terça-feira, fevereiro 20, 2024

NATALIE GOLDBERG, ANA MARÍA RODAS, HELEIETH SAFFIOTI, HOMENS & CARANGUEJOS

 

 Imagem: Acervo ArtLAM.

Ao som da Fantasia Sul América para violino solo (2022), do compositor Cláudio Santoro; do Canto dos Aroe (2021), do compositor Roberto Victorio; e Gestures – for solo violin (2022), de Arthur Kampela, todos na interpretação da premiada violinista e professora Mariana Isdebski Salles, autora dos livros Ciência na Arte - Arte na Ciência (Paka-Tatu, 2021) e Arcadas e golpes de arco (Thesaurus, 1998). Em parceria com a pianista Laís de Souza Brasil, lançou o cd Sonatas (ABM Digistal), do compositor Claudio Santoro; e, em parceria com o violoncelista Marcelo Salles, lançou o cd Mosaico (2005) e Mosaico II (2008), com peças para duo de violino e violoncelo de compositores brasileiros; e com o Deuxiéme Trio de Villa-Lobos, gravou o cd Fantasia para violino, violoncelo e piano de Franck Bridge e Trio de Michael Colina (2008). Veja mais aqui e aqui.

 

O BANQUETE & O PRECIPÍCIO (PISCAR DE OLHOS, A HESITAÇÃO E O ABISSAL)... - Quem não náufrago sobrevivente na roda-viva: apatetados metazoários, ruminantes do intelecto solitário, os Ocos de Eliot... Dá-se volta por cima até baixar a poeira porque nada se resolveu ou, se resolvido, nada deu fé. Só sortudo fora dessa! Pros do lado de cá a indagação de Lukáscs no pé do ouvido: Um estado de ânimo de permanente desespero com a situação mundial... quem nos salva da civilização ocidental?... Isso para quem nunca arregou da parada - mesmo que escorregasse pelo corredor público e desse num túnel sem saída como buraco sem fundo: tudo ruindo e o vexame diante do covil com toda contrafação no pé da venta – tem-se a impressão de que não passa de um impostor no buruçú do caos espaçado, valendo-se das sobras feito rufião aos gemidos na quase beatitude. É mesmo? Quem o faminto glutão engolindo tudo? Ah! É só deslembrar da morte esticando seus braços elásticos com as lâminas afiadas do tempo. É mesmo? Coisa besta, sai na urina. Ah, não, como escapar aos seus golpes letais, sem poder fazer nada, um gesto insólito, como dar de ombros, nada a ver, e tudo apodrecendo na chuvada da Ilha das Moscas de Golding. Sim, com Pampineia, Griselda de Vivaldi, Galeotto, meio mundo de gente, a discutir o que sobrou da Justiça, da Esperança, da Razão, levando lero da parábola dos anéis, os dedos que se foram, a ameaça da peste, da fome, dos monstros invisíveis e não sei lá o que mais, escorregando pelas dez jornadas de Boccaccio nas cenas de Pasolini. Danou-se! Leseira, sai nas coxas. Ah, tá! E do nada surgisse Anne Lamott: A esperança começa na escuridão, a teimosa esperança de que, se você simplesmente se levantar e tentar fazer a coisa certa, a manhã chegará. Você espera, observa e trabalha: você não desiste... E mais o patético escabroso das estranhas pelo intolerável soando nos tímpanos de forma ensurdecedora, inoculando o cinismo quase pueril. Como seria a morte? Ixe! Fogo pelando, água da muita, veneno cruel no que é fato e o que é valor, assim por diante - o desejável é seguir a lógica do xadrez dando conta do revogável. Vixe! Tem também o refutável e tudo o que foi violado, afora o protocolar considerado no acordo tácito, na ausência de domínio, tudo por conta de uma suposta isonomia. E é? Ousa-se, ataca-se até que um seja devidamente anulado com a última pá de cal. Aí, tá certo! E sacar Agneta Pleijel: Na batalha entre você e o mundo, fique do lado do mundo... Sacou? Dizem que o homem simples morreu na resiliência, chega dava gosto vê-lo romper a redoma e dormir com um olho só, avalie. Foi esfolado todo, quanta mofa. A desforra ficou nos galhos retorcidos da indiferença, intrusos fizeram a festa, quão leigos no ludíbrio das palavras e intenções, armadilhas sentimentais – será que vai nascer outro? A missão logo à tona, qual? Ah, o que mentem palavras, gestos e intenções, só equívocos. Nada, já dizia Péter Szondi: No seu lugar, uma época para a qual a originalidade é tudo reconhecer somente a cópia... Por pior que seja a súbita captura da esfinge há sempre a habituada potência da resposta estremecida, enganchada, exprimindo a miséria e a perigosa verdade para se salvar da tolice e ter o que bem possa merecer. É só uma primeira tábua em que possa se agarrar do insondável. Contudo, há de levar em consideração as armas em mãos inescrupulosas, a fome devorando, o monstro metendo medo, a desgraça irremediável, a sinceridade e a mentira alheia, quão falso e demasiado: o mundo saiu dos trilhos faz tempo. Mãos não se tocam, lábios não se beijam, braços não abraçam, pernas não se enroscam, pés não caminham, olhares não se veem, dengos não se procuram nem se satisfazem, corações não amam. Que raça é esta, hem? Nem sempre a união faz a força, às vezes rompe, opõe e dá num escambau cabeludo. Sobra o cuspe na cara: somos nossos próprios inimigos, uns aos outros, todos. Onde a obrigação de viver, a comida, a direção, só ódio e morte. Agora só na outra, meu. Viva! A vida é arte: vamos vidartear! Até mais ver.

 

TRÊS POEMAS

Imagem: Acervo ArtLAM.

POETA - O antigo rito me possui \ Várias noites sem dormir \ depois que o rio de sangue cai \ Eu me afogo nele e renasço \ novo como uma moeda redonda \ como um sonho \ perfeito em minha dor \ lembrando apenas o suficiente do passado \ para construir a \ teia de aranha \ com a qual cubro minha cama de solteira.

EI - Novo amante: \ Quero te explicar bem que entre os seus olhos \ e os meus olhos \ só existe desejo. \Que sua pele branca às vezes escurece \ porque quem me marcou ainda está aqui. \ Gostaria de dizer seu nome e não posso \ porque quando abro a boca lembro de \ uma cama diferente, \ outros lábios bebendo meus seios. \ E quando eu choro \ e te agarro com tanta força \ eu não fico feliz, amor. \ É uma chama. II - Ok, \ estou preso, ciumento, inconstante \ e cheio de tesão \ O que você esperava? \ Que ele tinha olhos, \ glândulas, \ cérebro, trinta e três anos \ e agia \ como um cipreste no cemitério? III - Disseram que um poema \ deveria ser menos pessoal; \ Que falar de você ou de mim \ é coisa de mulher. \ O que não é sério. \ Felizmente ou infelizmente \ ainda faço o que quero. \ Talvez um dia eu use outros métodos \ e fale de forma abstrata. \ Agora só sei que se algo for dito \ deve ser sobre um assunto conhecido. \ Só sou honesto - e isso basta - \ quando falo das minhas próprias misérias e alegrias \ posso dizer que gosto de morangos, \ por exemplo, \ e que \ não gosto de algumas pessoas porque são hipócritas, cruéis \ ou simplesmente porque são estúpidas. \ Que não pedi para viver \ e que morrer não é algo que me atrai \ exceto quando estou deprimido. \ Que sou feito \ acima de tudo \ de palavras. \ Que para me expressar \ uso tinta e papel à minha maneira. \ Eu não posso evitar. \ Não importa o quanto eu tente, \ não escreverei um ensaio \ sobre a teoria dos conjuntos. \ Talvez mais tarde \ eu encontre outras formas de me expressar. \ Mas isso não importa para mim agora; \ Hoje vivo aqui e neste momento \ e sou eu \ e atuo como tal. \ De resto, lamento não ter agradado a todos. \ Acho que basta olhar para mim \ e tentar me aceitar \ com ossos, músculos, \ desejos e tristezas. \ E olhar pela porta e ver o mundo passar \ e dizer bom dia. Aqui estou eu. \ Mesmo que eles não gostem. \ Ver.

VAMOS VIVER VALÉRIA - Esqueçamos as coisas que dizem \ até aqueles que chegaram de barco \ do Adriático \ das Cíclades \ de Rodes. \Suas línguas viperinas \ , que poderiam muito bem ser melhor utilizadas em casos amorosos, \sibilaram o mal do cume do Citoro. \ Não, eles não ousam dizer seu nome, \ apenas sussurraram o meu \Sentem medo, \ são hipócritas, \ mentem com putinhas magrinhas, \ vão embora sem pagar o que é justo, que não é muito. \ Vamos viver Valéria, \ depois de milhares de anos \ haverá um poeta diferente \ que nos ensinará o nosso amor \ e criará outra Carmem \ que sonhará cheia de paixão \ Iremos longe \ Valéria \ nossa cama \ serão as estrelas.

Poemas da premiada escritora e jornalista guatemalteca Ana María Rodas. Veja mais aqui.

 

ESCREVER COM A ALMA – [...] Escreva o que te perturba, o que você teme, o que você não tem vontade de falar. Esteja disposto a ser dividido. [...] Somos importantes e nossas vidas são importantes, magníficas mesmo, e seus detalhes merecem ser registrados. É assim que os escritores devem pensar, é assim que devemos sentar-nos com a caneta na mão. Nós estávamos aqui; somos seres humanos; é assim que vivíamos. Que fique claro, a terra passou diante de nós. Nossos detalhes são importantes. Caso contrário, se não estiverem, podemos lançar uma bomba e isso não importa... Registrar os detalhes de nossas vidas é uma postura contra as bombas com sua capacidade de matar em massa, contra o excesso de velocidade e eficiência. Um escritor deve dizer sim à vida, a tudo na vida: aos copos de água, ao Kemp's meio a meio, ao ketchup no balcão. Não é tarefa do escritor dizer: “É estúpido viver numa cidade pequena ou comer num café quando se pode comer macrobióticos em casa”. A nossa tarefa é dizer um santo sim às coisas reais da nossa vida tal como elas existem – a verdade real de quem somos: vários quilos acima do peso, a rua cinzenta e fria lá fora, o enfeite de Natal na vitrine, o escritor judeu no cabine laranja em frente à amiga loira que tem filhos negros. Devemos nos tornar escritores que aceitam as coisas como elas são, passam a amar os detalhes e avançam com um sim nos lábios para que não haja mais nãos no mundo, nãos que invalidem a vida e impeçam que esses detalhes continuem. [...] Se você não tem medo das vozes dentro de você, não terá medo das críticas externas. [...] Escrevo porque estou sozinho e ando sozinho pelo mundo. Ninguém vai saber o que passou por mim... Escrevo porque há histórias que as pessoas esqueceram de contar, porque sou uma mulher tentando se destacar na minha vida... Escrevo por mágoa e como fazer magoar OK; como me fortalecer e voltar para casa, e esse pode ser o único lar verdadeiro que terei. [...] Brinque. Mergulhe no absurdo e escreva. Arrisque-se. Você terá sucesso se não tiver medo do fracasso. [...]. Trechos da obra Writing Down the Bones: Freeing the Writer Within (Shambhala, 2005), da escritora e pintora estadunidense Natalie Goldberg. Veja mais aqui.

 

A MULHER, ENFRENTANDO A VIOLÊNCIA - [...] Como isolar o conceito de gênero? Não se deve isolá-lo de seu contexto econômico, social e político. Aliás, eu utilizo cada vez menos esse conceito, porque gênero é um conceito a-político, a-histórico e bastante palatável. Tão palatável, que o Banco Mundial só financia projetos com recorte de gênero. Se fizermos referência à “ordem patriarcal de gênero”, os projetos, certamente, não serão contemplados com as verbas solicitadas. Mas o patriarcado está aí, presente em todas as relações humanas. Chegamos ao paradoxo de os homens sustentarem a existência do patriarcado e a maioria das feministas mulheres a negarem. [...] É óbvio que não existe ninguém que consiga ficar neutro diante de uma contenda. Tenho minha posição, pública e notória, mas não tenho filiação, porque não quero perder minha liberdade de pensamento. [...] Estamos entupidos de cristianismo e isso representa uma face do fundamentalismo. Odeio fundamentalismos. [...] Não há sequer uma totalidade social; mas tão somente caos. Não gosto do pensamento pós-moderno, porque é fragmentário e projeta essa fragmentação na realidade, quando, para mim, a sociedade é uma totalidade, e a crença nisso me fez progredir teoricamente. No Brasil, sou considerada a teórica feminista, o que não significa que não sei pensar em políticas públicas, nem tampouco que não existam outras estudiosas do tema, criando teorias. Estudo o tema violência com a finalidade de lançar políticas públicas para as mulheres, oferecendo-as aos governantes, cujos meios para sua implementação estão ao seu alcance. [...] Logo, não sou apenas teórica, gosto também de pensar nas práticas, embora não me vincule a nenhum movimento, mantendo muito boas relações com todos eles. Não me agrada nada, nada, esta divisão: feminismo acadêmico versus feminismo militante. No Brasil, a academia abriu, sem resistência digna de nota, suas portas à temática de gênero e, ademais, há um trânsito fácil entre acadêmicas e militantes, sem contar o fato de que muitas militantes são também acadêmicas ou, pelo menos, leem e discutem suas leituras, não sendo, por conseguinte, apenas militantes. [...] É claro que o espaço doméstico é eminentemente feminino, mas não é o espaço da privacidade. É o espaço do trabalho não reconhecido, do trabalho não pago, do trabalho doméstico. E por que razão não é o espaço da privacidade? Porque vige um regime social, político e econômico androcêntrico ou patriarcal ou viriarcal. Em outros termos, vivemos sob o patriarcado. [...] O homem cuidava da chácara, era caseiro, e a mulher era empregada doméstica. Quando ela se referia a relações sexuais com seu marido, sua linguagem relativa a seu marido era a seguinte: “quando ele quer me usar...”. Era essa a linguagem utilizada, nunca me esqueci; e já ouvi essa expressão sendo utilizada por muitas mulheres do Nordeste, que moram aqui, em São Paulo, de paulistas e de mulheres de outros recantos do país. Ou seja, elas se consideram objetos para o uso e o abuso do seu amo e senhor. [...] Hoje, já existe uma jurisprudência de cerca de mil e quinhentos casos. É, sem dúvida, importantíssima esta terceira permissiva penal para o aborto. Há muitas pessoas lutando para a aprovação da súmula vinculante, não apenas para poupar trabalho. O juiz de primeira instância é aquele que vai para o interior e não vê mais nada, não tem universidade na cidade onde atua, ele não dá aula, não estuda. Se há um conflito entre um artigo de qualquer código comercial, tributário, penal, civil, ou qualquer outra lei isolada, de uma parte, e, de outra parte, a Constituição, é obvio que prevalece a Constituição, pois é a Lei Magna do país. Mas os juízes não estudam mais, então não percebem que estamos em outro mundo, que a Constituição acabou por derrubar vários artigos do Código Civil e eles não podem atuar segundo aqueles artigos. [...] Nós não temos como estar apenas fora do gênero, nem nós mulheres, nem os homens. Como ficar fora do gênero? Isso é impossível. O que nós podemos é lidar com todas as matrizes que nós conhecemos, simultaneamente. Então, a minha maneira de criar, porque eu não sou nenhum gênio, é: eu leio um livro, absorvo aquilo que me parece interessante, e tento avançar. Tento avançar um pouco – a ciência avança milimetricamente. Uma grande descoberta é fruto do acaso, porque ninguém é tão inteligente para ter uma ideia brilhante por semana. Então, vou fazendo o que eu posso, que é caminhar assim na criação, milimetricamente. [...]. Trechos da entrevista concedida pela socióloga Heleieth Saffioti (1934-2010), extraída da publicação Heleieth Saffioti, uma pioneira dos estudos feministas no Brasil (Estudos Feministas - UFSC, 2011) de Luzinete Simões Minella. Veja mais aqui, aqui e aqui.

 

HOMENS & CARANGUEJOS, DE JOSUÉ DE CASTRO

[...] Da evasão daquela paisagem humana parada e monótona. Desejo imperioso de sair de tudo. De sair de dentro de si mesmo. De sair do círculo fechado da família. Do ciclo do caranguejo. Da cidade do Recife. Um desejo desesperado de arrebentar com todas as amarras que o ligam à lama pegajosa do vale do Capibaribe e às folhas viscosas do mangue. Sair vagando pelo mundo afora com os navios que passam ao largo da costa, soltando com indiferença um arrogante penacho de fumo por suas longas e grossas chaminés [...].

Trecho extraído da obra Homens e caranguejos (Bertrand Brasil, 2003), do médico, professor catedrático, pensador, ativista político e embaixador do Brasil na ONU, Josué de Castro (1908-1973). Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.

 PS: Esta postagem é em homenagem a dois Joões coincidentemente de Araújo: o primeiro é professor e ESO em Língua Inglesa UFRPE, João Paulo Araújo e, o segundo, bibliotecário e parceiramigo da Biblioteca Fenelon Barreto, também, João Paulo Araújo.  Procês, zis abrações.

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