terça-feira, fevereiro 27, 2024

OLGA RAVN, MARIANNE VAN HIRTUM, JAMES CLEAR & BABAU DA MÃO MOLENGA

 

 Imagem: Acervo ArtLAM.

Ao som de Der Freischütz J277: Overture (1997), da maestrina e compositora australiana Simone Young, regendo a NHK Symphony Orchestra.

 

SE DEU NÓ CEGO, VAMBORA DESATAR!... - Raiou o dia e quem saiu de casa guardou a direção do aceno. Outras são as instâncias do coração se não souber aonde vai dar o trajeto, qual lonjura de cafundó ou rincão. De uma hora pra outra perder-se é quase possível, nunca se sabe, nem sei quando, plagas outras à escolha. E a opção, mesmo muita, só uma. Voltar, refazer, outras alternativas pro tino. O que poderia ser não fazia a menor ideia: a vida nem sempre corre conforme pensa, às vezes passa sem noção. E o encontro, mais imprevisível. Assim a bela Senhora de Catuama, do alto de sua majestosa incandescência: O que é pragora não foi ontem nem amanhã, hoje se faz. A sede é grande e só resta o pó. Nó cego se desata. Trupé que seja, corre-se sempre o risco de cair na real, mesmo esvaindo-se entre golpes no perímetro da maldição ou bem-aventurança. Ainda ela Ann Leckie: A unidade implica a possibilidade de desunião. Começos implicam e exigem finais... Que cada ato seja justo, adequado e benéfico... Houvesse outro caminho, por certo, teria ido. Mas uma conversinha de pé-de-serra, clareando as ideias, não se abre facilmente a mão. Aí ela veio de Harold Pinter: Só se tem uma obrigação. Ser honesto. Não há mais nenhuma... Não existem distinções rígidas entre o que é real e o que não é, nem entre o que é verdade e o que é falso. Uma coisa não é necessariamente verdadeira ou falsa; pode ser verdadeira e falsa ao mesmo tempo... Nunca entendi muito essas coisas, muitas vozes no pandemônio do percurso interminável, por enquanto. Sei de muita gente que peleja sem um terém sequer, com a teima de salvar o canavial que não mais prospera há tempo, como coisas que custam enterrar e soçobram à beira da cova. Muitos recorrem à possibilidade de ter um sobrenome por ostentar, malfadada toada de uma prosa de não sei quantos pungentes versos. As dissensões trôpegas levaram às piores caretas, até quem sumítico das meias palavras desse a cara à tabica da finitude. Os antes gestos medidos sacudiram todos, arregaçaram as mangas e o despudor na ponta da língua cuspiu o diabo no meio das deshoras e cada um segurou como podia as pisadas nos calos, a repugnância e o delírio - valiam-se do que sequer possuíam. Nada a fazer, porventura fosse apenas estado de ânimo. Ela assistia a tudo e de soslaio: Bem-aventurados os que guardam mapas na planta dos pés e a minúcia na raiz do sangue. Com um meio sorriso ela era Amber Dawn: Quando este parágrafo terminar, esta história será toda sua... Deu uma gargalhada e desenvultou. Antes uma fumaça de adeus, pelo menos, mas não: sumiu que nem o cheiro ficou. Ficou a pinoia. Mantive a rota e a sina: descer Valuna e todo lugar por aqui se parece Dogville, avalie! Até mais ver.

 

NOITE MATEMÁTICA

Imagem: Acervo ArtLAM.

I - Enquanto meu fogo ferve, enquanto a lua beija minha porta, \ o dia rasteja, não mais circunscrito \ pelo rastro fumegante das estrelas. \ Ali! — A caixa verde na clareira dos mundos. \ Seu rosto falava sem parar, em saltos de doçura desconhecida. \ “Chegou a hora”, diz ela, “seu vestido agora está pronto”. \ Ela aponta uma grande ponte de balança: aquela mesma \ onde as cegonhas passeavam de muletas. \ Pergunto a ela se há mais temporadas. \ “Não”, ela diz, “já que você está nu na vida dos homens”. \ Mas esses soldadinhos risonhos não me importam. \ A única coisa que conta é este corpo, cujo sangue derramei \ para descobrir um ninho de abelhas vermelhas, \ todas ocupadas bebendo no rio das mulheres bêbadas. \ Aqueles que tanto amamos! \ Aqueles que são as nacelas do ar, \ semelhantes às corujas decapitadas \ cujas cabeças giram. \ Esses são chamados de anjos \ porque são tão instruídos quanto os demônios. \ O coração deles é uma flor silvestre \ com mais pétalas do que lágrimas. \ Em lágrimas – às vezes – \ ela passeia, como num barco louro. \ Sua comida é feita de moscas mortas \ que negligenciamos, esquecidos como estamos \ do importante papel da Geometria Rainha. \ Esta flor é a palavra que minha boca está prestes a dizer. \ Ou então cale-se: \ pois a fechadura da minha boca não tem chave. \ Esta chave não tem sexo, meu coração bate \ ao vê-la chegando, \ tão azul, na grande noite colorida.

II - Os grandes animais saíram pelas portas das sombras. \ Um pouco mais tarde, eles retornaram pelo portal \ de lesa-majestade. \ Um grande leão, afogado, flutuava na água açucarada. \Que silêncio sombrio nos palácios de neve! \ Do céu caía um calor negro, \ enquanto as moscas longas e pálidas nos acompanhavam \ até a noite, às vezes pegando nossas mãos. \ A almofada azul estava perdendo sangue, \ que escorria em jatos rápidos, \ a margarida lunar casando-se com uma camada de gelo. \ Cidade atravessada por inúmeros castiçais. \ Na margem do preto-violeta, \ o querido Dinossauro se espreguiça, \ puxando o lençol até a boca.

III - Achando-os muito secos, \ levamos em macas, \ em paletes, em carrinhos de mão. \ Em tudo que achamos mais suspeito \ de matéria queimada. \ Dispersámo-nos nos dois sentidos, \ mas sem esquecer a rosa do deserto: \ ela ainda está viva nos cais das algas moribundas \ onde estremece uma última papoula, \ sendo apenas o armistício de si mesma. \ Dark era o filho-chacal das florestas, \ sentado em seus quadrados de vento e grama. \ E sombrios os macacos, sentados em melancolia: \ mostraram-nos apenas as suas luvas cinzentas infalíveis.

IV - O pelo de sementes prateadas não estrela \com misturas arriscadas as cavernas \ onde o Ser de touca de dormir \ abre sua porta de troncos negros soprada pelo vento. \ Uma risada demente, um fogo azul circundado de raios de vespas \ seria o seu olho ali, oh reciprocidade que sempre te suspende \ no limiar das cavernas rejeitadas? \ De dia, o grande Lustucru, ciclâmen de gelo, carrega seus passos \ nas costas, o hospital mascarado para a festa. \ Se em sua testa você desenvolver \ uma inteligência lúcida de perdiz, \ ainda assim seus olhos ocultos perderão os pelos de amianto. \ Uma fonte mais cega que um surdo feito de resina. \ Persiga esses trens de miséria \ nos trilhos flamejantes de um beijo. \ A caverna é feita de tecido iridescente \ para quem não consegue pegá-la com os dedos do Padre Egito. \ Um fardo de feno ridículo surge \ onde nossos leões jovens não dormem. \ Aqui ninguém está com a cabeça virada para trás. \ O relógio anda muito devagar. \ Vamos morrer cada vez mais! \ Já sinto seu sabor maravilhoso \ em meus dentes distantes.

Poemas da escritora & artista surrealista belga Marianne Van Hirtum (1935-1988).

 

QUE TRABALHO É ESSE... – [...] Você provavelmente diria que é um mundo pequeno, mas não se precisar limpá-lo. [...] Eu pareço um humano e me sinto como os humanos. Eu consisto nas mesmas partes. Talvez tudo o que seja necessário seja que você altere meu status em seus documentos? É uma questão de nome? Eu poderia ser humano se você me chamasse assim? [...] Por que tenho todos esses pensamentos se o trabalho que faço é principalmente técnico? Por que tenho esses pensamentos se estou aqui principalmente para aumentar a produção? De que perspectiva esses pensamentos são produtivos? Houve um erro na atualização? Se houvesse, gostaria de ser reiniciado. [...] Aqui não voamos sob o céu, mas através de um infinito adormecido. [...] Você pode dizer o que quiser, mas eu sei que você não quer que nos tornemos também, bem, o quê? Muito humano? Muito vivo? Mas gosto de estar vivo. Eu olho para as profundezas infinitas do lado de fora das janelas panorâmicas. Eu vejo um sol. Eu queimo como o sol queima. Eu sei, sem dúvida, que sou real. Posso ter sido feito, mas agora estou me fazendo. [...] Sou humano ou humanóide? Eu fui sonhado em existir? [...] Você acha que alguém vai se lembrar de nós? Quem se lembra daqueles que nunca nasceram, mas ainda assim vivem? [...] Todos os dias, minhas mãos anseiam por cavar fundo no solo para que eu possa mergulhar em sua certeza, e a terra receba minha morte e me torne sua. [...] Eu sei, sem dúvida, que sou real. Posso ter sido feito, mas agora estou me fazendo. [...] É por isso que vim vê-lo hoje, na esperança de que possa haver alguma outra função na qual eu teria menos responsabilidade, sem ter que me relacionar com o fluxo de trabalho geral na mesma medida. Eu gostaria de ser designado para esse tipo de posição. Sei que as habilidades que me foram atribuídas não serão totalmente exploradas nesse caso, mas a dor que sinto não significa nada? Atrevo-me a sugerir que tal dor impacta a qualidade do meu trabalho e, além disso, pode influenciar negativamente o trabalho dos meus colegas. OK. Eu vejo. Então eu não teria o poder da fala? Não, eu entendo. Eu, por meio deste, consinto. Quando [...] Eu também tenho em mim palavras apagadas que deveria ter dito e já não sei mais o que significam. [...] Sou uma romã madura com sementes úmidas, cada semente é uma matança que irei realizar em algum momento futuro. Quando não tiver mais sementes dentro de mim, quando não houver mais nada além de carne, quero conhecer o homem que me criou. [...] Sou como uma planta onde tudo murchou, exceto um único broto verde que ainda está vivo, e esse broto é meu corpo e minha mente, e minha mente é como uma mão, ela toca em vez de pensar. [...] É fácil conversar com você. Parece que tudo o que eu digo está certo. Eu falo e você escreve o que eu digo. [...]. Trechos extraídos da obra The Employees: A Workplace Novel of the 22nd Century (Lolli, 2020), da premiada escritora dinamarquesa Olga Ravn. Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.

 

POR QUE FATOS NÃO MUDAM NOSSA OPINIÃO – [...] Os humanos precisam de uma visão razoavelmente precisa do mundo para sobreviver. Se o seu modelo de realidade é totalmente diferente do mundo real, então você luta para tomar medidas eficazes todos os dias. No entanto, a verdade e a precisão não são as únicas coisas que importam para a mente humana. Os humanos também parecem ter um profundo desejo de pertencer. [...] Uma vez formadas as impressões são notavelmente perseverantes. [...] Apesar de suas crenças terem sido totalmente refutadas, as pessoas não conseguem fazer as revisões apropriadas nessas crenças [...] Compreender a verdade de uma situação é importante, mas permanecer parte de uma tribo também o é. Embora esses dois desejos muitas vezes funcionem bem juntos, ocasionalmente entram em conflito. [...] Convencer alguém a mudar de ideia é, na verdade, o processo de convencê-lo a mudar de tribo. Se abandonarem as suas crenças, correm o risco de perder os laços sociais. Você não pode esperar que alguém mude de ideia se você também tirar a comunidade dele. Você tem que dar a eles um lugar para ir. Ninguém quer que sua visão de mundo seja destruída se o resultado for a solidão. A maneira de mudar a opinião das pessoas é tornar-se amigo delas, integrá-las à sua tribo, trazê-las para o seu círculo. Agora, eles podem mudar suas crenças sem correr o risco de serem abandonados socialmente. [...] Talvez não seja a diferença, mas a distância que gera o tribalismo e a hostilidade. À medida que a proximidade aumenta, também aumenta a compreensão. [...] Há outra razão pela qual as más ideias continuam a existir: as pessoas continuam a falar sobre elas. O silêncio é a morte para qualquer ideia. Uma ideia que nunca é falada ou escrita morre com quem a concebeu. As ideias só podem ser lembradas quando são repetidas. Eles só podem ser acreditados quando são repetidos. Já mencionei que as pessoas repetem ideias para sinalizar que fazem parte do mesmo grupo social. Mas aqui está um ponto crucial que a maioria das pessoas não percebe: As pessoas também repetem ideias ruins quando reclamam delas. Antes de poder criticar uma ideia, você precisa fazer referência a essa ideia. Você acaba repetindo as ideias que espera que as pessoas esqueçam – mas, é claro, as pessoas não podem esquecê-las porque você continua falando sobre elas. Quanto mais você repete uma má ideia, maior é a probabilidade de as pessoas acreditarem nela. Vamos chamar esse fenômeno de Lei da Recorrência de Clear: o número de pessoas que acreditam em uma ideia é diretamente proporcional ao número de vezes que ela foi repetida durante o último ano – mesmo que a ideia seja falsa. Cada vez que você ataca uma má ideia, você está alimentando o mesmo monstro que está tentando destruir. [...] A maioria das pessoas argumenta para vencer, não para aprender. Como diz Julia Galef com tanta propriedade: as pessoas muitas vezes agem como soldados e não como batedores. Os soldados estão no ataque intelectual, procurando derrotar as pessoas que diferem deles. A vitória é a emoção operativa. Os escoteiros, por sua vez, são como exploradores intelectuais, tentando lentamente mapear o terreno com outros. A curiosidade é a força motriz. Se quiser que as pessoas adotem suas crenças, você precisa agir mais como um batedor e menos como um soldado. No centro desta abordagem está uma questão que Tiago Forte coloca lindamente: “Você está disposto a não vencer para manter a conversa?” [...] Quando você é gentil com alguém, significa que você o está tratando como uma família. Acredito que esse seja um bom método para realmente mudar a opinião de alguém. Desenvolva uma amizade. Compartilhe uma refeição. Presenteie um livro. Seja gentil primeiro, tenha razão depois... [...]. Trechos extraídos do estudo Why Facts Don’t Change Our Minds), do escritor estadunidense James Clear, autor da obra Atomic Habits: An Easy & Proven Way to Build Good Habits & Break Bad Ones (Avery, 2018), na qual ele expressa que: [...] Os humanos são animais de rebanho. Queremos nos ajustar, nos relacionar com outras pessoas e ganhar o respeito e a aprovação de nossos colegas. Essas inclinações são essenciais para nossa sobrevivência. Durante a maior parte de nossa história evolutiva, nossos ancestrais viveram em tribos. Ficar separado da tribo - ou pior, ser expulso - era uma sentença de morte. [...]. O autor neste sentido toca em aspectos importantes que refletem sobre o fato de o porquê as pessoas não mudarem de opinião, mesmo que suas crenças contrariem os fatos, a lógica e a sensatez quando elas estão convencidas que estão certas. Explica, portanto, como dialogar com pessoas irredutíveis, especialmente que não querem ouvir, com suas crenças e certezas inabaláveis, a outra face da realidade. Ele advoga a Lei da Recorrência de Clear que significa o efeito de mera exposição, ao abordar um tema que atravessa estudos da Agnotologia e da Etupidologia. Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.

 

BABAU, DE CARLA DENISE

[...] Eu estou em todo lugar... E lugar de mamulengo é aqui na terra mesmo, pra fazer a alegria do povo [...].

Trecho extraído da obra Babau ou a história da vida desembestada do homem que tentou engabelar a morte (Cubzac, 2012), da premiada jornalista, dramaturga, escritora, atriz e produtora cultural, Carla Denise, integrante do coletivo Mão Molenga Teatro de Bonecos. Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui & aqui.

 

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