário marcados. A revogação da sua pena fora dada por Mefistófelis: Salvou-se! E ao mesmo tempo vingou-se dele transformando-o num diabinho coxo de Guevara, devidamente arrolhado nesta garrafinha e, finalmente, o desgraçado ainda foi salvo por ela mesma ao impedir que fosse dizimado no lago Vitória da Tanzânia, complicando ainda mais o Pesadelo do Darwin de Sauper. Fechou a narrativa com Sue Townsend: Sentimos as coisas mais do que outras pessoas. Sabemos que o mundo está podre e que os queixos estão arruinados por manchas... Após discorrer pela a espiral de seus ressentimentos, perguntou-me: Sabe quem sou, afinal? Depois de tudo ela foi abrigada por um Mestre que se esquecera do próprio nome e sequer lembrava-se de ter estuprado várias de suas alunas e fugido sem paradeiro. Caiu noutra? Não tendo opção na vida foi feita amante dele, porque estava entre a cruz e a espada: era a única forma de se desvencilhar das astúcias do malfeitor endiabrado. Acontece que no meio da perseguição implacável, conseguiu que muitas pessoas se deixassem iludir que ela seria a fugitiva noiva de Messina do Schiller. Não era e cadê saída? Aí segurou o soluço e aproximou-se quiromante a me segredar que recebera minha carta desesperada. O quê? Tomou-me as mãos e conferiu as linhas nas palmas: Sabia, o diabo coxo havia dito a verdade daquela vez! Quer se explicar? Para ela eu era um enviado dos deuses. Deneguei, reiteradamente. Dissimuladamente me presenteou o símbolo fulgurante dos adoradores crallilah, um indubitável suborno: uma pesada barra de ouro. E desesperou que não queria envelhecer, precisava manter-se a cada dia vindouro mais viva e fresca, era o que parecia e o que eu tinha a ver com isso, ora. Não era fácil precisar: propôs um pacto que era o meu desafio ao plenilúnio - teria eu de seguir o êxtase para obter o sucesso com as minhas escrevivências. Como assim? Chantageava aos dengos. Incrédulo, deu-me por prova que Jesus voltou e estava escondido no paradoxo de Spinoza, para jamais tornar-se cristão, nem nunca ser a adoração de nenhuma empresa do negócio religioso, muito menos símbolo do poder que usa, mata, estupra e violenta os sobreviventes de qualquer lixão. Ameaçou apontando-me pras as cabeças vivas de Hidra no alto da parede e o fim do mundo, caso eu não aceitasse. Escolha. Será louca? Só sendo. Franziu o cenho e raivosa desbocou: estamos todos enredados na trama de Bulgakov. Não entendi nada e já anoitecia, quando ela se saiu com Leonora Carrington: Nasce-se, vive-se, morre-se. O que é a morte, eu não sei... Provavelmente sinto falta do passado... E eu tive que pagar o pato, por bem ou por mal. No dia seguinte, o lugar mais limpo. Ufa! Não sei se foi um sonho ou se passei por uma escotomização: um sopro mágico e tudo sumiu ou esqueci. Até mais ver.

 

PLEURA

Imagem: Acervo ArtLAM.

1 - couraças abertas no primeiro do último século. órgão cimentado rubro. como no princípio: a dor era parte inferior. criaram um nome para tapar os buracos: chamaram-no coração. veio o tempo que é enganador. soprou sob os rostos das mulheres primeiro: fez delas coisas impraticáveis. e depois foi no olho esquerdo dos homens: os fez secretos. foi para as crianças criou a eternidade dentro. o coração verga – disse o X. era preciso um órgão que fosse seguro. atento aos delírios da visão.

2 - olharam-se: os únicos feitos para a sorte. caminharam endireitados sem saber onde se tinham escondido os ouvidos. os pés alados sofreram a pressa do sopro vindo das pedras. - para que servem os dedos? o mundo é um espelho centrado, ofusca as mãos. (uma voz diz): entras na porta transfigurada, força vulcânica. pulmões no clarão agudo da morte. entras na destreza das coisas com as glândulas por fora: invasão surda. imóvel. entras na carne da razão com a luz apagada. sabes e sabes que a luz apagada é a mais acesa. pela pálpebra entras no interior do redemoinho ou na ferida hermética.

3 - foi naquele dia em que o céu caiu para receber o poema da ditadura. as vozes dos homens amanheceram, quem podia cantar cantou. continuam eles à procura do órgão. – façam o que quiserem, dei-vos a liberdade. os cegos inundaram as vísceras. os surdos enlouqueceram. o mistério deambula no órgão primário. ossos do órgão podem se ver no firmamento.

4 - o mundo faz barulho à procura desse animal. ele que sobe e desce nas alturas supostas pelas grandes tempestades. deus vê as caras brutas dos sentimentos, perdoa e continua….o animal geme de fome. na nuca tem água violenta. sede mais antiga que o corpo com todas distâncias da terra. esse animal universal concentrado na insónia, arrasta para fora a estação circular das poças. veda a treva e a luz no mesmo saco. belo clarão o que se faz por cima das entoações secretas.

5 - uma fotografia guiada por uma criança, - dizem a única que pode ver o animal: “era uma árvore rosada, com ramos magros altos oblíquos, em cada ramo havia um livro fechado na parte superior e noutros menores livros abertos. dificultavam o tórax, traziam abelhas nas flores rasas. como a árvore tinha olhos, o peso não se aguentava sob as pálpebras. por isso surgiram as membranas revestidas de leveza, pareciam esponjas. pareciam algodões.”

Poema da escritora e jurista moçambicana Hirondina Joshua, integrante da Associação dos Escritores Moçambicanos e autora dos livros Os ângulos da casa (2016), Córtex (2021) e Câmara de Ar (2023), entre outros livros.

 

BINTI - [...] Preferimos explorar o universo viajando para dentro, em vez de para fora. [...] só porque algo não é surpreendente não significa que seja fácil lidar com isso. [...] Dizem que quando se depara com uma luta que você não pode vencer, você nunca pode prever o que fará a seguir. Mas eu sempre soube que lutaria até ser morto. [...] Meu pai não acreditava em guerra. Ele disse que a guerra era um mal, mas se acontecesse, ele se deleitaria com ela como areia em uma tempestade. [...] Eu acreditava que só poderia ser grande se tivesse curiosidade suficiente para buscar a grandeza. [...] Não importa qual escolha eu fizesse, eu nunca teria uma vida normal, na verdade. Olhei em volta e imediatamente soube o que fazer a seguir [...]. Trechos da obra Binti (Tordotcom, 2015), da premiada escritora e educadora nigeriana-americana Nnedi Okorafor. Veja mais aqui.

 

ANIMAL SOCIAL - [...] A pessoa mais fácil de fazer lavagem cerebral é aquela cujas crenças são baseadas em slogans que nunca foram seriamente desafiados. [...] quanto mais semelhante uma pessoa lhe parece em atitudes, opiniões e interesses, mais você gosta dela. Os opostos podem se atrair, mas não permanecem. [...] Assim, se o amor apaixonado é como a cocaína, então o companheiro é mais como uma taça de bom vinho – algo delicioso e prazeroso, mas com menos palpitações de saúde e menos mania. [...] Notícias são uma forma de entretenimento. [...] Uma apreciação do poder da auto-estima ajuda-nos a compreender porque é que as pessoas que têm baixa auto-estima ou que simplesmente acreditam que são incompetentes em algum domínio não ficam totalmente felizes quando fazem algo bem, porque pelo contrário muitas vezes sentem-se como fraudes [...] Talvez mais pessoas estivessem inclinadas a agir se, tal como o estereótipo do terrorista, o aquecimento global tivesse bigode [...] alguns psicólogos evolucionistas sustentam que os sistemas de crenças ideológicas podem ter evoluído nas sociedades humanas para serem organizados ao longo de uma dimensão esquerda-direita, consistindo em dois conjuntos centrais de atitudes: (1) se uma pessoa defende a mudança social ou apoia o sistema como ele é, e (2) se uma pessoa pensa que a desigualdade é resultado de políticas humanas e pode ser superada ou é inevitável e deve ser aceita como parte da ordem natural. Os psicólogos evolucionistas apontam que ambos os conjuntos de atitudes seriam tiveram benefícios adaptativos ao longo dos milénios: o conservadorismo teria promovido a estabilidade, a tradição, a ordem e os benefícios da hierarquia, enquanto o liberalismo teria promovido a rebeldia, a mudança, a flexibilidade e os benefícios da igualdade. Os conservadores preferem o familiar; os liberais preferem o incomum. Todas as sociedades, para sobreviver, teriam feito melhor com ambos os tipos de cidadãos, mas podemos ver porque é que liberais e conservadores discutem de forma tão emocional sobre questões como a desigualdade de rendimentos e o casamento homossexual. Eles não estão apenas discutindo sobre a questão específica, mas também sobre suposições e valores subjacentes que emergem de seus traços de personalidade. É importante ressaltar que estas são tendências gerais. A maioria das pessoas desfruta de estabilidade e de mudanças nas suas vidas, talvez em proporções diferentes em idades diferentes; muitas pessoas mudarão de ideias em resposta a novas situações e experiências, como foi o caso da aceitação do casamento gay; e até há relativamente pouco tempo, na sociedade americana, a maioria dos membros de ambos os partidos políticos estavam dispostos a comprometer-se e a procurar um terreno comum na aprovação de legislação. Ainda assim, tais diferenças na orientação básica ajudam a explicar o facto frustrante de que liberais e conservadores tão raramente conseguem ouvir-se uns aos outros, e muito menos conseguir mudar a opinião uns dos outros. [...]. Trechos extraídos da obra The Social Animal (Worth Publishers, 2011), do psicólogo estadunidense Elliot Aronson. Veja mais aqui.

 

MARACATU DE BAQUE SOLTO

[...] essa gente das terras da cana espera ansiosa pelo Carnaval. Só então a cidade, transfigurada, voltará para eles de novo a brilhar. É o tempo do Maracatu. [...] Até onde a memória alcança, sempre foram gente da cana ou de emprego humilde do pequeno comércio das vilas e povoados. [...].

Trechos extraídos da publicação Maracatu do baque solto (Quatro Imagens, 1998), do fotógrafo Pedro Ribeiro e da socióloga e pesquisadora Maria Lúcia Montes. Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.

 

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segunda-feira, março 18, 2024

JUDITH BUTLER, EDA AHI, EVA GARCÍA SÁENZ, DAMA DO TEATRO & EDUCAÇÃO LINGUÍSTICA

 

Imagem: Acervo ArtLAM.

A música contemporânea possui uma ligação intrínseca com a música do passado; muitas vezes, um passado muito distante. Como um processo contínuo que nunca se rompeu completamente... Toquem, gravem e divulguem obras de compositoras, de compositores, de grupos étnicos não privilegiados pela mídia...

Ao som de O porto e outros portos (2020), Pêndulo (2021) e Canção de outono (USP-Filarmônica, 2023), da compositora Silvia Berg, que também é regente, professora e pesquisadora da USP.

 

SALVE A MÚTUA LOQUACIDADE DOS ENTROCAMENTOS ESCATOLÓGICOS... - Um passo, tal uma jogada: não atravessará impune o tabuleiro, ninguém. Uma tuia de imprevisibilidades no ar e por um triz. Livre-se ou passe bem. Pode-se, de qualquer forma, a tentativa de burlar pelo ileísmo e levar como se fosse fulano escapando de gaslighting, síndrome de juvenoia e outras sindêmicas calamidades dessa doida pós-modernidade. Lá ou cá, há quem sofra de abstinência financeira e do paradoxo de Salomão, quando menos mal: se o terraço caiu, logo logo não sobrará nada além do quintal devastado. Isso poderia ser o caos, para dizer o mínimo. O que não é nada para quem nunca teve moderação com gastos e cois&tal. Na vera, melhor seguir Ariana Harwicz: Devemos parecer entusiasmados, devemos mostrar aos outros que aproveitamos a vida... Mesmo que saiba que ninguém está isento de lapadas tidas por injustificáveis na vida, dizer asneiras ou blasfêmias será sempre como se aliviando na privada. Ato falho que seja é sempre ofensa e todo mundo vive de véspera: quando chega o grande dia já não tem a menor graça. E se não tiver uma panelinha agitando todo coreto, o resto é tudo do contra: todos são cúmplices até que se prove qualquer inocência. Vale o que disse Olive Schriner: Sem sonhos e fantasmas o homem não pode existir... Então, mãos à obra! Faz tempo que a estupidez chegou aqui pra ficar e isso há uns 500 anos... hoje quem não é estúpido na entrada, deixa o rastro fedorento na saída. Nem ligue se tudo parecia com as risadagens aos peidos de festa do Mozart - no cânone em si bemol maior, Leck mich im Arsch, para seis vozes em uma rodada de três partes, K231 (K.382c). Maior alarido. Acha pouco? Na verdade, a insegurança já faz parte do pacote! Não esquenta! Se o fim está próximo na ebulição global, com o negacionismo geral do alpinismo social das cantilenas daqueloutros tribalistas qua andam feito carros blindados nas nonsenses pirotécnicas espalhafatosas de sua Planolância: ars moriend! Já dizia Carla Porta Musa: O que conta, digo a mim mesmo, é o minuto claro... O outro pertence ao passado... Sim, porque o melhor mesmo seria ficar de bocaberta e papo pro ar diante duma Anjana da Cantábria, querendo fazer de mim o seu báculo. Seria uma cosmovisão viandante, maior regalo! Resta somente começar, recomeçar e de novo tudo outra vez e novamente. Do zero e, daí, sobreviver: luto e luta. Salvemo-nos, terrabolistas! Até mais ver.

 

DOIS POEMAS

Imagem: Acervo ArtLAM.

INVERNO NO LESTE - o inverno respira pela janela mais uma vez, \ telhados vazam e seu nariz pinga,\ já vem pontificando:\ e aí, inverno, o fim de todos é igual:\ austero, frio e escuro como neblina.\ algumas terras não estão cobertas por um manto de neve, \ mas uma mortalha funerária genuína.\ a luz desenha sulcos e a água congela nos canos.\ Fevereiro se estende como um sorriso amargo.\ mas na adega, como maçãs de inverno\ (nem tão rosado),\ as pessoas se guardam\ então eles podem durar até a primavera.\ alguém mais os está preservando?

AULAS DE DANÇA COM GRAVIDADE - eles dançam com você, gravidade, todo mundo. \ mas só os corajosos sabem os passos que devem tomar. \ você tem aquela característica cruel, mas equalizadora: \ tanto a pedra quanto a pena são atraídas por você.\ usando sua coroa que desce em direção ao chão, \ eu caminho obedientemente para onde você me guia. \ Eu te amo muito, querida gravidade, \ e não trocaria você, nem por asas.

Poemas da poeta, diplomata e tradutora estoniana Eda Ahi, autora de obras como Maskiball (2012), Sadam (2018) e Sõda ja rahutus (2019).

 

O SILÊNCIO DA CIDADE BRANCA - [...] Às vezes, a memória enfia tachinhas em momentos triviais do passado e os fixa para sempre, mesmo que “para sempre” pareça muito tempo. [...] Entendi que a dor também une as pessoas, talvez mais do que as alegrias, porque, como as pessoas boas e ingratas que todos somos, logo nos esquecemos delas. [...] Pessoas feridas são perigosas porque sabem que podem sobreviver. [...] Às vezes o tempo no calendário não tem nada a ver com o tempo mental ou emocional que cada pessoa vive dentro de si. [...] Tem gente que sabe receber golpes, aprende a recebê-los de novo e de novo, essa é a sua força. Mas não sabem fugir, a mera ideia de um mundo desconhecido os paralisa. [...] Estou cansado de esperar que as circunstâncias sejam perfeitas, elas nunca são. [...] Ele não precisava de palavras para estar certo, geralmente estava. A razão do sensato. [...]. Trechos extraídos da obra El silencio de la ciudad blanca: Trilogia de la Ciudad Blanca (Planeta, 2016), da escritora espanhola Eva García Sáenz de Urturi. Veja mais aqui.

 

A FORÇA DA NÃO-VIOLÊNCIA - [...] O fato de os esforços políticos de dissidência e crítica serem frequentemente rotulados como “violentos” pelas próprias autoridades estatais que são ameaçadas por esses esforços não é motivo para desesperar no uso da linguagem. Significa apenas que temos de expandir e refinar o vocabulário político para pensar sobre a violência e a resistência à violência, tendo em conta como esse vocabulário é distorcido e utilizado para proteger as autoridades violentas contra a crítica e a oposição. Quando as críticas à continuação da violência colonial são consideradas violentas (Palestina), quando uma petição pela paz é reformulada como um acto de guerra (Turquia), quando as lutas pela igualdade e pela liberdade são construídas como ameaças violentas à segurança do Estado (Black Lives Matter), ou quando o “género” é retratado como um arsenal nuclear dirigido contra a família (ideologia anti-género), então estamos a operar no meio de formas de fantasmagoria com consequências políticas. [...] Por que uma petição pela paz é chamada de ato “violento”? Por que uma barricada humana que impede a polícia é chamada de ato de agressão “violenta”? Em que condições e em que enquadramentos ocorre a inversão da violência e da não-violência? Não há como praticar a não-violência sem primeiro interpretar a violência e a não-violência, especialmente num mundo em que a violência é cada vez mais justificada em nome da segurança, do nacionalismo e do neofascismo. O Estado monopoliza a violência ao chamar os seus críticos de “violentos”: sabemos disso através de Max Weber, Antonio Gramsci e de Benjamin. Portanto, devemos ser cautelosos com aqueles que afirmam que a violência é necessária para conter ou controlar a violência; aqueles que elogiam as forças da lei, incluindo a polícia e as prisões, como árbitros finais. Opor-se à violência é compreender que a violência nem sempre assume a forma do golpe [...] Não há como nomear algo como violência ou não-violência sem invocar imediatamente o quadro em que essa designação faz sentido. Isto pode parecer uma forma de relativismo – o que vocês chamam de violência, eu não chamo de violência, e assim por diante – mas é algo bem diferente. Na opinião de Benjamin, a violência legal renomeia regularmente o seu próprio carácter violento como coerção justificável ou força legítima, higienizando assim a violência em jogo. Benjamin documenta o que acontece com termos como “violência” e “não-violência”, uma vez que compreendemos que os quadros dentro dos quais estas definições são asseguradas estão oscilando. Ele observa que um regime jurídico que procura monopolizar a violência deve chamar cada ameaça ou desafio a esse regime de “violento”. Portanto, pode renomear a sua própria violência como força necessária ou obrigatória, até mesmo como coerção justificável, e porque funciona através da lei, como a lei, é legal e, portanto, justificada. [...] Embora eu não siga inteiramente Benjamin até à sua conclusão anarquista, concordo com a sua afirmação de que não podemos simplesmente assumir uma definição de violência e depois começar os nossos debates morais sobre a justificação sem primeiro examinar criticamente como a violência foi circunscrita e qual a versão que se presume. no debate em questão. Um procedimento crítico perguntaria também sobre o próprio esquema justificativo em funcionamento num tal debate, as suas origens históricas, os seus pressupostos e execuções. A razão pela qual não podemos começar por afirmar que tipo de violência é justificada e o que não o é é que a “violência” é desde o início definida dentro de certos enquadramentos e chega até nós sempre já interpretada, “elaborada” pelo seu enquadramento. Dificilmente podemos ser a favor ou contra algo cuja própria definição nos escapa, ou que aparece de formas contraditórias que não temos explicação. [...] A tarefa passa, assim, a ser rastrear as formas padronizadas que a violência procura nomear como violento aquilo que lhe resiste, e como o carácter violento de um regime jurídico é exposto à medida que reprime à força a dissidência, pune os trabalhadores que recusam os termos exploratórios dos contratos, sequestra minorias , aprisiona seus críticos e expulsa seus potenciais rivais [...] Se a proibição de matar permanecer na presunção de que todas as vidas são valiosas – que têm valor como vidas, em seu estatuto como seres vivos – então a universalidade da afirmação só se mantém na condição de que o valor se estenda igualmente a todos os seres vivos. Isto significa que temos que pensar não apenas nas pessoas, mas também nos animais; e não apenas sobre criaturas vivas, mas sobre processos vivos, sistemas e formas de vida. [...] A questão seria repensar a relacionalidade da vida regularmente coberta por tipologias que distinguem formas de vida. Nessa relacionalidade, eu incluiria conceitos de interdependência, e não apenas aqueles entre criaturas humanas vivas – pois as criaturas humanas que vivem em algum lugar, necessitando de solo e água para a continuação da vida, também vivem num mundo onde as reivindicações das criaturas não-humanas à vida se sobrepõe claramente à reivindicação humana, e onde os não-humanos e os humanos são também, por vezes, bastante dependentes uns dos outros para a vida. Essas zonas de vida (ou vivência) sobrepostas devem ser pensadas como relacionais e processuais, mas também, cada uma delas, como exigindo condições para a salvaguarda da vida. [...]. Trechos extraídos da obra The Force of Nonviolence: An Ethico-Political Bind (Penguin Random House, 2020), da filósofa pós-estruturalista estadunidense Judith Butler. Veja mais aqui.

 

A DAMA DO TEATRO GENINHA DA ROSA BORGES

[...] É preciso sonhar, ousar e trabalhar. Assim os sonhos se realizam. [...]

Pra matar fome de vida \ só sendo atriz como sou: \ já fui pobre, já fui rica \ já fui freira e fui mendiga \ já fui branca e já fui negra \ casada, solteira, amante \ cadela gritando sexo \ e mãe também extremosa \ mas o que nunca pensei \ nessa carreira enfrentar \ foi viver a personagem \ Putain de Taperoá.

Pensamento e versos da premiadíssima atriz Geninha da Rosa Borges (1922-2022) – a Grande Dama do Teatro Pernambucano, num volume organizado por Márcia Botto. Veja mais aqui e aqui.

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EDUCAÇÃO LINGUÍSTICA

[...] propor a criticidade na educação básica deve vir acompanhada do ensino da língua pela língua, o que nos levara a trabalhar de novas formas, com novas propostas, que não as estabelecidas normativamente. Isso pode querer dizer, por exemplo, fazer uso da língua materna em determinados momentos. [...]

Trecho do estudo Educação linguística, pós-memória e mudança: repensando aulas de língua inglesa na escola e na formação docente, desenvolvido e publicado pelos professores João Paulo de Souza Araújo e Samara Braga Jorge, extraído da obra Discussões sobre educação linguística e formação docente do e com o GEELLE – Grupo de Estudos sobre Educação Linguística em Línguas Estrangeiras - Serie GEELLE USP, Volume 1 (Pimenta Cultural, 2024), organizado por Daniel de Mello Ferraz e Luciana Carvalho Fonseca. Veja mais aqui e aqui.

 

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terça-feira, março 12, 2024

ILARIA GASPARI, CÉCILE COULON, CAROLINA DE JESUS, ISABEL NORONHA & TERRA DE CARUARU

 

Imagem: Acervo ArtLAM.

Ao som do álbum Abstracta - para cuarteto de cuerdas (2015), da compositora, saxofonista, professora, pesquisadora e performer argentina, Eva García Fernandez.

 

TRAVESSIA DAS ROTAS ARRUINADAS, MAKE IT NEW... – A vida não tem pé nem cabeça: a gente nasce, entra na roda, as coisas acontecem, morre-se e, depois, não se sabe nada – tal como antes de abrir a porteira do mundo e tudo suceder à revelia – ou de propósito, sei lá! Sim, tudo se prolonga e a gente come vento, poeira, distâncias, toma gosto na peleja, sobe-desce no meio da trepidação, frio na barriga, se rela todo, sal na moleira, sol nos costados, goela seca, beiço rachado – é a vida ou o que a gente faz dela. E quando dá fé: o que parecia anteontem foi já não sei quantas décadas atrás. E foi? Como passa ligeiro... Pois é. Ainda ontem a surpresa assaltava... E teve gente - como ainda tem - que fez da vida via pública depois da descarga na privada. Entre um ponto e outro foi como pegar bigú na parada do bonde, sem saber nada onde ia dar – e um dia o fim da linha. É como diz Arina Tanemura: É preciso viver cada dia para que não haja arrependimentos... E lá ia eu com todas as raízes arrancadas, despregado do mundo e das coisas, pelo mesmo chão da infância que nunca foi meu. Minhas mãos cheias do ambulante amor ousavam por todas as armadilhas do catamênio cerebrino alheio, e todas as trajetórias turvas que nasceram mudas e tortas. O meu nome à dor de nenhum dia e a noite desabada desse noutra, o estranho ardendo uma canção sequer ensaiada. Vasto escuro, débil aspecto e o caminho mais que dividido. Foi Mandy Hale que disse: Duas coisas que você nunca terá que perseguir: amigos verdadeiros e amor verdadeiro... E o que fazer de traições, pactos desfeitos, tormentos de triunfo cruel: não há preço justo. Pelo jeito, nunca haverá. No fim das contas a impressão de culpado por inventar o oitavo e mais outros tantos pecados capitais. A sanção? Refém do custo de vida: quanto você vale? E com um céu acusador de vertiginosos escombros pelo tempespaço. Sabia: a fé jamais bastou para quem singra e sangra o que mal se respira e a se precipitar pelo açoite asfixiante de todas as rotas arruinadas. Precisava entender Selena Kitt: Seja você mesmo não há ninguém melhor... E ainda tinha que passar nos testes, mesmo sem saber quais eram nem porquê. Sabia que nunca seria de bom alvitre fazer dos outros emissários submarinos, nem deixar a onça com fome, muito menos o cabrito morrer à míngua. Nada foi lá tão diferente de chupar o dedo e mijar na cana, a coisa vai além do longe demais. E a ameaça mordedora no calcanhar pelas ilhas que nunca foram minhas e um outro maio expandido quase inverno por um mar tempestuoso e sem fundo. Aí aprendia: se você sorrir, todos gargalharão; se ficar sério, será sempre um chato de galocha com um monstro na cabeça. E mais: deve-se ser sempre simpático com os outros na subida; pois, com certeza, cruzará com todos nas inevitáveis e abissais catábases - aí você verá o que são elas e quantos outros muitos quinhentos! Seria muito bom se a gente pudesse juntar toda besteirada cometida e pudesse abater integralmente no Imposto de Renda ou contar no mesmo tanto pro tempo de aposentadoria. Mas não é, né? Que eu morra em paz com o meu tempo e a minha terra, contando com meu epitáfio derretido em cinzas. Assim estarei mais que redimido e pronto pra outra – se é que haverá essa chance! Até mais ver.

 

EU GOSTARIA DE PAGAR POR SUAS FICHAS...

Imagem: Acervo ArtLAM.

Tudo começou naquela hora tão particular da noite \ em que o fim de um dia esbarra no início de outro; \ Saí na chuva, estava com fome. \ A tempestade soltava o seu granizo quente nas venezianas que batiam, \ ninguém mais andava pelas ruas \ escorregadias que desciam até a praça do fundo \ onde transbordava a fonte. \ Normalmente cães ossudos tomavam banho lá \ mas agora não há latidos nem assobios. \ A noite, a chuva, o calor. \ Atravessei a estrada. Um cara acenou do outro lado: \ dois dedos e a boca entreaberta para perguntar \ se eu tinha algo para fumar, levantei a mão aberta \ batendo, como as venezianas, para mostrar a ele que não, \ e continuei, com o rosto enterrado no meu moletom com capuz grande demais, \ cabelo cheio do cheiro de um dia \ que ainda não havia terminado. \ Junto à placa, uma jovem de saia rosa e um rapaz \ com um corte de cabelo que lembrava os melhores momentos \ de Agnés Varda, aguardavam a sua vez de pedir um kebab \ com queijo extra. \ A garota olhou para a tela plana montada \ na parede mostrando clipes de pop americano, \ o cara jogou e pegou uma garrafa de plástico atrás dele \ virando-a habilmente. \ Depois de pagarem, o dono disse \ “Desculpe pela espera”. \ Eu tinha acabado de chegar, então isso me fez sorrir; \ “Uma caixa de batatas fritas, com ketchup, \ tudo bem \ você pode esperar \ lá dentro.” \ Então esperei, de pé, encostado na geladeira \ em frente às bandejas de salada vazias. \ Foi então que entrou um homem encharcado até os ossos. \ Afastei-me para deixá-lo passar: \ suas roupas exalavam cheiro de cimento \ e álcool barato, seu cabelo curto, grisalho, \ retinha água \ como a superfície de um campo às quatro da manhã. \ Ele pediu. \ No momento em que fui pagar minhas fichas, ele fixou os olhos, \ olhos mais redondos que o bico de uma rosa flamenga, \ a boca fraca daqueles homens cansados que bebem \ um pouco demais e com aceitação – \ ele me olhou por um momento, \ e gaguejou: \ “Não sei o que dizer para você”. \ No começo pensei que ele estava me enganando, mas mesmo assim,\ seus olhos, seus olhos! \ “Como é isso?” \ Ele respirou fundo, como se cada palavra \ lhe arrancasse meio pulmão: \ “Não sei o que dizer para você, senhorita”. \ O cara atrás do balcão escutava com um ouvido \ enchendo as bandejas de salgadinhos industriais. \ “Você não precisa me dizer nada”, \ respondi, sacudindo meu suéter. \ “Não sei o que dizer a você porque sei quem você é.” \ A chuva deixou sulcos levemente brilhantes, caindo \ do crânio até a parte inferior do nariz. \ Eu também não sabia o que dizer: \ meia-noite não estava longe, eu viria até de manhã para saber o que esperar, \ e esse cara, perfeitamente bêbado e são, parecia \ prestes a desabar. \ “Eu sei quem você é, você escreve livros. \ Como você faz isso?" \ "Bem, como eu puder." \ Deu-se um tapinha nos joelhos e, \ de uma só vez, \ lágrimas, suor \ da chuva que vem de dentro, \ algo úmido e sincero tomou conta de seu olhar, \ já afogado na solidão e na noite bizarra. \ Ele se virou para o cara \ que dobrava \ as bandejas laranja \ com a precisão de um cirurgião-dentista. \ “Posso te dizer que não fiquei encharcado esta noite por nada, de jeito nenhum!” \ Nas minhas costas, a geladeira zumbia. \ Um leve sorriso se instalou naturalmente \ entre minhas covinhas. \ No balcão, minhas fichas estavam prontas, bem embaladas. \ Tirei minha moeda \ de dois euros e o afogado me disse: \ “Gostaria de pagar suas fichas, se não se importa”. \ Suspirei e deixei minha moeda entre ele e eu, então estendi minha mão. \ Ele apertou. \ “Obrigado, senhor” \ e saí com meu pacote de batatas fritas no pulso. \ Na volta, o cheiro característico de gordura de salgadinho \ invadiu minhas narinas, meus cabelos, minhas roupas. \ Provavelmente nunca mais verei aquele homem, ou pelo menos não assim. \ Desde ontem tenho vontade de escrever sobre ele, porque me pergunto \ qual de nós daqui a alguns meses, daqui a alguns anos, seremos traídos \ pela imagem que construíram \ do mundo exterior? \ Será para outros apertarem as mãos\ àquela hora da noite \ por uma caixa de batatas fritas mornas e um refrigerante sem gelo? \ Gostaria que a poesia fosse tão natural para quem \ me rodeia quanto a emoção \ que brotou naquela noite, antes daquela quadratura \ com a improvável facilidade de momentos que poderiam não ter acontecido, \ mas que aconteceram mesmo assim, mal pensados e \ transbordando de graça e palavras impossíveis.

Poema da premiada escritora francesa Cécile Coulon.

 

DIÁRIO DE BITITA – [...] Quando havia um conflito, quem ia preso era o negro. E muitas vezes o negro estava apenas olhando. Os soldados não podiam prender os brancos, então prendiam os pretos. Ter uma pele branca era um escudo, um salvo-conduto. [...] Compreendo que o sonho de pobre é sonhar, apenas sonhar. [...] Será que o Brasil vai ser sempre bom como dizem eles? Por que será que o estrangeiro chega pobre aqui e fica rico? E nós, os naturais, aqui nascemos, aqui nós vivemos e morremos pobres? [...] O homem só dá valor ao homem depois que morre. Se os homens governam o mundo, ele nunca está bom para o povo viver, por que não deixar as mulheres governarem? As mulheres não fariam guerras, porque elas são as mães dos homens. Mas os homens são os pais dos homens, fazem guerras, e matam-se. [...]. Trechos extraídos da obra Diário de Bitita (SESI-SP, 2014), da escritora brasileira Carolina Maria de Jesus (1914-1977), autora da frase: A vida para uns são cheias de curvas que dá impressão que êles seguem para o calvário conduzindo uma cruz que se chama "Custo de Vida”. Veja mais aqui, aqui, aqui e aqui.

 

DITOS & DESDITOS - Os movimentos nunca são homogêneos... Fomos formados na ideia de que não existimos como indivíduo, temos que ser úteis ao país... Pensamento da cineasta moçambicana Isabel Noronha. Veja mais aqui e aqui.

 

LIÇÕES DE FELICIDADE - [...] Caminhar, quando se está triste, até que os sapatos incomodem, é uma daquelas iniciativas que a levam à força para fora de você, no mundo; que freiam a espiral dos pensamentos e fazem você se sentir antes de tudo livre, depois exausta. Dois antídotos para tristeza, não infalíveis, mas úteis, são o sentimento da liberdade e o da exaustão; a tristeza, para se sustentar e durar, requer espaços fechados, sufocantes, e energia. Como os vampiros, ela também teme a luz do sol. [...] Concentro-me em uma pergunta: como criar uma disciplina, um ambiente, em que se trabalha para obter um resultado previsível e concreto, sem o perigo de se aventurar guiado apenas por esperanças vagas e irrealistas? Percebo que essa poderia ser uma pergunta válida, em certa medida, para todas as artes humanas, da yoga à música: mas no que se refere aos resultados, no âmbito da inspiração e da criatividade, a gama dos resultados possíveis e imprevistos é vasta demais para não tornar aposta exageradamente ampla. [...] Certamente não tenho uma multidão de amigos, mas tenho tantas casas, tantas vidas atrás de mim – tantas quantas minhas mudanças, os trabalhos que fiz, os erros que cometi e as enrascadas em que entrei, as ruminações e as inquietações, as hesitações e os perdões que não soube conceder e deixei cair no esquecimento. [...] Tenho medo dos desejos, mas é claro que não os respeito, mesmo que eu saiba o quanto podem ser fortes: em vez de dobrá-los, de domá-los com essa firmeza não natural, por que não parei para ouvi-los? Eu deveria ter percebido que essa febre de ascetismo, não muito diferente da impetuosidade a que se opõe, se voltaria contra mim. Não é fácil aprender a moderação: creio ser mesmo impossível, pelo menos enquanto eu olhar para ela com esta camada a mais de moralismo, esta mania de conferir um sentido aos mínimos gestos. Quis me impor uma postura austera, mas toda alheia, falsa. Não é verdade que me entusiasma fazer uma sopa, não é verdade que me basta uma maçã. Eu só queria me deixar absorver pelas pequenas coisas: mas o problema é outro. Em pé na frente de um armário semivazio, que se assemelha apenas ao meu lado mais severo – bani as cores, pois não me pareciam necessárias –, percebo estar diante de um bom problema: ao me concentrar em mim mesma, obcecada em aproveitar todo o meu arrebatamento, esqueci a amizade. Não posso pensar só no prazer: nem para tentar torná-lo demasiado sofisticado e essencial (com resultados que depois, como aconteceu comigo, desaparecem), nem para usá-lo como refúgio. Por nos enrodilharmos no interior de nossa vida secreta, a fim de nos consolar e nos proteger do mundo, acabamos nos transformando em pequenos caracóis confinados em suas conchas. Acendemos velas e luzinhas, buscamos serenidade ou minimalismos, abrimos a boca para palavras nórdicas intraduzíveis como hygge, concentramo-nos na simplicidade de pequenos prazeres idiossincráticos e indescritíveis – o primeiro gole de cerveja gelada. Mas, por favor, só o primeiro – porque, no fim das contas, duvidamos do prazer. Mas é tão chato, depois de um tempo, viver enfurnado nos próprios sentimentos! [...]. Trechos extraídos da obra Lezioni di felicità: Esercizi filosofici per il buon uso della vita (Einaudi, 2019), da filósofa e escritora italiana Ilaria Gaspari.

 

DOSE DUPLA DE JOSÉ CONDÉ

[...] Seguiram-se dias de chuva, prenunciando bom inverno. Mas, passados os aguaceiros, limpavam-se as tardes novamente, com o céu de um azul lavado e translúcido, tanajuras voando, cheiro de mato soprado pelo vento [...].

Trecho extraído da obra Terra de Caruaru (Civilização Brasileira, 1977), do escritor e jornalista José Condé (1917-1971), também autor do volume Obras Escolhidas V: Vento do amanhecer em Macambira \ Tempo, vida, solidão \ As chuvas (Civilização Brasileira, 1978). Veja mais aqui, aqui, aqui e aqui.

 

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