terça-feira, março 05, 2024

BIRGITTA JÓNSDÓTTIR, TERRY EAGLETON, JASON STANLEY & O CORONEL DE MACAMBIRA

 

Imagem: Acervo ArtLAM.

Ao som do show Brasilidades, do grupo Octeto Feminino do Brasil, criado em 2020, por iniciativa da trompista Paula Graziele Guimarães, e formado por trompistas de quatro estados brasileiros: Paula de Campos, Tayanne Sepulveda, Amanda Vieira, Tamires Kamisaka e Jessica Alves (SP), Isabelle Menegasse (RJ), Paula Guimarães (BA) e Jaqueline Louzada (PA).

 

HOJE DE TANTOS ONTENS & QUASE NENHUM AGORAMANHÃ... - Era terça-feira e Jajá saíra para trabalhar. No trajeto, ao cruzar com a algazarra da criançada escolar, lembrou-se dos tempos das travessuras infantis pelo Jaraguá, das timbungadas nas ondas da Jatiúca, das traquinagens juvenis na Ponta Verde, das bebericagens na Pajuçara, ah, ali era o paraíso, o melhor lugar do mundo. Madurava encantado até o dia em que já taludo, quase homem feito, leu Dora Marsden: A vida é festa e conflito: esse é o seu entusiasmo... Firmou seu jeito e não endureceu o coração diante das coisas desagradáveis que testemunhou. Tomou partido pelo que achava certo e, de certa forma, reiterava Miriam Makeba: Eu apenas digo ao mundo a verdade. E se a minha verdade então se torna política, não posso fazer nada sobre isso... Ah, santa Mama África! Assim o fez e era assim mesmo que militava no expediente d’A Voz do Povo, enfrentando oligarquias e prisões, atentados, retaliações e humilhações. Segurou firme e não se dobrou. Destemido, cassado, peregrinou na clandestinidade. E virou coisa que muita gente esqueceu ou prefere não lembrar, se escondendo atrás do medo e emulando chacotas, quando, na verdade é o que é de memória para uso diário. Na vera, ele teve a coragem da vida para viver, como se repetisse Nelly Arcan: Eu nunca consenti com este corpo que fui acusado de arrastar até minha morte... Não fosse isso, sim, Jajá teria reaparecido. Sim, porque era mesmo terça-feira, saiu do Catumbi e nunca chegou ao trabalho, nem jamais foi visto. Ouviu-se que ele foi capturado por estranhos e lançado ao mar a 200 milhas da costa. Como assim? Outros corrigiam que ele fora incinerado numa caldeira duma usina de cana-de-açúcar. Não pode! Engrossando a confusão teve quem asseverasse mesmo que foi morto, esquartejado e jogado num rio de Avaré. Que confusão! Ninguém sabia, qualquer um estava sujeito às emboscadas, chacinas, restos nas valas de Perus para familiares contarem os mortos, como ainda hoje. O fato é que ele saiu de casa para trabalhar e desapareceu – documentos queimados para quem foi destruído e sabia lá mais quem era, já havia perdido tudo de si e sem ninguém. Ao ouvir a conversa, uma jovem curiosa: Afinal, quem é Jajá? Jayme Amorim Miranda (1926-1975). Ah, pensei que fosse algum conhecido! E saiu com o desdém de quem teimava olvidar das lições deontem e de hoje. Tortura nunca mais! Até mais ver.

 

DOIS POEMAS

Imagem: Acervo ArtLAM.

O CAMALEÃO - Sou uma bruxa do destino \ sem roca. \ Sou um soldado com um coração mole. \ Sou uma senhora vagabunda\ com uma casa de caracol nas costas. \ Sou um piloto sem asas. \ Eu sou um elfo espacial no planeta Terra. \ Eu sou a prostituta dos seus pensamentos. \ Eu sou a deusa que surge do oceano espumante\ na concha dos seus sonhos. \ Eu sou o camaleão,\ derreto-me na imagem\ com a mesma facilidade com que uma gota de água doce\ se mistura com água salgada.\

O POEMA DA AVENTURA - Nas profundezas da montanha \ as aventuras se escondem. \ Eles são de todas as formas e feitios. \ Todos têm um final excelente,\ pois quem vive a vida em aventura\ vê o mundo de uma forma extraordinariamente especial. \ Para atrair as aventuras para os padrões do hábito\ basta fechar os olhos\ e pedir que te abracem. \ Você também pode imaginar que é transparente\ e sente o vento fluindo através de você\ em vez de ir contra você. \ Ou imagine que há pequenas asas nas suas costas\ e cada vez que você dá um novo passo você salta um pouco. \ Talvez a própria vida seja uma grande aventura\ se você usar os óculos de sol corretos.

Poemas da escritora, artista, editora e ativista islandesa Birgitta Jónsdóttir.

 

COMO LER LITERATURA - [...] Vivemos em um mundo em que não há nada que não possa ser narrado, mas também nada que precise ser narrado. [...] Gostamos de pensar nos indivíduos como únicos. No entanto, se isto for verdade para todos, então todos partilhamos a mesma qualidade, nomeadamente a nossa singularidade. O que temos em comum é o fato de sermos todos incomuns. Todo mundo é especial, o que significa que ninguém é. A verdade, porém, é que os seres humanos são incomuns apenas até certo ponto. Não existem qualidades que sejam peculiares a uma pessoa sozinha. Lamentavelmente, não poderia haver um mundo em que apenas um indivíduo fosse irascível, vingativo ou letalmente agressivo. Isto ocorre porque os seres humanos não são fundamentalmente tão diferentes uns dos outros, uma verdade que os pós-modernistas relutam em admitir. Temos muitas coisas em comum simplesmente pelo fato de sermos humanos, e isso é revelado pelos vocabulários que temos para discutir o caráter humano. Compartilhamos até mesmo os processos sociais pelos quais nos individualizamos. [...] O prazer é mais subjetivo do que a avaliação. Se você prefere pêssegos a peras é uma questão de gosto, o que não é verdade se você considera Dostoiévski um romancista mais talentoso do que John Grisham. Dostoiévski é melhor que Grisham no sentido de que Tiger Woods é um jogador de golfe melhor que Lady Gaga. [...] O teatro pode nos ensinar alguma verdade, mas é a verdade da natureza ilusória da nossa existência. Pode alertar-nos para a qualidade onírica das nossas vidas, a sua brevidade, mutabilidade e falta de bases sólidas. Como tal, ao lembrar-nos da nossa mortalidade, pode fomentar em nós a virtude da humildade. [...] O artístico está, portanto, muito próximo do ético. Se ao menos pudéssemos compreender o mundo do ponto de vista de outra pessoa, teríamos uma noção mais completa de como e por que ela age daquela maneira. Estaríamos, portanto, menos inclinados a censurá-los de algum ponto de vista externo altivo. Compreender é perdoar. [...] As obras literárias são peças de retórica e também de relatórios. Eles exigem um tipo de leitura peculiarmente vigilante, que esteja alerta ao tom, ao humor, ao ritmo, ao gênero, à sintaxe, à gramática, à textura, ao ritmo, à estrutura narrativa, à pontuação, à ambiguidade – na verdade, a tudo o que está sob o título de “forma”. [...] O erro mais comum que os estudantes de literatura cometem é ir direto ao que diz o poema ou romance, deixando de lado a forma como o diz. Ler assim é deixar de lado a “literariedade” da obra – o fato de ser um poema, uma peça ou um romance, em vez de um relato da incidência da erosão do solo em Nebraska [...] Se nos inspirarmos apenas na literatura que reflete os nossos próprios interesses, toda leitura se torna uma forma de narcisismo. [...] Arranhe um estudante e você encontrará um selvagem. [...]. Trechos extraídos da obra How to Read Literature (Yale University Press, 2014), do filósofo e crítico literário britânico Terry Eagleton. Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.

 

COMO FUNCIONA O FASCISMO – [...] A política fascista invoca um passado mítico puro, tragicamente destruído. Dependendo de como a nação é definida, o passado mítico pode ser religiosamente puro, racialmente puro, culturalmente puro ou todas as opções acima. [...] A política fascista pode desumanizar grupos minoritários mesmo quando não surge um estado explicitamente fascista. [...] Na política fascista, as mulheres que não se enquadram nos papéis tradicionais de gênero, os não-brancos, os homossexuais, os imigrantes, os “cosmopolitas decadentes”, aqueles que não têm a religião dominante, são, na sua própria existência, violações da lei e da ordem. Ao descrever os negros americanos como uma ameaça à lei e à ordem, os demagogos nos Estados Unidos conseguiram criar um forte sentido de identidade nacional branca que requer protecção contra a “ameaça” dos não-brancos. [...] Os perigos da política fascista advêm da forma particular como desumaniza segmentos da população. Ao excluir estes grupos, limita a capacidade de empatia entre outros cidadãos, levando à justificação de tratamentos desumanos, desde a repressão da liberdade, prisão em massa e expulsão até, em casos extremos, o extermínio em massa. [...] Os nazistas acreditavam que o movimento das mulheres fazia parte de uma conspiração judaica internacional para subverter a família alemã e, assim, destruir a raça alemã. O movimento, afirmava, estava a encorajar as mulheres a afirmar a sua independência económica e a negligenciar a sua tarefa adequada de produzir filhos. Estava espalhando as doutrinas femininas do pacifismo, da democracia e do “materialismo”. Ao encorajar a contracepção e o aborto e, assim, reduzir a taxa de natalidade, estava a atacar a própria existência do povo alemão. [...] A política fascista não conduz necessariamente a um Estado explicitamente fascista, mas mesmo assim é perigosa. A política fascista inclui muitas estratégias distintas: o passado mítico, a propaganda, o anti-intelectualismo, a irrealidade, a hierarquia, a vitimização, a lei e a ordem, a ansiedade sexual, os apelos ao coração e o desmantelamento do bem-estar público e da unidade. [...] Para o fascista, as escolas e universidades existem para doutrinar o orgulho nacional ou racial, transmitindo, por exemplo (onde o nacionalismo é racializado) as conquistas gloriosas da raça dominante. [...] a política fascista cria um estado de irrealidade, em que teorias da conspiração e notícias falsas substituem o debate fundamentado. [...]. Trechos extraídos da obra How Fascism Works: The Politics of Us and Them (Random House, 2018), do filósofo Jason Stanley. Veja mais aqui.

 

O CORONEL DE MACAMBIRA

[...] Viva! \ Ora viva! \ A aeromoça do céu! \ A aeromoça do céu \ tem as asas da esperança \ de um futuro que há de vir! \ Viva! [...].

Trecho extraído da peça teatral O coronel de Macambira – poesias com palavras incompletas (FCCR, 2005), do poeta, dramaturgo, engenheiro civil, desenhista, professor e editor Joaquim Cardozo (1897-1978). Veja mais aqui e aqui.

 

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