terça-feira, março 12, 2024

ILARIA GASPARI, CÉCILE COULON, CAROLINA DE JESUS, ISABEL NORONHA & TERRA DE CARUARU

 

Imagem: Acervo ArtLAM.

Ao som do álbum Abstracta - para cuarteto de cuerdas (2015), da compositora, saxofonista, professora, pesquisadora e performer argentina, Eva García Fernandez.

 

TRAVESSIA DAS ROTAS ARRUINADAS, MAKE IT NEW... – A vida não tem pé nem cabeça: a gente nasce, entra na roda, as coisas acontecem, morre-se e, depois, não se sabe nada – tal como antes de abrir a porteira do mundo e tudo suceder à revelia – ou de propósito, sei lá! Sim, tudo se prolonga e a gente come vento, poeira, distâncias, toma gosto na peleja, sobe-desce no meio da trepidação, frio na barriga, se rela todo, sal na moleira, sol nos costados, goela seca, beiço rachado – é a vida ou o que a gente faz dela. E quando dá fé: o que parecia anteontem foi já não sei quantas décadas atrás. E foi? Como passa ligeiro... Pois é. Ainda ontem a surpresa assaltava... E teve gente - como ainda tem - que fez da vida via pública depois da descarga na privada. Entre um ponto e outro foi como pegar bigú na parada do bonde, sem saber nada onde ia dar – e um dia o fim da linha. É como diz Arina Tanemura: É preciso viver cada dia para que não haja arrependimentos... E lá ia eu com todas as raízes arrancadas, despregado do mundo e das coisas, pelo mesmo chão da infância que nunca foi meu. Minhas mãos cheias do ambulante amor ousavam por todas as armadilhas do catamênio cerebrino alheio, e todas as trajetórias turvas que nasceram mudas e tortas. O meu nome à dor de nenhum dia e a noite desabada desse noutra, o estranho ardendo uma canção sequer ensaiada. Vasto escuro, débil aspecto e o caminho mais que dividido. Foi Mandy Hale que disse: Duas coisas que você nunca terá que perseguir: amigos verdadeiros e amor verdadeiro... E o que fazer de traições, pactos desfeitos, tormentos de triunfo cruel: não há preço justo. Pelo jeito, nunca haverá. No fim das contas a impressão de culpado por inventar o oitavo e mais outros tantos pecados capitais. A sanção? Refém do custo de vida: quanto você vale? E com um céu acusador de vertiginosos escombros pelo tempespaço. Sabia: a fé jamais bastou para quem singra e sangra o que mal se respira e a se precipitar pelo açoite asfixiante de todas as rotas arruinadas. Precisava entender Selena Kitt: Seja você mesmo não há ninguém melhor... E ainda tinha que passar nos testes, mesmo sem saber quais eram nem porquê. Sabia que nunca seria de bom alvitre fazer dos outros emissários submarinos, nem deixar a onça com fome, muito menos o cabrito morrer à míngua. Nada foi lá tão diferente de chupar o dedo e mijar na cana, a coisa vai além do longe demais. E a ameaça mordedora no calcanhar pelas ilhas que nunca foram minhas e um outro maio expandido quase inverno por um mar tempestuoso e sem fundo. Aí aprendia: se você sorrir, todos gargalharão; se ficar sério, será sempre um chato de galocha com um monstro na cabeça. E mais: deve-se ser sempre simpático com os outros na subida; pois, com certeza, cruzará com todos nas inevitáveis e abissais catábases - aí você verá o que são elas e quantos outros muitos quinhentos! Seria muito bom se a gente pudesse juntar toda besteirada cometida e pudesse abater integralmente no Imposto de Renda ou contar no mesmo tanto pro tempo de aposentadoria. Mas não é, né? Que eu morra em paz com o meu tempo e a minha terra, contando com meu epitáfio derretido em cinzas. Assim estarei mais que redimido e pronto pra outra – se é que haverá essa chance! Até mais ver.

 

EU GOSTARIA DE PAGAR POR SUAS FICHAS...

Imagem: Acervo ArtLAM.

Tudo começou naquela hora tão particular da noite \ em que o fim de um dia esbarra no início de outro; \ Saí na chuva, estava com fome. \ A tempestade soltava o seu granizo quente nas venezianas que batiam, \ ninguém mais andava pelas ruas \ escorregadias que desciam até a praça do fundo \ onde transbordava a fonte. \ Normalmente cães ossudos tomavam banho lá \ mas agora não há latidos nem assobios. \ A noite, a chuva, o calor. \ Atravessei a estrada. Um cara acenou do outro lado: \ dois dedos e a boca entreaberta para perguntar \ se eu tinha algo para fumar, levantei a mão aberta \ batendo, como as venezianas, para mostrar a ele que não, \ e continuei, com o rosto enterrado no meu moletom com capuz grande demais, \ cabelo cheio do cheiro de um dia \ que ainda não havia terminado. \ Junto à placa, uma jovem de saia rosa e um rapaz \ com um corte de cabelo que lembrava os melhores momentos \ de Agnés Varda, aguardavam a sua vez de pedir um kebab \ com queijo extra. \ A garota olhou para a tela plana montada \ na parede mostrando clipes de pop americano, \ o cara jogou e pegou uma garrafa de plástico atrás dele \ virando-a habilmente. \ Depois de pagarem, o dono disse \ “Desculpe pela espera”. \ Eu tinha acabado de chegar, então isso me fez sorrir; \ “Uma caixa de batatas fritas, com ketchup, \ tudo bem \ você pode esperar \ lá dentro.” \ Então esperei, de pé, encostado na geladeira \ em frente às bandejas de salada vazias. \ Foi então que entrou um homem encharcado até os ossos. \ Afastei-me para deixá-lo passar: \ suas roupas exalavam cheiro de cimento \ e álcool barato, seu cabelo curto, grisalho, \ retinha água \ como a superfície de um campo às quatro da manhã. \ Ele pediu. \ No momento em que fui pagar minhas fichas, ele fixou os olhos, \ olhos mais redondos que o bico de uma rosa flamenga, \ a boca fraca daqueles homens cansados que bebem \ um pouco demais e com aceitação – \ ele me olhou por um momento, \ e gaguejou: \ “Não sei o que dizer para você”. \ No começo pensei que ele estava me enganando, mas mesmo assim,\ seus olhos, seus olhos! \ “Como é isso?” \ Ele respirou fundo, como se cada palavra \ lhe arrancasse meio pulmão: \ “Não sei o que dizer para você, senhorita”. \ O cara atrás do balcão escutava com um ouvido \ enchendo as bandejas de salgadinhos industriais. \ “Você não precisa me dizer nada”, \ respondi, sacudindo meu suéter. \ “Não sei o que dizer a você porque sei quem você é.” \ A chuva deixou sulcos levemente brilhantes, caindo \ do crânio até a parte inferior do nariz. \ Eu também não sabia o que dizer: \ meia-noite não estava longe, eu viria até de manhã para saber o que esperar, \ e esse cara, perfeitamente bêbado e são, parecia \ prestes a desabar. \ “Eu sei quem você é, você escreve livros. \ Como você faz isso?" \ "Bem, como eu puder." \ Deu-se um tapinha nos joelhos e, \ de uma só vez, \ lágrimas, suor \ da chuva que vem de dentro, \ algo úmido e sincero tomou conta de seu olhar, \ já afogado na solidão e na noite bizarra. \ Ele se virou para o cara \ que dobrava \ as bandejas laranja \ com a precisão de um cirurgião-dentista. \ “Posso te dizer que não fiquei encharcado esta noite por nada, de jeito nenhum!” \ Nas minhas costas, a geladeira zumbia. \ Um leve sorriso se instalou naturalmente \ entre minhas covinhas. \ No balcão, minhas fichas estavam prontas, bem embaladas. \ Tirei minha moeda \ de dois euros e o afogado me disse: \ “Gostaria de pagar suas fichas, se não se importa”. \ Suspirei e deixei minha moeda entre ele e eu, então estendi minha mão. \ Ele apertou. \ “Obrigado, senhor” \ e saí com meu pacote de batatas fritas no pulso. \ Na volta, o cheiro característico de gordura de salgadinho \ invadiu minhas narinas, meus cabelos, minhas roupas. \ Provavelmente nunca mais verei aquele homem, ou pelo menos não assim. \ Desde ontem tenho vontade de escrever sobre ele, porque me pergunto \ qual de nós daqui a alguns meses, daqui a alguns anos, seremos traídos \ pela imagem que construíram \ do mundo exterior? \ Será para outros apertarem as mãos\ àquela hora da noite \ por uma caixa de batatas fritas mornas e um refrigerante sem gelo? \ Gostaria que a poesia fosse tão natural para quem \ me rodeia quanto a emoção \ que brotou naquela noite, antes daquela quadratura \ com a improvável facilidade de momentos que poderiam não ter acontecido, \ mas que aconteceram mesmo assim, mal pensados e \ transbordando de graça e palavras impossíveis.

Poema da premiada escritora francesa Cécile Coulon.

 

DIÁRIO DE BITITA – [...] Quando havia um conflito, quem ia preso era o negro. E muitas vezes o negro estava apenas olhando. Os soldados não podiam prender os brancos, então prendiam os pretos. Ter uma pele branca era um escudo, um salvo-conduto. [...] Compreendo que o sonho de pobre é sonhar, apenas sonhar. [...] Será que o Brasil vai ser sempre bom como dizem eles? Por que será que o estrangeiro chega pobre aqui e fica rico? E nós, os naturais, aqui nascemos, aqui nós vivemos e morremos pobres? [...] O homem só dá valor ao homem depois que morre. Se os homens governam o mundo, ele nunca está bom para o povo viver, por que não deixar as mulheres governarem? As mulheres não fariam guerras, porque elas são as mães dos homens. Mas os homens são os pais dos homens, fazem guerras, e matam-se. [...]. Trechos extraídos da obra Diário de Bitita (SESI-SP, 2014), da escritora brasileira Carolina Maria de Jesus (1914-1977), autora da frase: A vida para uns são cheias de curvas que dá impressão que êles seguem para o calvário conduzindo uma cruz que se chama "Custo de Vida”. Veja mais aqui, aqui, aqui e aqui.

 

DITOS & DESDITOS - Os movimentos nunca são homogêneos... Fomos formados na ideia de que não existimos como indivíduo, temos que ser úteis ao país... Pensamento da cineasta moçambicana Isabel Noronha. Veja mais aqui e aqui.

 

LIÇÕES DE FELICIDADE - [...] Caminhar, quando se está triste, até que os sapatos incomodem, é uma daquelas iniciativas que a levam à força para fora de você, no mundo; que freiam a espiral dos pensamentos e fazem você se sentir antes de tudo livre, depois exausta. Dois antídotos para tristeza, não infalíveis, mas úteis, são o sentimento da liberdade e o da exaustão; a tristeza, para se sustentar e durar, requer espaços fechados, sufocantes, e energia. Como os vampiros, ela também teme a luz do sol. [...] Concentro-me em uma pergunta: como criar uma disciplina, um ambiente, em que se trabalha para obter um resultado previsível e concreto, sem o perigo de se aventurar guiado apenas por esperanças vagas e irrealistas? Percebo que essa poderia ser uma pergunta válida, em certa medida, para todas as artes humanas, da yoga à música: mas no que se refere aos resultados, no âmbito da inspiração e da criatividade, a gama dos resultados possíveis e imprevistos é vasta demais para não tornar aposta exageradamente ampla. [...] Certamente não tenho uma multidão de amigos, mas tenho tantas casas, tantas vidas atrás de mim – tantas quantas minhas mudanças, os trabalhos que fiz, os erros que cometi e as enrascadas em que entrei, as ruminações e as inquietações, as hesitações e os perdões que não soube conceder e deixei cair no esquecimento. [...] Tenho medo dos desejos, mas é claro que não os respeito, mesmo que eu saiba o quanto podem ser fortes: em vez de dobrá-los, de domá-los com essa firmeza não natural, por que não parei para ouvi-los? Eu deveria ter percebido que essa febre de ascetismo, não muito diferente da impetuosidade a que se opõe, se voltaria contra mim. Não é fácil aprender a moderação: creio ser mesmo impossível, pelo menos enquanto eu olhar para ela com esta camada a mais de moralismo, esta mania de conferir um sentido aos mínimos gestos. Quis me impor uma postura austera, mas toda alheia, falsa. Não é verdade que me entusiasma fazer uma sopa, não é verdade que me basta uma maçã. Eu só queria me deixar absorver pelas pequenas coisas: mas o problema é outro. Em pé na frente de um armário semivazio, que se assemelha apenas ao meu lado mais severo – bani as cores, pois não me pareciam necessárias –, percebo estar diante de um bom problema: ao me concentrar em mim mesma, obcecada em aproveitar todo o meu arrebatamento, esqueci a amizade. Não posso pensar só no prazer: nem para tentar torná-lo demasiado sofisticado e essencial (com resultados que depois, como aconteceu comigo, desaparecem), nem para usá-lo como refúgio. Por nos enrodilharmos no interior de nossa vida secreta, a fim de nos consolar e nos proteger do mundo, acabamos nos transformando em pequenos caracóis confinados em suas conchas. Acendemos velas e luzinhas, buscamos serenidade ou minimalismos, abrimos a boca para palavras nórdicas intraduzíveis como hygge, concentramo-nos na simplicidade de pequenos prazeres idiossincráticos e indescritíveis – o primeiro gole de cerveja gelada. Mas, por favor, só o primeiro – porque, no fim das contas, duvidamos do prazer. Mas é tão chato, depois de um tempo, viver enfurnado nos próprios sentimentos! [...]. Trechos extraídos da obra Lezioni di felicità: Esercizi filosofici per il buon uso della vita (Einaudi, 2019), da filósofa e escritora italiana Ilaria Gaspari.

 

DOSE DUPLA DE JOSÉ CONDÉ

[...] Seguiram-se dias de chuva, prenunciando bom inverno. Mas, passados os aguaceiros, limpavam-se as tardes novamente, com o céu de um azul lavado e translúcido, tanajuras voando, cheiro de mato soprado pelo vento [...].

Trecho extraído da obra Terra de Caruaru (Civilização Brasileira, 1977), do escritor e jornalista José Condé (1917-1971), também autor do volume Obras Escolhidas V: Vento do amanhecer em Macambira \ Tempo, vida, solidão \ As chuvas (Civilização Brasileira, 1978). Veja mais aqui, aqui, aqui e aqui.

 

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