TRÍPTICO DQC: REINVENÇÃO DO RUMO OU NADA - Ao som de Canon
& Gigue In D, do compositor alemão Johann Pachelbel
(1653-1706), com a regência de Yip Wing-sie & Hong Kong Sinfonietta (2008). – Lugar distante, acho. E
incerto. Ou estou perdido. Andança. Ao me aproximar do que poderia ser uma
cidade, tentei ler a placa indicativa quando surgiu uma bela e sensual mulher
me dando as boas-vindas: Sou Assistente Social e, cada visitante, é
recepcionado, cadastrado e encaminhado para conhecer o local, pois aqui tudo é
diferente! Perguntou-me uma série de coisas marcadas num formulário da
prancheta apoiada no decote dos seus belos seios. Idade, nome, estado civil,
etecetera e tal. Siga-me. O primeiro prédio, o da Educação: os maiores espancavam
os menores, os mais velhos torturavam os mais novos; os rapazes às moças, os
homens, às mulheres; as mães, aos filhos e filhas. Veja! Sim? Estão sendo
educados na lei daqui. Hem? Venha. Entramos numa sala do prédio Governo: uns
tomam o que é dos outros e vice-e-versa, todos são roubados e roubam entre si.
Viu? Como é? Aqui aprendem a governar. Venha. E me levou a um salão de outro
prédio, o Templo da Fé: uma reunião de pessoas completamente despidas e
amontoadas, homens e mulheres que fossem idosos, adultos, jovens, todos numa
espécie de orgia báquica, uns aos outros encangados libidinosamente e aos
louvores. Esta é a religião daqui. Que lugar é este? Diante da minha surpresa,
ela encaminhou-me por alguns corredores que, ao final, deram na saída da
cidade: Pode ir, o senhor não foi admitido em nossos domínios. E bateu a porta.
Desapontado, dei dois passos e, ao voltar-me, nada mais existia, como se
tivesse sumido no ar. Ao retomar a caminhada deparei-me com Alain de Benoist: A única coisa que importa é o que as pessoas pensam de uma questão
precisa, não importa como eles se posicionam (ou se recusam a) no espectro
político tradicional. Vôte! Fiquei intrigado com o que ele disse, enquanto Ahmadou Kourouma me dizia em tom
confidencial: Deus dá brincos de
ouro a quem não tem orelhas para os usar... quando as infelicidades são muitas,
Deus acaba por ficar indiferente... nenhuma oração pode alegrar um homem vazio. Mais surpreso
fiquei ao ser advertido por Naguib Mahfuz: Estão
querendo apagar a luz da razão e do pensamento. Cuidado! Se rejeitarmos a
ciência, rejeitamos o homem comum. Você consegue saber se um homem é
inteligente pelas suas respostas. Você consegue saber se um homem é sábio pelas
suas perguntas. Que coisa! Parecia um bombardeio inexorável e logo
apareceu Rajneesh bastante
severo: A verdade não é algo do
lado de fora para ser descoberto, é algo dentro para ser realizado. Largue a
ideia de se tornar alguém, porque você já é uma obra de arte. Você não pode ser
melhorado. Você só precisa se ir em direção a isso, saber disso e realizar isso.
Como assim? Estava encurralado. De repente me vi só no descampado: todos os
caminhos adiante, mas para onde?... Hei de reinventar o rumo, mesmo que não
saiba como.
DE IR ALÉM DAS
AMARRAS & IMOBILISMO - Imagem: a arte do grafiteiro L7M - Luís Seven Martins, ao som
do álbum Finding Gabriel (2019), do pianista
estadunidense Brad Mehldau. - O justo, a equidade e a cena: o magistrado
ouvia a exposição da defesa, piscando o olho para a promotoria. Resultado:
décadas de litígio civil ou quinquênios de cizânia trabalhista, alguém cedeu
entre as partes, a requerente-reclamante de direitos; ou condenação penal para
todos os perdedores, onde houver o menor prejuízo e a absolvição sob os poderes
dos vencedores. Solzhenitsyn
esclarece: Justiça é consciência, não uma
consciência pessoal mas a consciência de toda a humanidade. Aqueles que
reconhecem claramente a voz de suas próprias consciências normalmente
reconhecem também a voz da justiça. Estou confuso, que mundo é este? Camus em tom aborrecido me joga na
cara: Se o homem falhar em conciliar a
justiça e a liberdade, então falha em tudo. Não há sossego, impossível
conciliar carências e adversidades com consumo escravocrata, ganância hipócrita
e obediência acéfala, não há como! Nisso, Jorge Luís Borges se aproxima: Fazer o bem
ao teu inimigo pode ser obra de justiça e não é árduo; amá-lo, tarefa de anjos
e não de homens. É tudo muito difícil: a sindemia, o superfungo, o
desgoverno do Fecamepa. Antes outras
eram as indagações, a humanidade e o viver. Agora não mais, sobreviver sem que
se saiba como ir cada vez mais longe, ou ficar cada vez mais perto, o horror em
qualquer lugar ou tempo, se o meu mundo é todo mundo e o mundo todo, para quem
a vida, quaisquer que sejam, importa.
ONDE A POESIA
& ÊXTASE OU NADA – Imagem: arte do ilustrador
e artista visual estadunidense Sergio
Lopez, ao som de Le ruban dénoué for two pianos (1915), do compositor venezuelano Reynaldo
Hahn (1874-1947). – A solidão e a noite. Ela chega: Sou
Lola, a filha da dor Aurora Maria Nascimento Furtado
(1946-1972), psicóloga e bancária, aquela que na manhã daquela quinta-feira,
dia 9 de novembro de 1972, fui detida numa blitz policial em Parada de Lucas,
no Rio de Janeiro, aprisionada viva dentro de um ônibus e conduzida para a
delegacia de Invernada de Olaria. Submetida ao pau de arara com sessões de
choques elétricos, espancamentos, afogamentos e queimaduras, aplicaram-me a
coroa de cristo e não resisti. Fui encontrada jogada na esquina, com o corpo
crivado de balas. Apenas no dia 11 de novembro estampou a manchete dos jornais:
De madrugada, Aurora, que fora presa às
9h40m de 9 de novembro, conduzia agentes da polícia carioca a um local do
Méier, onde estaria localizado um aparelho, na esquina das ruas Magalhães Couto
e Adriano. Aurora pediu para descer, disse que por motivo de segurança queria
dirigir-se a pé ao aparelho. Ao descer, Aurora saiu correndo e gritando em
direção a um fusca que estava nas proximidades; nesse momento, começou um
intenso tiroteio entre os agentes da polícia e os ocupantes do carro; ao
terminar o tiroteio, Aurora, baleada, estava morrendo, caída na rua;
preocupados em socorrer Aurora, os agentes deixaram o veículo fugir em alta
velocidade. A certidão de óbito: mulher branca, de identidade ignorada,
tendo como causa mortis dilaceração cerebral. No reconhecimento do seu corpo
pela irmã: afundamento craniano, escoriações e cortes profundos nos braços e
pernas, o rosto deformado pelo espancamento e coroa de cristo, hematoma nos
olhos, no nariz e na boca. Os registros estão detalhados nos livros Em câmara lenta (Alfa Omega, 2000), do
cineasta Renato Tapajós; Os anos de
chumbo: a memória militar sobre a repressão (FGV/CPDOC, 1994), organizado
por Celina D’Araújo, Gláucio Soares e Celso Castro, e Luta, substantivo feminino: mulheres torturadas, desaparecidas e mortas
na resistência à ditadura – Direito à Memória e à Verdade (Caros Amigos,
2010), organizado por Tatiana Merlino e Igor Ojeda. Ela silenciosa, olhos rasos
d’água... Pude apenas recitar Henfil:
A minha luta é tentar também ser mulher. É
conseguir ser afetivo, é conseguir ser intuitivo, é conseguir sonhar, que é um
dos componentes muito grande que eu acho que a mulher tem. Conseguir dar
carinho! Esse é um grande problema que eu tenho, eu sou um cara treinado na
guerra, eu sei ser soldado, agora não sei muito ser companheiro de uma pessoa e
tal. Eu sei ser cirurgião, mas não sei ser enfermeiro. Então esse componente
feminino eu realmente gostaria de ter mais. E ela, cada vez mais imensamente
bela, mais bela que nunca como as outras filhas da dor, Teresa de Calcutá: Por vezes sentimos que
aquilo que fazemos não é senão uma gota de água no mar. Mas o mar seria menor
se lhe faltasse uma gota. E cantarolamos juntos a Mulher de Geraldo Azevedo & Neila Tavares: Eu sou a mãe da praça de Mayo,sou alma dilacerada... Sou grito que reclama a paz, eu sou a chama datransformação... Até mais ver.
A POESIA DE LOURDES NICÁCIO
Para outras terras / transportei a vida. / Busquei então total / a
liberdade / em torno do meu ser. / Mas por que mais livre / em derredor a vida
/ mais dispersa / tornei-me centro de mim / e me perdi?
Poema Espaço em labirinto, extraído da obra Caminho das Águas ao Sol (2018), da
escritora e professora Lourdes Nicácio,
que é formada e pós-graduada em Letras, co-fundadora da editora Novo Horizonte,
membro da Academia Recifense de Letras, da Academia de Letras do Brasil/PE e da
UBE/PE. É autora dos livros Sinfonia de Estrelas, Cantos da Ordem do Sol, Ritmo das Águas Vivas, Ocultos na Paisagem, O Lavrador e o Templo, Caminho das águas ao sol, O Rio, Canabrava e os Homens; Os Dois Mundos de Madalena; Sobreviventes, Almeida Cunha; Os Caminhos da
Palavra- Gramática e Literatura. Veja mais aqui e aqui.