sexta-feira, março 29, 2019

THIAGO DE MELLO, MARCELO GLEISER, PRISCILA ROXXO, AGLAÉ GIL, LUCIANA MALLON & DIAS QUE NÃO SEI!


DIAS QUE NÃO SEI – São mais de ontens nesse tempo de hoje, muitos anteontens seculares e nenhum amanhã possível. Não há como visualizar um túnel sequer para buscar a luz nesse breu vigente. Não me valho dos estandartes ameaçadores, mas há de convir, a cena é imprópria. O que se vê são bocas canhoneiras degoladas com suas ventas dilatadas, expondo sangue na saliva, armados de ódio e facas até os dentes nas cabeças de granadas, e delas ouvem-se os estrondos por dedos fuzilantes para inúteis como eu ou qualquer um. Pelo que se vê, os daqui vivem apenas dos boatos que chegam aos pelotões contaminando as ouças e a terra, nenhum gemido de arrependimento, enquanto os noturnos e solitários remorsos corroem o tino nas bandeiras hostis que drapejam: os algozes pensam que ficarão para sempre, e impunes, incólumes, e se gabam apenas das vozes ébrias de cívicos comensais, fieis aos cargos e cetros, donos da razão e fogo nas faces para gritos de terror no país que é só do azul ou cor de rosa, onde ou se é a favor ou do contra. Coisas que vão de lá para cá e vice-versa, porque o meu país é grande, tão gigantesco quanto inútil para quem dele vive – serve apenas a poucos, muito pouco, entretanto -, tão sujeito aos salteadores, tão vulnerável aos imprestáveis carregados de pólvora, nenhum valhacouto aqui. Há quem esteja feliz com tudo isso, não duvido. Em todo canto estão fechados os olhos das janelas, portas apagadas, muros insensíveis, como se emurchercesse a humanidade: mais bicho selvagem que gente com seus desmatados sorrisos de festas urgentes e efêmeras, olhares quais queimadas devastadoras com a arma escondida por trás da bandeira branca. Parece mais que todos viraram coveiros nas valetas dos instantes e fingem piedade na horagá, presos pelos testículos. Por isso, só importa o louro da vitória quando, na verdade, todos estão derrotados no meio de uma verdadeira festa de matanças invisíveis. Ainda se ouve: Caros senhores! E relincham em festas de gala, a se esbaterem famulentos na vulgaridade, como um punhado de lombrigas a se lambuzarem no repasto, cheirando vidas e sortes e nisso quantos esmagados pela cortesia dos falsos com as pálpebras fechadas da razão. Cada qual sua caverna e seu umbigo, senão. Sei e não se salva quase alma alguma entre os que se consolam com o embuste e o engodo para gozo dos fanfarrões: ouvem apenas o que dizem os alto-falantes dos carros de som barulhentos, assistem hipnotizados aos anúncios imperdíveis da tevê e acreditam piamente nos noticiários, sequer dão conta de quanto insulto nos capítulos novelescos desse inferno e tudo bem, apesar do dia ensolarado tudo é muito turvo e quase desespero pelas ofensas, venenos, estupidez tumultuada - catingas de inexistentes Américas mundializadas sobre cadáveres dançantes e desmiolados por pancadas e bumbos: tudo fede a luxo e lixo, quanta muleta para verter a última gota de sangue. Ninguém sabe. Estou pronto para ser enterrado vivo, acorrentado à minha cidade, pisoteado e insepulto. Morrerei de fome ou de passado, cabeça pendurada no esquecimento, ao lado dos que respiram ou não, tanto faz, não há vergonha para quem morre. O amor verdadeiro não cabe no céu, onde vigora o bom comportamento e a mentira. Não há suborno para a alma, dinheiro é ouro de tolo. Esses os dias que não sei, horas que são lâminas e retalham a carne, ainda é possível chorar pelo país, por enquanto; e o mundo, quem sabe. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.

DITOS & DESDITOS:
[...] Várias ideias foram propostas nas duas últimas décadas, algumas delas extremamente inspiradas e belas. Entretanto, elas devem aguardar sua confirmação através de experimentos antes de serem aceitas pela comunidade científica. [...] Um dos aspectos agridoces da pesquisa científica é que a Natureza não revela seus segredos muito facilmente. [...] Algo mais é necessário, e várias ideias têm sido propostas para lidar com esses problemas de nossas teorias atuais. As ideias mais promissoras tentam combinar relatividade e mecânica quântica de uma forma ou outra. [...] Bem, perto da singularidade cosmológica, a própria geometria do Universo deve ser tratada através da mecânica quântica; com isso, os conceitos de tempo e espaço também se tornam nebulosos. [...].
Trechos extraídos da obra A dança do universo: dos mitos de criação ao Big Bang (Companhia das Letras, 1997), do físico, astrônomo e escritor brasileiro Marcelo Gleiser. Veja mais aqui e aqui.

A ARTE DE PRISCILA ROXXO
A arte da grafiteira, artista visual, militante feminista e ativista Priscila Roxxo. Veja mais aqui.

A POESIA DE AGLAÉ GIL
SUA CHUVA: Tenho sede / de água de chuva / de lágrima sua / com todo o sal / que puder haver. / Me dê  para beber / a água santa / da terra nua / e eu, / profana, / mato a sede / com o que choveu / de você, / em mim.
Poema da poeta e fotógrafa Aglaé Gil que é autora do livro Memórias de uma fruta madura (2015), é formada em Letras/Português e atua como revisora de textos. Veja mais aqui.
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A ARTE DE LUCIANA ROCIO MALLON
A FLOR FUNCIONÁRIA TRABALHARÁ MAIS TEMPO PARA SE APOSENTAR: Era uma fez uma flor chamada Gazânia / Que é esforçada, guerreira e nada ordinária / Como ela sempre trabalhou oito horas por dia / Com sua alma batalhadora e espontânea / Esta flor recebeu o apelido de funcionária / Porém esta fama pode ser momentânea / Seu marido é o delicado e forte cravo / Que um dia já foi um sofrido escravo / Hoje os dois moram num jardim particular / Cada um tem uma nobre parte no doce lar / O problema é que com a reforma da aposentadoria / Agora a flor funcionária terá que trabalhar durante anos / Por isto ela ficará aberta mais de oito horas por dia / Para realizar todos os seus sonhos e planos / Agora talvez ela receba o apelido de escrava / Não por ser mulher de um escravo cravo / Ela trabalha no jardim e também em casa / Deixando seu marido todo confuso e parvo.
Poema da escritora Luciana do Rocio Mallon, que é autora do livro Lendas Curitibanas (2019), formada em Letras e atua como focalizadora do curso de Danças das Divas de Cinema e Novelas, realçando a ligação entre Dança e Poesia. Veja mais aqui.
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A obra do premiadíssimo poeta amazonense Thiago de Mello aqui, aqui & aqui.


quinta-feira, março 28, 2019

FLORBELA ESPANCA, MARIO VARGAS LLOSA, HEISENBERG, SALLY MANN & GRUPO TIA


AS CARTAS, BELA FLOR – Ah, bela flor da Vila Viçosa, ouço a sua voz no soneto ao vento com todo furor e desventuras que não caberiam em cem milhões de versos, cantando a vida e a morte desde a infância para que tudo fosse entressonhos não mais que reais. Já errava em mim inquieta com o calor do ventre e dos seios juvenis, trocando olhares para cair nas estradas, adolescendo a misteriosa descoberta. Para quem a viu desde mocinha numa viagem em alto mar, pernas e coxas roliças, poemas como quem se abre à vida e eu seduzido pelo despudor do ofertório de sua emanação de pagã extasiante. Ah, musa alentejana, a deusa em carne e osso soltando versos cheios de paixão e dor, como quem me dava o corpo prometido à morte para que eu tragasse o vinho forte de seus beijos na dança de ritual da dádiva, num livro das mágoas diante da impotência dos interditos, enquanto a vibração do cio escandalizava numa epifania essencial. O poema dito que era d’ele era meu e em mim como carta para longe no mistério do amor. Confesso renascido aos seus pés em súplica pela estrela cadente. E o livro sempre meu, ninguém entendia a alma do poeta e não sabíamos de nós dois quem amava e quem era amado. O seu reino meu ficou para além do seu exílio na sóror saudade às horas rubras dos sensuais e ardentes beijos nas noites quentes da sua temperatura amorosa em chamas, pela charneca em flor e o movimento dos nervos na sinfonia da volúpia, a rir e chorar no fremente corpo pela loucura e fantasia ao mais alto bradar até o infinito dos sonhos dos seus querentes e divinos braços erguidos de mulher. As minhas mãos ateias tateavam o alvoroço da sua tempestade e a minha boca desfolhava o seu ventre à torre erguida ao grito para que não fosse grave e triste o grande amor, guardando-se no Reliquae como um jardim com sua alma e amor, para que seus olhos flamejassem a sua obscena vitalidade nos sonetos fanáticos não mais que eu obsessivo amante amado, enquanto inteira no meu rosto, entregue às minhas mãos, a morar dentro de mim. Descortinamos as máscaras do destino para quem sofria da perda de sempre, malogro recorrente no dominó preto, com todas as cartas derrubando barreiras e tabus na transgressão de si com seus arroubos sensuais. Eu mesmo não sabia que viver era não saber que se vive e a vi diante do espelho procurando sentido para a vida e para si, porque não se esquecia de viver, porque simplificava para poder ser feliz, arrancando tudo, esmagando-se, reduzindo-se, em seus próprios destroços com todos os astros que moravam lá no alto. O teu adeus indesejável eu pude ver em Matosinhos, solene Diário do último ano com o poema sem título a me dizer que não haveria mais gestos novos nem novas palavras no suicídio de seu derradeiro aniversário. Ah, bela flor guardada em mim. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.

DITOS & DESDITOS:
[...] Na ciência, pode-se reconhecer a ordem central pelo fato de podermos usar metáforas como ‘a natureza foi feita de acordo com tal plano’. É nesse contexto que minha ideia da verdade relaciona-se com o conteúdo efetivo da experiência religiosa. Sinto que essa ligação tornou-se muito mais evidente desde que compreendemos a teoria quântica. [...].
Trecho extraído da obra A parte e o todo: encontros e conversas sobre física, filosofia, religião e política (Contraponto, 1996), do físico e Prêmio Nobel de 1932, Werner Heisenberg (1901-1976), uma autobiografia intelectual de um dos mais importantes cientistas do século XX, relembrando os debates sobre física, filosofia, religião e política que travou com Einstein, Bohr, Planck, Dirac, Pauli, entre outros, narrando sua experiência pessoal durante o regime nazista e o esforço alemão para dominar a energia atômica ainda durante a guerra. Noutra de suas obras, A imagem da natureza na física moderna (Livros do Brasil, 1962), ele expressa que: [...] O grande rio da ciência, que atravessa a nossa época, brota de duas fontes situadas no terreno da antiga filosofia, e, embora mais tarde muitos outros afluentes tenham desaguado neste rio, contribuindo para engrossar o seu fecundo caudal, a sua origem é, não obstante, sempre claramente reconhecível. [...] Quem queira chegar até ao fundo das coisas em qualquer especialidade [...] se chocará com aquelas fontes antigas e daí tirará grandes benefícios para o seu próprio trabalho, por ter aprendido com os gregos a pensar de uma maneira geral, a transportar os problemas para o plano teórico [...]. Por fim, na sua obra Philosophic problems of nuclear science (Faber and Faber, 1952), ele assinala que: [...] A ciência moderna tem seguido algumas tendências da filosofia natural grega, pois tem reconsiderado uma série de problemas com que a filosofia havia se debatido em seus inícios [...]. Existem, especificamente, duas ideias da antiga filosofia grega que na atualidade ainda determinam o curso da ciência e que são, por essa razão, de especial interesse para nós: a convicção de que a matéria consiste de pequenas unidades indivisíveis, os átomos, e a crença na força de estruturas matemáticas [...]. Veja mais aquiaqui e aqui.

O GRUPO TEATRO IDEIA AÇÃO (TIA)
O premiado grupo Teatro Ideia Ação (TIA), formado pelos atores Marcelo Militão, Mariana Abreu, Mário Ferrolho, Sofia Militão, Renan Leandro, Aline Ferraz, Vicente Goulart & Karen Gonçalves, desenvolve um trabalho continuado há 15 anos, com a proposta de teatro popular e de intervenção social. Uma de suas características mais marcantes é a viabilidade para a itinerância, todos seus espetáculos são concebidos e pensados tanto na questão estética como material para seu objetivo maior, circular, ir ao encontro do público onde quer que ele esteja, seja nas grandes metrópoles, nos teatros, nas praças, nas favelas, no sertão, enfim, levar a sua arte aonde público e artista, numa comunhão, virem um só. Além disso, o grupo desenvolve uma linha de pesquisa na arte popular, na rua, na periferia e no teatro comunitário e trabalha com cenopoesia, palhaçaria e mamulengo. No decorrer de sua trajetória o Grupo TIA já ganhou mais de 10 prêmios e apresentou em diversas localidades do país e no exterior para um público superior a 500 mil pessoas. Atualmente, desenvolve seus estudos e trabalhos na periferia de Canoas. E realiza e produz o FESTIA - Festival Internacional de Teatro em Canoas. Veja mais aqui e aqui.

A FOTOGRAFIA DE SALLY MANN
A arte da fotógrafa estadunidense Sally Mann que é autora de diversos livros de fotografias e que desenvolve um trabalho em preto-e-branco de grande formato. Veja mais aqui.
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A obra do escritor, jornalista e político peruano Mario Vargas Llosa, Prêmio Nobel de Literatura de 2010, aqui, aqui, aqui & aqui.
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Os poemas da poeta portuguesa Florbela Espanca (1894-1930) aqui, aqui & aqui.


quarta-feira, março 27, 2019

HAZEL HENDERSON, MILLÔR FERNANDES, RUTH RACHOU, CABRA CABRIOLA & VIVA O TEATRO!


TEATRO EM ALAGOINHANDUBA - Uma trupe mabembe resolveu dar as caras por Alagoinhanduba. Tinha o grupo por objetivo uma apresentação teatral para o público daquela localidade. Logo a companhia deu conta das adversidades depois de muito pelejar para uma temporada por lá: Isso é o fim do mundo! Quase era mesmo. Após bater muita perna entre lojas e transeuntes, era hora de reorganizar as ideias: E agora? Criatividade na ponta da língua e nos passos. Por sorte ou quase isso, o prefeito Zé Peiúdo tomava umas e outras com o eleitorado na esquina: Ah, vocês são de triate, é? É. Engolem espada, equilibram no cabo, cospem fogo? Não. Ah, já sei: viram bicho, se envultam e outras palhaçadas, né? Não. A gente faz teatro, não circo. Hem? Ué, vocês fazem mesmo o quê? A gente representa! Que droga é nove? Ah, feito atua feito cinema, novela, só que ao vivo e em cores. Ah, então tem muito tiro e briga? Não. Nem karatê, boxe, faroeste, sarrafada geral? Não. Tem safadeza de furunfado? Não. Oxe, então não presta, não faz nada que a gente gosta. Pronto, agora deu o créu. Nunca viu teatro? A gente gosta de coisa com trapezista, contorcionista, dança, essas coisas que tem piada e esculhambação! É? Dá um treino aí pra gente vê como é que é! Temos que nos aprontar. Ah, meu, se é bom é assim na hora, oxe! Assim não dá, nem a pulso! Lá pras tantas tentaram se entender, o que não foi muito fácil. Se o prefeito de maus fígados era alheio e cheio da má vontade, o povo dali não era muito diferente: A gente nunca viu dessas coisas não. Aí restava se virar e tentar salvar pra não perder a viagem, arrastando malas. Os atores começaram por agir ali mesmo com uns esquetes improvisados na hora: uma birutada geral. Foi juntando gente, bulindo um com o outro, simulando desafios e repentes, o povo na maior gaitada, ao final passaram o chapéu e amealharam umas moedas e algumas cédulas. O prefeito escapuliu de ninguém nem vê-lo se picar tão de mansinho. Juntando com as reservas das algibeiras, deu para um lanche e se arrancharem como podiam numa pensão lá longe. Logo de manhã, molharam o bico com café, pão e ovos, e zarparam prontos para um espetáculo infantil no meio de rua: O lobisomem zonzo. A garotada logo apareceu, juntou bruguelo como a praga: Bicho feio! Bicho feio! E eles tiveram que interagir com a meninada. Não deu outra: implicaram com os personagens, se misturaram com trocas maliciosas de gentileza, foi um horror. Escaparam para o almoço no primeiro pavilhão e, logo no início da tarde, refizeram a cena. Mais gente se aglomerou, foi um teitei medonho: O apurado não vai dar pros gastos. Insistiram e, na boquinha da noite, voltaram pro mesmo local e encenaram uma peça pros adultos: O prêmio – a história de um presepeiro que queria ganhar só por que queria sozinho na loteria. Ah, todo mundo queria saber se o maloqueiro ganhava mesmo. Foi um deus nos acuda! É que tiveram por cenário um tablado improvisado, enquanto corria a cena por batentes e meio-fio. No meio da trama não pouparam esforços e acunharam com uma serração, afiando a língua sobre pirangueiros, má gestão pública, cornagem, trambiques e safadezas, coisas do Brasil de ontem, hoje e anteontem, e a plateia se viu revelada naquele improviso: Serra-véia, serra-gente! Teve gente que queimou ruim, outros deram corda, uma tijolada passou raspando pela cabeça de um, dois estranhos trocaram tapas, foi lapada, mal-estar, pilhéria e caçoadas. A coisa tomou jeito, a zombaria ficou mútua: toma lá dá cá. No clímax da cena, limavam tudo e o palco arreou, maior desabamento. Foi um apupo, haja mangação. O povo no maior corre-corre e a tragicomédia entrou pela perna de pinto e saiu pela perna de pato. E viva o teatro! © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.

DITOS & DESDITOS:
[...] A globalização da produção e do consumo acarretou muito desperdício de energia no transporte e muita destruição da biodiversidade. Quando os manuais de economia forem corrigidos e todos os custos sociais e ambientais da produção forem incluídos nos preços aos consumidores, perceberemos que a produção e o comércio locais e regionais são mais eficientes. O comércio mundial pode deixar de transportar bens e passar a intercambiar serviços – porque é melhor trocar receitas do que tortas e biscoitos. Nós, humanos, adoramos compartilhar arte, poesia, literatura, filmes, ideias e invenções uns com os outros. Isto é comércio mundial sustentável, que ajuda a desenvolver a solidariedade e consciência humanas. [...] Precisamos corrigir o PIB e incluir nele todos os custos e benefícios sociais e ambientais. [...] Não pode haver consumo ético a menos que todos os custos sociais e ambientais sejam incluídos nos preços. A publicidade deveria ser regulamentada para ser veraz e não manipular os cidadãos apelando para o medo, a cobiça, a inveja e a vaidade, mas conscientizá-los a respeito dos imperativos da sustentabilidade. [...] Para promover uma economia humana justa e sustentável, temos de deixar de lado Wall Street, Londres, Frankfurt e Tóquio, os chamados “centros financeiros”. Eles se revelaram como corruptos e destruidores da riqueza real nas comunidades e nos ecossistemas. Já que agora podemos nos comunicar de tantas formas novas, podemos deixar para trás o dinheiro e os grandes bancos e fazer comércio em nível local usando apenas a informação. [...] A riqueza do mundo são os bens ecológicos do ecossistema da Terra e a produtividade desses sistemas naturais de vida (compostos por milhões de diversas espécies interagindo com os solos, os oceanos, a atmosfera), absorvendo os desperdícios dos humanos e processando os elementos de que os humanos necessitam para sobreviver: ar, água, fotossíntese, etc. Toda essa vida da biosfera interage com os humanos, quer seja ou não usado dinheiro para garantir tais transações. Os sistemas monetários que os humanos inventaram são apenas tão acurados para uma adequada promoção de tais transações, quanto ao nível de conhecimento humano e a evolução de nossos sistemas de valores (em prol da reciprocidade e cooperação com nossas espécies e todas as formas de vida). [...] Alguns critérios universais para a qualidade de vida incluem as exigências básicas de manutenção da vida para a existência humana, por exemplo, comida adequada, água, ar, etc. A Declaração Universal dos Direitos Humanos apresenta uma visão mais ampla, incluindo todas as espécies de direitos: políticos, sociais, econômicos, etc. Porém, para muitos lugares, coisas específicas são importantes, baseadas em regimes, culturas locais, valores, condições, etc.[...].
Trechos extraídos da entrevista Não podemos ignorar nossas realizações cooperativas e seus heróis e heroínas (Terra Habitada: velho desafio para a humanidade – HIU, 2005), concedida pela economista futurista, consultora e iconoclasta inglesa, Hazel Henderson, autora dos livros Transcendendo a Economia (Cultrix, 1991), Construindo um mundo onde todos ganhem (Cultrix, 1996), Além da globalização: modelando uma economia global sustentável (Cultrix, 1999) e se expressa: As mulheres sabem quanto tempo, amor e esforço leva para educar uma criança. Quando surge uma guerra, tudo isso é reduzido a nada... então, é muito importante a participação ativa das mulheres na resolução dos conflitos. Se essas mulheres tivessem sido dotadas de poder e representação plena nas negociações, a paz já estaria estabelecida há décadas. Temos o poder de alterar nosso destino. Essa também é minha visão. Na verdade, esse tem sido o meu trabalho nos últimos 30 anos. Veja mais aqui.

A DANÇA DE RUTH RACHOU
A dança para mim é a vida. É um processo de amadurecimento, de crescer dentro de você e em relação às pessoas. É um aprendizado eterno. Para mim, a dança é a vida também. Talvez não tão religiosa como a Martha Graham menciona, mas é um ato de vida, um processo de vida muito bom e muito importante.
O livro Ruth Rachou (Casa Amarela, 2008), de Bernadette Figueiredo e Izaías Almada, traz a biografia da bailarina, atriz, coreógrafa, diretora e professora Ruth Rachou, que é a pioneira do pensamento moderno da dança no Brasil, formando uma geração de artistas. Veja mais aqui.

CABRA-CABRIOLA
Havia uma mulher que tinha três filhos de tenra idade, e saindo sempre à noite para angariar meios de subsistência para eles, recomendava-lhes muito insistentemente, que se prevenissem contras as astúcias da Cabra Cabriola, não abrindo a porta senão a ela própria, cuja voz e toada e particular perfeitamente conheciam. Certa noite, porém, chegado o monstro, bate à porta, e ignorando o acordo estabelecido, pede como se fosse a mãe das crianças, que a deixem entrar; mas, falando naturalmente com a sua voz forte, grossa e horrível, nada conseguiu das suas artimanhas, e saiu desesperada bramindo: "Eu sou a Cabra Cabriola, / Que come meninos aos pares, / E também comerei a vós, / Uns carochinhos de nada...". Retrocede depois, oculta-se, e aguarda a volta da mulher, e com semelhante artifício aprende-lhe a toada, e repara bem no seu metal de voz. No dia seguinte vai à casa de um ferreiro, manda bater a língua da bigorna, e conseguindo assim modificar a sua voz tornando-a mesmo igual à da mãe dos meninos, vem à noite, espreita a sua saída e depois, bate à porta cantarolando a conhecida toada: "Filhinhos, filhinhos / Abri-me a porta,/ Qu´eu sou vossa mãe;/ Trago lenha nas costas, / Sal na moleira,/ Fogo nos olhos,/ Água na boca,/ E leite nos peitos/ Para vos criar..." E as pobres crianças na persuasão de que era a sua própria mãe que assim lhes falava, abrem pressurosas e alegres a porta, e inopinadamente acometidas pela esfaimada Cabra Cabriola, são devoradas por ela.
Lenda extraída da obra Folclore pernambucano (Imprensa Nacional, 1908), de Francisco Augusto Pereira da Costa. Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui & aqui.
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A obra do escritor, dramaturgo, tradutor, desenhista, humorista e jornalista Millôr Fernandes (1923-2012) aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui & aqui.
 

terça-feira, março 26, 2019

ERNST SCHUMACHER, VIKTOR FRANKL, MARIA MARTINS & DUCHAMP, UGO GIORGETTI & AH, MARIA!


AH, MARIA, ÉTANT DONNÉS – Imagem: Étant Donnés (1966), do artista francês Marcel Duchamp (1887-1968). – Dou-me, Maria, pela brecha à cachoeira do seu ventre na primavera e à musa nua da fantasia sou hipnotizado por sua graciosidade a respirar exalando arte de suas frestas que só eu alcanço e sou mais que monstros vivos para capturá-la. Dou-me, Maria, porque a quero profetisa e o mar ia por ali para mergulhar suas funduras e altos brados, cantos, metamorfoses, seus rastros, todos os oceanos e peço à Peggy todo dia para que traga sua presença sem parêntesis. Dou-me, Maria, e me doa a graça da sua aranha de Bourgeois, como exaltada maneira Salomé nua, refestelada na grama dos nossos prazeres voluptuosos e roubasse sua sombra na liberdade secreta de suas pernas ao léu para que minha cupidez imorredoura erga-me dado sobre o seu Implacável na paisagem dos seios que ocupam minhas mãos para a queda d’água dos gozos na sua carne paradisíaca. Dou-me, Maria, para você disposta inquietante, Glebe-ailes, para me dizer que vem dos trópicos e eu não esqueci jamais sua mão esquerda a segurar meu lampião aceso mais que vulcão prestes a explodir para sua vulva aberta, sendo dado mais que a paixão das trinta e cinco cartas desesperadas do seu Impossível, ah grande dama dos meus desejos, dou-lhe Boite-envalise com o meu sêmen, Paisage Faultiif na tentação da sua Amazônia. Dou-me, Maria, para seu fogo devorador de animismo tropical e escaparmos à civilização em nossa gaiola e eu privar do seu Oitavo Véu, onde sou mais atrevido porque amo pela primeira vez sem reservas, porque fez Coubert na minha retina o seu torso e mar que vai e vem para subverter minha vida à soma dos nossos dias como se eu fosse o seu However. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais abaixo e aqui.

DITOS & DESDITOS:
[...] Na excitação em torno do desenrolar de suas potencialidades científicas e técnicas o homem moderno construiu um sistema de produção que violenta a natureza e um tipo de sociedade que mutila o homem. [...] O dinheiro é considerado onipotente; se não pode realmente comprar valores imateriais, como justiça, harmonia, beleza ou mesmo saúde, pode ao menos burlar a necessidade destes ou compensar sua perda. O progresso da produção e a aquisição de riqueza, assim, tornaram-se as metas mais elevadas do mundo moderno com referência às quais todas as outras, não importa quanto ainda se fale delas da boca para fora, acabaram por ficar em segundo plano. [...] Essa é a filosofia do materialismo e é essa filosofia - ou metafísica - que está sendo agora contestada pelos acontecimentos. Nunca houve época, em qualquer sociedade de qualquer parte do mundo, sem seus sábios e seus mestres para contestarem o materialismo e pleitear uma ordem diferente de prioridades. [...].
Trechos extraídos da obra O negocio e ser pequeno; um estudo de economia que leva em conta as pessoas (Guanabara, 1983), do economista britânico Ernst Schumacher (1911-1977), abordando temas como ecologia e combate à poluição, sob todas as suas formas; preservação dos recursos naturais; alternativas energéticas, esgotamento de combustíveis fósseis, ameaças da energia nuclear e do lixo atômico; transferência de tecnologia aos países do Terceiro Mundo; escolha da tecnologia adequada para os países em desenvolvimento; uso de tecnologia intermediária, em oposição à tecnologia requintada, como sendo, mais apropriada para os países menos avançados; desenvolvimento regional rural, a fim de combater a excessiva urbanização e a proliferação de favelas em volta das megalópoles; aumento da eficiência da ajuda aos países pobres, para que se evite os desapontamentos verificados com a pouca eficiência desse auxílio; criação de pequenas e médias empresas,-revertendo-se a tendência de desumanização do trabalhador, característica da grande indústria; educação, única fórmula para se controlar a explosão populacional, causa da pobreza que se alastra na maior parte do mundo.

UMA NOITE EM SAMPA, DE UGO GIORGERTTI
O drama Uma noite em Sampa (2016), do cineasta Ugo Giorgetti, conta a história de um grupo que depois de assistirem a uma peça no teatro Ruth Escobar, espera o ônibus que vai levá-los de volta às suas casas. Eles já não moram em São Paulo, mudaram-se em busca de melhor qualidade de vida e maior segurança. Na saída do espetáculo, o ônibus está trancado e o motorista não está por perto. Ficam amedrontados e começam a perceber os moradores de rua e a escuridão ao redor. Sobre o cineasta foi publicado o livro Ugo Giorgetti - o sonho intacto (IOESP – Coleção Aplauso Cinema Brasil, 2004), de Rosane Pavam. Veja mais aqui.

A ARTE DE MARIA MARTINS
Eu sei que minhas Deusas e sei que meus Monstros sempre te parecerão sensuais e bárbaros. Eu sei que você gostaria ver reinar em minhas mãos a medida imutável dos elos eternos
A arte da escultora, desenhista, gravurista, pintora, escritora e musicista Maria Martins (1894-1973).
Sobre ela há uma série de publicações, tais como Maria Martins (Gryphus, 2004), de Ana Arruda Callado; Maria Martins (Cosac Naify, 2010), de Charles Cosac; Maria Martins: escultora dos trópicos (ArtViva, 2000), de Graça Ramos; Maria com Marcel: ou releituras da modernidade periférica (UFMG, 2010) de Raúl Antelo; e o documentátio Maria, não esqueça que eu venho dos trópicos (2017), que descreve a vida e obra da artista e embaixatriz, dirigido por Ícaro Martins, Francisco C. Martins & Elisa Gomes.
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A arte do artista francês Marcel Duchamp (1887-1968) – Imagem: Chess Master and Artist Marcel Duchamp playing Artist Eve Babitz, Pasadena Art Museum 1963 – aqui.
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A obra do neurologista e psiquiatra austríaco Viktor Frankl (1905-1997) aqui, aqui e aqui.

 

segunda-feira, março 25, 2019

NOVALIS, PEDRO LEMEBEL, CYRO PEREIRA, KARINA FREITAS & PIANO MUDO.


PIANO MUDO - Davilanice nascia para realização dos sonhos de sua mãe. Quatro anos de espera, de menstruações atrasadas, alarmes falsos, festejos e decepções, tapas e beijos. Agora não mais, dona Suedalina logo disse: É a minha vez, traste! Fim das frustrações, não mais adiamentos para quem queria ser pianista, bailarina, malabarista. Era ela e mais nenhuma desculpa, nem apertos, nem misérias. O casal médico superava estranhices, quase separações, incompatibilidade de gênios. Se ele quisesse, agora podia se danar pelo oco do mundo, ela se resolveria com sua filha, educação esmerada, dedicação integral, pelo menos. Ela seria a melhor entre todas as garotas, todas as balizas de bandas, todas as rainhas do milho, todas as debutantes na valsa. O pai ausente e diuturnamente embriagado, ainda emplacou mais dois filhos nela, antes de envultar de vez no meio da bebedeira. A menina crescia solitária e aos caprichos maternos. Queria empinar pipas, despetalar rosas, caçar borboletas, pular muro, soltar traques, avoar passarinhos e a mãe: Ao piano! No seu isolamento punitivo, dedilhava risadinhas sensuais na clave de sol pela urgência de tudo, tenebrosas emanações na clave de fá, e ouvia seus silêncios, os pés doíam na caminhada inclemente, dedos decepados pela angustia, mãos odiadas pelos suspiros de bemóis ao relento, pulso negado por arrebatados sustenidos e a charada da existência, brincadeiras dolorosas entre fusas, colcheias, mínimas, semibreves. Os descuidos temporários da genitora e ela podia tagarela por escalas diatônicas, folgazã por cromáticas, rabiscos no pentagrama: O que é isso? Melecas. Logo a sisudez pelo Concerto em lá menor de Grieg, ou peças dos preferidos Chopin, Rachmaninoff e a tocadora eremita, reprimida criação aos beliscões, puxavanques nos cabelos, aos murros e as dores, mão fechada aos seios, cotovelada no olho: Isso é porcaria, não se meta besta! Só clássicos, ouviu? Aprendeu? Virtuose coagida, implacável, inexoravelmente. Sonhava entre pesadelos atonais, visagens dodecafônicas e o espelho refletia sua tristeza: tão bela e sem vida. Adolescia sem esperança. Um festival na distante Brasilia, dezenove anos sem festas, sequer convívio com os irmãos quase desconhecidos. Sua clausura, dez partituras de famosos e mais uma escondida entre elas, com seus lamentos e sofreguidões. Justo por esta inédita, foi incluída na programação. Os pais não poderiam acompanha-la dessa vez, compromissos inadiáveis. Nem sabiam de sua astúcia. Malas e recomendações repetidas: Entendeu direito? Sim, sim. Lá, a música autoral escondida, aplausos e festejos. A sua apoteose: a libertação desacordada na mesa de bilhar de uma cidade satélite qualquer. O estupro e a maldição. Como pode tudo isso acontecer, não sabia, não entendia mais nada, nunca compreendeu nada. O retorno e a maldição, tratamento interminável. Um surto na descida da escadaria, o escorregão no meio do nada e pelo corrimão, o corpo estendido, os olhos abertos no primeiro degrau e a vida nunca mais. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.

DITOS & DESDITOS:
[...] responde olhando para trás no momento em que outro carro quase nos atinge. Cuidado! Grito, e ele ri com seus dentes reluzentes. Está tudo bem, não se preocupe, aqui é assim. Fugazes passam os olhos das crianças amazônicas que pedem um sol. Apenas um sol para deixarem manusear sua carne morna à pedofilia turista. Apenas um sol para deixarem manusear suas pequenas coxas raquíticas raquíticas enquanto oferecem lembrancinhas com as pupilas úmidas. [...] Quando saio do hotel, está me esperando, pisa no acelerador e saímos na selva da noite pela ribeira da avenida por onde desfilam as meninas de minissaia e saltos altos para seus franzinos corpinhos morenos. Por um sol entregam a estrela negra e reluzente que guardam entre as pernas. Por um sol, os gringos gordurentos as lambuzam com sua baba sob as luzes da praça [...].
Morrer de amor no Amazonas, extraído da obra Háblame de amores (Planeta, 2012), do ensaísta, cronista e romancista chileno Pedro Lemebel (1952-2915).

A ARTE DE KARINA FREITAS
A arte da artista visual, designer e ilustradora Karina Freitas, que também atua como diagramadora e criadora dos delírios gráficos que são colagens como uma linguagem que permitem sua comunicação visual de forma instintiva. Veja mais aqui.

A MÚSICA DE CYRO PEREIRA
Estou muito feliz com a minha profissão: ela me deu tudo o que eu queria. O que eu gosto mesmo é de reger e compor. Só vivi de música, e a música me ensinou tudo na vida.
A música do premiadíssimo maestro, compositor, arranjador e pianista Cyro Pereira (1929-2011), que foi professor na Unicamp e maestro da Orquestra Jazz Sinfônica. Seu trabalho mereceu registro com a publicação da biografia Cyro Pereira Maestro (DBA Dorea, 2005), escrito por Irineu Franco Perpétuo e a gravação do cd Cyro Pereira – 50 anos de música (Pau Brasil, 1997), pela Orquestra Jazz Sinfônica de São Paulo, dirigida por Mário Valério Zaccaro, reunindo seis obras autorais Poema para Jobim, O Fino do Choro, Solito, Cuidado com o degrau, Rapsódia Latina, Fantasia para piano e orquestra sobre temas de Ernesto Nazareth, entre outras, com a releitura de Carinhoso, de Pixinguinha. Veja mais aqui.
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A obra do poeta alemão Novalis (Georg Philipp Friedrich von Hardenberg – 1772-1801) aqui, aqui & aqui.


sexta-feira, março 22, 2019

AUDEN, GOETHE, HEISENBERG, SIMONE SAPIENZA & O ENTERRO VOLTANDO


NA HORAGÁ O ENTERRO TAMBÉM VOLTA! – Quando Dalcidônio teve um piripaque e bateu as botas, foi um alvoroço: filhos e parentes armados até os dentes na maior quebra de braço para ver quem levaria o cofre de todas as suas posses. Apareceram uns tantos enteados malquistos e afilhados até de um olho só para empiorar a discórdia. Cada um que se dissesse dono da coisa. Quantos deserdados entre consaguineos indesejáveis e bastardos amaldiçoados, tudo tratado aos bregues, murros e pontapés por ele enquanto vivo. Agora que esticou as canelas, não havia quem não quisesse revidar tomando pra si o que era dele, muito embora nenhum soubesse, nem mulher, nem filhos, sabiam como ele enricou da noite pro dia, uns cinquenta anos atrás, ou quase isso, por aí. Só os linguarudos tinham a história como certa e amiudada assim: era quase esmoléu até um dia desses, não tinha onde cair morto, nem carregava uma quenza magra pelo rabo, sequer. De repente, ajeitou-se nas costas dum baitola enrolão que era vendedor de lotes lá pras bandas de Caixa Pregos, negócio a crediário, riscado e apalavrado, só, e o povo tudinho, preço bom, hora certa, deixava os pagamentos semanais arrecadados pelo Donho, que sequer dava recibos, garantindo a quitação com o cabelo do bigode. Para esses era prestativo, guardava feira e posses, sempre devolvendo aos seus donos; providenciando compras antecipadas, ajeitados pra lá e pra cá, até condução pros requerentes, senão médicos e enfermeiros, botijões de gás levado em casa quando precisassem, tudo na maior confiança de pariceiros. Acontece que depois de anos, toda semana amortizando a dívida, chegava um dos pagantes para pedir a escritura: Pronto, seu Donho, acho que já liquidei aqui nas minhas contas, certo? Aí ele ia ao caderninho que sacava do bolso, perguntava o nome do distinto e dizia, depois de conferir a lista, que não havia pagamento algum a respeito ali anotado. Cadê o recibo? Nâo me deu, a gente é amigo. Ah, negócios lá, amizade cá, papel assinado, coisa certa. Mas, mas. Não tem mas, mas, ou traz o recibo ou nada! Mas toda semana eu lhe pagava, o senhor sabe disso? Dei recibo?Não. Então. Aí era salto de banda, pinote de todo jeito, encrencas e bufados por parte dos revoltados que, de enfrentá-lo quase em brigas esfoladas, para juras de morte ameaçaram para todo o lado. Foi por causa disso que adotou o costume de andar só de preto, com dois revolveres calibrados nos coldres da cintura, fechou a cara montado no bigodão, óculos escuros dos grandes em cima do pau da venta, arrotando brabeza e oferecendo dinheiro por empréstimo para liquidação da dívida se o queixoso quisesse, alegando ser ele alma boa de não necessitar de se apossar de nada de ninguém. Ah, é? É. Destá. Prevendo tempo ruim, virou baba-ovo de autoridades, intimo da cozinha deles, conseguindo tornar-se até araque de polícia e faz tudo para o que fosse necessário para atendê-los em cima da bucha. Todo folgado, passou a tramar das suas, um e outro dos então algozes morrendo do coração com as inventadas denúncias que ele armava para cima dos coitados com polícia na porta e tudo. Não demorou muito, só de cruzeta e sem dar um tiro sequer, removeu todos os obstáculos, tornando-se um dos homens mais ricos do lugar, a ponto de viver somente de alugueis, agiotagem e de agradar delegados, juízes, promotores e prefeitos, tudo no bolso dele. Não perdia viagem. Depois de rico, virou carrasco com os filhos e a parentalha toda, vivendo maritalmente com a esposa que era cega, muda e surda, coitada. Tinha uns quebra-galhos que ele emprenhava invariavelmente, e com o embuchamento ameaçava de morte se abrisse o bico. Blefe, só. Passou-se o tempo e ele arrotando riqueza e tirando proveito de abestalhados que o tinham por cabra certo e direito. Pois bem, na hora da pendenga judicial do espólio, o juiz tomou ciência de tudo, justiça seja feita: devolveu cada um dos bens e créditos aos seus legítimos donos, não sobrando nada para a viúva e os herdeiros, afora a casa própria que morava por ter sido herança do finado que ele se emancebara na juventude. Pois é, a justiça demora que só a peste, mas um dia lá, não sei quando, vai saber, ela vinga de uma forma ou de outra. Destá, digo eu agora. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.

DITOS & DESDITOS:
[...] Porque a fala, e com ela, indiretamente, o pensamento, é uma habilidade que, em contraste com todas as outras aptidões físicas, não se desenvolve nos indivíduos, mas entre os indivíduos. É com os outros que aprendemos a falar. A linguagem, por assim dizer, é uma rede aberta entre as pessoas, uma rede em que nossos pensamentos estão inextricavelmente presos. [...] a linguagem é obrigada a se apoiar em alguma ligação com a realidade. [...] nossa realidade depende da estrutura de nossa consciência; só podemos tornar objetiva uma pequena parcela de nosso mundo. [...] Admito que, às vezes, o campo subjetivo de um indivíduo, tal como o de uma nação, pode ficar num estado de confusão. Os demônios podem soltar-se e causar inúmeros danos, ou, para dizê-lo mais cientificamente, as ordens parciais que se separam da ordem central, ou que não se enquadram nela, pode assumir o comando. Mas, em última análise, a ordem central, ou o “uno”, como era costume chamá-la, e com a qual comungamos na linguagem da religião, tem que prevalecer. Quando as pessoas buscam valores, é provável que estejam à procura daqueles atos que se harmonizam com a ordem central e que, como tais, estão livres das confusões provenientes das ordens parciais divididas. [...] É nesse contexto que minha idéia da verdade relaciona-se com o conteúdo efetivo da experiência religiosa. [...] O caos sempre cede lugar à ordem. [...]. A parte e o todo: encontros e conversas sobre física, filosofia, religião e política (Contraponto, 1996),
do físico e Prêmio Nobel de 1932, Werner Heisenberg (1901-1976). Veja mais aquiaqui e aqui.

CANÇÃO DE OUTONO, DE W. H. AUDEN
As folhas tombam bem depressa agora,
Nem o copo-de-leite se demora,
Amas de leite estão no campo-santo,
Mas carros de bebê seguem rolando.
Cicios de vizinho, esquerda, direita,
Roubando-nos àquilo que deleita,
Mãos hábeis a gelar no exílio forçado
De seus joelhos desacompanhados.
Seguindo perto o nosso rastro, a voz
De morto aos centos grita Ai de nós,
Braços erguidos em censura, a opor-
Se-nos com seus falsos gestos de amor.
Ossudos, pela mata revolvida
Correm trolls gritando por comida.
Rouxinol e coruja estão silentes
E o anjo, certo, vai primar por ausente.
Erguer-se clara e inescalável desde
Os longes a Cordilheira do Em-vez-de
De cujos frios ribeiros tão risonhos
Ninguém pode beber, exceto em sonhos.
Poema do poeta, dramaturgo e editor britânico Wystan Hugh Auden (1907-1973). Veja mais aqui, aqui, aqui & aqui.

A ARTE DE SIMONE SAPIENZA, A SISS
A arte da artista urbana e muralista Simone Sapienza. Veja mais aqui.
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A obra do poeta, filósofo e cientista alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui & aqui.