segunda-feira, dezembro 07, 2020

FLORBELA ESPANCA, JAMES THURBER, FUJIKO NAKAYA, PAZ VEGA, PETRÔNIO CUNHA & THE BRA



TRÍPTICO DQC: JANELA DA MEMÓRIA – Ao som de Halfaouine – Live at Carthage (2014), do compositor tunisino Anouar Brahem & The Tallin Chamber Orchestra, conducting Risto Joost. - Algo me diz na noite e não sei direito o que possa ser, apenas tudo prossegue indefinidamente por onde quer que se vá ou esteja. Ouço o ritmo dos dias e me são impressos na carne para guardar à memória ou esquecê-lo para nunca mais. Mais esqueci, menos lembro. Ah, se eu pudesse estaria longe daqui, isso sim, mas não sei o que houve, por mais que eu ande, corra, fuja, por mais que eu transite léguas distantes ou paragens incógnitas, estou sempre no mesmo lugar e só. É isso. No meio das minhas elucubrações aparece Herbert Spencer e me encontra menos esclarecido quanto confuso: Tempo é aquilo que o homem está sempre tentando matar, mas que no fim acaba matando-o. Ninguém pode ser completamente livre até que todos o sejam. O resultado final de proteger os homens dos efeitos da tolice é encher o mundo de tolos. O culto dos heróis é mais forte onde a liberdade humana é menos respeitada. Encarou-me com severidade desleixada, um aceno e, com a sua saída, uma gargalhada soou e era Manuel Acunã sarcástico como quem tivesse ouvido tudo: Eu teria explicado a ele qual é a diferença entre as misérias dos imbecis e as grandes tristezas; entre desafio e covardia; entre a energia celestial e a decrepitude juvenil. Pousou sua mão no meu ombro direito, balançou a cabeça negativamente e saiu em sua busca por Rosário. Cá, comigo, a noite segue. Passa, tempo... Meu olhar são caminhos, ideias, aventura, parênteses, várias lições, uma viagem existencial...

 


UMA VIAGEM NA CLAUSURA – Ao som da trilha sonora composta pelo compositor francês Cyril Morin, para o longa-metragem drama/tragicomédia The Bra (2018), dirigido pelo roteirista e diretor de cinema alemão Veit Helmer. – Durante a madrugada acho que me perdi e não sei como paragens desconhecidas apareceram como se eu escapasse da minha da solidão. Lá estou eu sozinho num vagão de trem surpreendido por um sutiã que entra voando pela janela e me tapa as vistas, quase me sufoca e me deixa as faces doloridas. Recolho a peça e estou diante de um senhor educado que me pede a peça insistentemente. Estranha situação, olho para o sutiã e depois o solicitante, coisas que não combinam. É de sua esposa? Não, não, voou da cabine. Como? E me explica chamar-se Nurlan e está dedicado a encontrar a dona desse acessório de vestuário. Ele me convida a embarcar na sua jornada aventureira para localizar a dona daquela íntima peça azul. Não sei o que me deu e fui pela viagem por trens que passavam perigosamente perto das moradias, enquanto me contava ser maquinista e enfrentava problemas com autoridades do Azerbaijão, o que não consegui entender direito, tudo muito depressa. Repetiu diversas vezes que seria esta a sua última empreitada antes de se aposentar. Segui em sua companhia por um vilarejo nas montanhas, longe das ferrovias, localidade chamada de Baku, sua terra natal, parece. E falou-me de Nesrin, sua colega de trabalho que controla os trilhos, do menino Aziz que saía avisando com apito a aproximação da Maria-Fumaça aos vizinhos e desavisados. E rimos das coisas que ele já recolheu durante a travessia e teimava em devolvê-las a cada um dos seus donos: Ali, a vida acontece na estrada de ferro, onde longos trens que transportam combustível passam várias vezes ao dia. Agora, a sua missão é devolver este sutiã à sua dona. Ele sai de porta em porta, conferindo, provando, todas as mulheres são cordatas e provam diante de nós. Algumas até se despem e nos regozijamos disso, enquanto andamos de casa em casa, de quem será, sabe-se lá... No meio da andança topei com James Thurber que acompanhava de longe nosso percurso: É melhor conhecer algumas das questões do que todas as respostas. Não podemos olhar pra trás com raiva nem para frente com temor mas em volta com consciência. Ele, também, pelo visto, estava curioso por descobrir quem a dona daquela admirável peça. O dia entrou pela tarde e novamente anoiteceu, nenhum sinal de cumprir aquela missão...

 


DAS DORES DE VIVER – Imagem: a arte da artista japonesa, Fujiko Nakaya, numa performance com suas esculturas de nevoeiro, ao som de Celina (ECM, 1995), do trompetista e compositor polonês Tomasz Stańko (1942-2018) - Ela chegou com os primeiros raios da manhã no meio da neblina, lind&nua como a atriz espanhola Paz Vega: Sou Esmeraldina! E me contou de Esmeraldina Carvalho Cunha (1922-1972): Ela estava transtornada porque havia perdido um ano antes a filha caçula Nilda, vítima de tortura de dois meses de prisão e encontrada na mesma casa em que foi morta Iara Iavelberg, na Operação Pajuçara. Outra de suas cinco filhas também havia sido presa, mas logo foi solta. A mais velha fora cruelmente assediada durante muito tempo por agentes do Exército, causando-lhes problemas emocionais e comportamentais. E ela, separada do marido, lutava pela vida de suas filhas militantes. Entrou em depressão profunda e foi internada no sanatório sob ameaças: fora obrigada a voltar com o marido e não suportava mais, resistiu o mais que pôde, chorava e andava pelas ruas delirando: Eles mataram minha filha, uma criança! Em represália, foi detida por uma radiopatrulha e ao ser solta, recebeu uma visita e um recado: O major mandou avisar à senhora que se não se calar, nós seremos obrigados a fazê-lo! As suas angústias, inconformismo e denúncias pelas praças e ruas, enfrentando as ameaças da repressão militar. Jamais voltaria para o marido, nunca! E naquela sexta feira, de 20 de outubro de 1972, foi encontrada morta na sala de sua casa, em Salvador: o corpo pendurado num fio de máquina elétrica. As marcas de sangue no chão. Esse suposto suicídio sempre fora questionado. Ela entrava no rol e se tornava uma Filha das outras Filhas da Dor. Ao terminar o relato me abraçou como nunca e me disse Florbela Espanca: A vida é sempre a mesma para todos: rede de ilusões e desenganos. O quadro é único, a moldura é que é diferente. E me premiou com um verso do poema: Não és sequer a razão de meu viver, pois que tu és já toda a minha vida. E a manhã fez-se festa como se fosse para sempre. Até mais ver.

 

A ARTE DE PETRÔNIO CUNHA

A arte do arquiteto, artista plástico, desenhista e designer gráfico Petrônio Cunha, autor do livro Varadouros de Olinda (PMO, 1988), com 116 desenhos e recortes com imagens, paisagens, cartazes, símbolos, representações gráficas de acontecimentos culturais, com especialidade para os carnavais, edifícios da cidade, detalhes ornamentais, florais, desenhos de foliões que se tornaram verdadeiras marcas do carnaval olindense, entre outras expressões. Veja mais aqui e aqui.