segunda-feira, março 25, 2024

HIRONDINA JOSHUA, NNEDI OKORAFOR, ELLIOT ARONSON & MARACATU

 Imagem: Acervo ArtLAM.

Ao som dos álbuns Refúgio (2000), Duas Madrugadas (2005), Eyin Okan (2011), Andata e Ritorno (2014), Retalhos do Brasil (2019), Noite e dias (2022) e Abertura das Águas (2024), da pianista, compositora, arranjadora e diretora musical Christianne Neves, que é Mestre em Música pela Unicamp e integrou a Orquestra Heartbreakers (1994-2000) e Havana Brasil (2000 a 2009).

 

PEQUENA FUZARCA DELIRIOSA... - Eternizar o momento e cada um dos que sucedem é o que faz cada ser pensante ascender ou desmontar a todo instante na vida, a ponto de assuntar acerca de um tanto de hipóteses agora tão exóticas. O certo é que a gente não diria tanta besteira se sacássemos a similaridade entre a teia cósmica e a rede neural. Afinal, a gente destrói tudo que é integração. E se chegamos ao ponto crítico da interconexão, outras interrogações nos assolam do absurdo pro que é conveniente, e o possível do que não é. Não fossem os paradoxos, a gente parava e ria à toa. Tome tento! Quem aparece no espelho pode ser outro e é preciso botar o lixo pra fora, dar fé da bússola e fazer o que precisa ser feito. Quem tem garrafa pra vender que se safe; quem não tem, que dê seus saltos soltos. O que foi de ontem não é mais, o de amanhã é pragora. Pois bem, uma situação dessa na esquina da hora, sem muxiba no moquem, nem ponto cardeal por direção, assim do nada, dei de cara com uma distinta jovem - coisa tão desmantelada que ouvia rufarem os tambores de Alagoinhanduba pelo que se parecia com a queda do Bennu. Tei bei. Pra se ter uma ideia, logo de sopetão, ela se achegou Annie Vivanti: Nasci com paixão pelas distâncias... Eu sou mulher, quero te ver... Precavido com o sopapo tentei dar um passo atrás, o que foi inútil, ela segurou-me pelo braço e desfiou o rosário: Sou Margarida Gretchen, filha do imperador da grande ilha de Nimpatan do Holmesby! Onde? Vamos. Oxe! Nem pisquei os olhos e já chegávamos à Kelso, que nem eu nem ela nunca tínhamos visto. Caminhamos por suas ruas estreitas e sujas, até adentrarmos ao palácio que se tornou um amontoado de barracas imundas. Ali ela assumiu o trono e não sabia o que fazer no meio daquela desordem total. Levou-me com alvoroço ao Repositório do Conhecimento e, entre os objetos nem tão valiosos ali expostos, estavam o enxoval do bebê que nunca fora, seu berço e urinol, brinquedos e utensílios infantis. Comovida saiu dali me puxando para gormarksees, o asilo dos lunáticos. Hem? Ah, era o recinto mais luxuoso daquelas paragens, ao que ela furiosamente desalojou os ocupantes para servir-lhe de morada com o futuro marido. Como? Explicou-me: ao nascer seus pais mandaram-na para um convento, no qual ficou enclausurada por muitos anos. Uma das freiras confidenciou reservadamente que ela era cobiçada pela paixão e luta fratricida entre dois irmãos apaixonados. Mesmo? Nem se animara direito e logo soube da causa perdida: ambos se mataram no confronto. Ah! Ao desanimar foi, então, avisada que o pior ainda estaria por vir. Seu pai acabava de falecer e, como princesa, precisava assumir o trono. E sua mãe? Ela olvidou e abria portas, até sumir corredor adentro, deixando-me no salão por algum tempo. Nada admirável nem pra se ver, mãos abanando por entretenimento. Pensei em dar no pé e ela logo retornou com as faces abusivamente cobertas por ruge, colares enormes e pesados ao pescoço, sufocando-se com os seios comprimidos por cotas de malha que se alargavam na cintura, a tropeçar na barra duma saia estendida por vários metros, dando-lhe a aparência de sinos, dizendo-me que assim se vestia em conformidade com os costumes femininos do lugar. Estou bonita? Ah, tá. Uma coisa me chamou a atenção: à cintura trazia uma corda enrolada, na qual aparecia uma garrafinha pendurada, com algo vivo se mexendo dentro, parecia. Ao flagrar minha olhadela no frasco considerou que eu não comiserasse, pois se tratava do Fausto de Goethe, um desgraçado que se aproveitou dela anos atrás. O farsante havia feito juras de amor e, no afã de ficar a sós com ela, propositalmente conduzindo-a a dar uma poção do sono para a vigilante mãe dela. Foi iludida pelo tal e assim procedeu inocentemente. Na verdade, ele queria só se aproveitar dela e partiu para abusá-la. Pior: não deu certo mesmo porque a coitada da genitora bateu as botas ali na hora, aos estertores e envenenada. Um escarcéu. Foi assim que ela engravidou dele sem saber como, fato que levou o seu irmão a amaldiçoá-la e, por isso, foi pelo desalmado devidamente assassinado. Dois crimes sem ter nem pra quê. Em sua fuga ela retornou atormentada para o convento, perseguida noites e dias pelo espírito maligno. De repente viu-se grávida e, pouco tempo depois, deu à luz. Uma bronca! Então, secretamente afogou o filho recém-nascido e livrou-se como podia, até ser capturada e condenada à morte por seu ato insano, aprisionada para cumprir a sentença em dia e horário marcados. A revogação da sua pena fora dada por Mefistófelis: Salvou-se! E ao mesmo tempo vingou-se dele transformando-o num diabinho coxo de Guevara, devidamente arrolhado nesta garrafinha e, finalmente, o desgraçado ainda foi salvo por ela mesma ao impedir que fosse dizimado no lago Vitória da Tanzânia, complicando ainda mais o Pesadelo do Darwin de Sauper. Fechou a narrativa com Sue Townsend: Sentimos as coisas mais do que outras pessoas. Sabemos que o mundo está podre e que os queixos estão arruinados por manchas... Após discorrer pela a espiral de seus ressentimentos, perguntou-me: Sabe quem sou, afinal? Depois de tudo ela foi abrigada por um Mestre que se esquecera do próprio nome e sequer lembrava-se de ter estuprado várias de suas alunas e fugido sem paradeiro. Caiu noutra? Não tendo opção na vida foi feita amante dele, porque estava entre a cruz e a espada: era a única forma de se desvencilhar das astúcias do malfeitor endiabrado. Acontece que no meio da perseguição implacável, conseguiu que muitas pessoas se deixassem iludir que ela seria a fugitiva noiva de Messina do Schiller. Não era e cadê saída? Aí segurou o soluço e aproximou-se quiromante a me segredar que recebera minha carta desesperada. O quê? Tomou-me as mãos e conferiu as linhas nas palmas: Sabia, o diabo coxo havia dito a verdade daquela vez! Quer se explicar? Para ela eu era um enviado dos deuses. Deneguei, reiteradamente. Dissimuladamente me presenteou o símbolo fulgurante dos adoradores crallilah, um indubitável suborno: uma pesada barra de ouro. E desesperou que não queria envelhecer, precisava manter-se a cada dia vindouro mais viva e fresca, era o que parecia e o que eu tinha a ver com isso, ora. Não era fácil precisar: propôs um pacto que era o meu desafio ao plenilúnio - teria eu de seguir o êxtase para obter o sucesso com as minhas escrevivências. Como assim? Chantageava aos dengos. Incrédulo, deu-me por prova que Jesus voltou e estava escondido no paradoxo de Spinoza, para jamais tornar-se cristão, nem nunca ser a adoração de nenhuma empresa do negócio religioso, muito menos símbolo do poder que usa, mata, estupra e violenta os sobreviventes de qualquer lixão. Ameaçou apontando-me pras as cabeças vivas de Hidra no alto da parede e o fim do mundo, caso eu não aceitasse. Escolha. Será louca? Só sendo. Franziu o cenho e raivosa desbocou: estamos todos enredados na trama de Bulgakov. Não entendi nada e já anoitecia, quando ela se saiu com Leonora Carrington: Nasce-se, vive-se, morre-se. O que é a morte, eu não sei... Provavelmente sinto falta do passado... E eu tive que pagar o pato, por bem ou por mal. No dia seguinte, o lugar mais limpo. Ufa! Não sei se foi um sonho ou se passei por uma escotomização: um sopro mágico e tudo sumiu ou esqueci. Até mais ver.

 

PLEURA

Imagem: Acervo ArtLAM.

1 - couraças abertas no primeiro do último século. órgão cimentado rubro. como no princípio: a dor era parte inferior. criaram um nome para tapar os buracos: chamaram-no coração. veio o tempo que é enganador. soprou sob os rostos das mulheres primeiro: fez delas coisas impraticáveis. e depois foi no olho esquerdo dos homens: os fez secretos. foi para as crianças criou a eternidade dentro. o coração verga – disse o X. era preciso um órgão que fosse seguro. atento aos delírios da visão.

2 - olharam-se: os únicos feitos para a sorte. caminharam endireitados sem saber onde se tinham escondido os ouvidos. os pés alados sofreram a pressa do sopro vindo das pedras. - para que servem os dedos? o mundo é um espelho centrado, ofusca as mãos. (uma voz diz): entras na porta transfigurada, força vulcânica. pulmões no clarão agudo da morte. entras na destreza das coisas com as glândulas por fora: invasão surda. imóvel. entras na carne da razão com a luz apagada. sabes e sabes que a luz apagada é a mais acesa. pela pálpebra entras no interior do redemoinho ou na ferida hermética.

3 - foi naquele dia em que o céu caiu para receber o poema da ditadura. as vozes dos homens amanheceram, quem podia cantar cantou. continuam eles à procura do órgão. – façam o que quiserem, dei-vos a liberdade. os cegos inundaram as vísceras. os surdos enlouqueceram. o mistério deambula no órgão primário. ossos do órgão podem se ver no firmamento.

4 - o mundo faz barulho à procura desse animal. ele que sobe e desce nas alturas supostas pelas grandes tempestades. deus vê as caras brutas dos sentimentos, perdoa e continua….o animal geme de fome. na nuca tem água violenta. sede mais antiga que o corpo com todas distâncias da terra. esse animal universal concentrado na insónia, arrasta para fora a estação circular das poças. veda a treva e a luz no mesmo saco. belo clarão o que se faz por cima das entoações secretas.

5 - uma fotografia guiada por uma criança, - dizem a única que pode ver o animal: “era uma árvore rosada, com ramos magros altos oblíquos, em cada ramo havia um livro fechado na parte superior e noutros menores livros abertos. dificultavam o tórax, traziam abelhas nas flores rasas. como a árvore tinha olhos, o peso não se aguentava sob as pálpebras. por isso surgiram as membranas revestidas de leveza, pareciam esponjas. pareciam algodões.”

Poema da escritora e jurista moçambicana Hirondina Joshua, integrante da Associação dos Escritores Moçambicanos e autora dos livros Os ângulos da casa (2016), Córtex (2021) e Câmara de Ar (2023), entre outros livros.

 

BINTI - [...] Preferimos explorar o universo viajando para dentro, em vez de para fora. [...] só porque algo não é surpreendente não significa que seja fácil lidar com isso. [...] Dizem que quando se depara com uma luta que você não pode vencer, você nunca pode prever o que fará a seguir. Mas eu sempre soube que lutaria até ser morto. [...] Meu pai não acreditava em guerra. Ele disse que a guerra era um mal, mas se acontecesse, ele se deleitaria com ela como areia em uma tempestade. [...] Eu acreditava que só poderia ser grande se tivesse curiosidade suficiente para buscar a grandeza. [...] Não importa qual escolha eu fizesse, eu nunca teria uma vida normal, na verdade. Olhei em volta e imediatamente soube o que fazer a seguir [...]. Trechos da obra Binti (Tordotcom, 2015), da premiada escritora e educadora nigeriana-americana Nnedi Okorafor. Veja mais aqui.

 

ANIMAL SOCIAL - [...] A pessoa mais fácil de fazer lavagem cerebral é aquela cujas crenças são baseadas em slogans que nunca foram seriamente desafiados. [...] quanto mais semelhante uma pessoa lhe parece em atitudes, opiniões e interesses, mais você gosta dela. Os opostos podem se atrair, mas não permanecem. [...] Assim, se o amor apaixonado é como a cocaína, então o companheiro é mais como uma taça de bom vinho – algo delicioso e prazeroso, mas com menos palpitações de saúde e menos mania. [...] Notícias são uma forma de entretenimento. [...] Uma apreciação do poder da auto-estima ajuda-nos a compreender porque é que as pessoas que têm baixa auto-estima ou que simplesmente acreditam que são incompetentes em algum domínio não ficam totalmente felizes quando fazem algo bem, porque pelo contrário muitas vezes sentem-se como fraudes [...] Talvez mais pessoas estivessem inclinadas a agir se, tal como o estereótipo do terrorista, o aquecimento global tivesse bigode [...] alguns psicólogos evolucionistas sustentam que os sistemas de crenças ideológicas podem ter evoluído nas sociedades humanas para serem organizados ao longo de uma dimensão esquerda-direita, consistindo em dois conjuntos centrais de atitudes: (1) se uma pessoa defende a mudança social ou apoia o sistema como ele é, e (2) se uma pessoa pensa que a desigualdade é resultado de políticas humanas e pode ser superada ou é inevitável e deve ser aceita como parte da ordem natural. Os psicólogos evolucionistas apontam que ambos os conjuntos de atitudes seriam tiveram benefícios adaptativos ao longo dos milénios: o conservadorismo teria promovido a estabilidade, a tradição, a ordem e os benefícios da hierarquia, enquanto o liberalismo teria promovido a rebeldia, a mudança, a flexibilidade e os benefícios da igualdade. Os conservadores preferem o familiar; os liberais preferem o incomum. Todas as sociedades, para sobreviver, teriam feito melhor com ambos os tipos de cidadãos, mas podemos ver porque é que liberais e conservadores discutem de forma tão emocional sobre questões como a desigualdade de rendimentos e o casamento homossexual. Eles não estão apenas discutindo sobre a questão específica, mas também sobre suposições e valores subjacentes que emergem de seus traços de personalidade. É importante ressaltar que estas são tendências gerais. A maioria das pessoas desfruta de estabilidade e de mudanças nas suas vidas, talvez em proporções diferentes em idades diferentes; muitas pessoas mudarão de ideias em resposta a novas situações e experiências, como foi o caso da aceitação do casamento gay; e até há relativamente pouco tempo, na sociedade americana, a maioria dos membros de ambos os partidos políticos estavam dispostos a comprometer-se e a procurar um terreno comum na aprovação de legislação. Ainda assim, tais diferenças na orientação básica ajudam a explicar o facto frustrante de que liberais e conservadores tão raramente conseguem ouvir-se uns aos outros, e muito menos conseguir mudar a opinião uns dos outros. [...]. Trechos extraídos da obra The Social Animal (Worth Publishers, 2011), do psicólogo estadunidense Elliot Aronson. Veja mais aqui.

 

MARACATU DE BAQUE SOLTO

[...] essa gente das terras da cana espera ansiosa pelo Carnaval. Só então a cidade, transfigurada, voltará para eles de novo a brilhar. É o tempo do Maracatu. [...] Até onde a memória alcança, sempre foram gente da cana ou de emprego humilde do pequeno comércio das vilas e povoados. [...].

Trechos extraídos da publicação Maracatu do baque solto (Quatro Imagens, 1998), do fotógrafo Pedro Ribeiro e da socióloga e pesquisadora Maria Lúcia Montes. Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.

 

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