sexta-feira, março 22, 2019

AUDEN, GOETHE, HEISENBERG, SIMONE SAPIENZA & O ENTERRO VOLTANDO


NA HORAGÁ O ENTERRO TAMBÉM VOLTA! – Quando Dalcidônio teve um piripaque e bateu as botas, foi um alvoroço: filhos e parentes armados até os dentes na maior quebra de braço para ver quem levaria o cofre de todas as suas posses. Apareceram uns tantos enteados malquistos e afilhados até de um olho só para empiorar a discórdia. Cada um que se dissesse dono da coisa. Quantos deserdados entre consaguineos indesejáveis e bastardos amaldiçoados, tudo tratado aos bregues, murros e pontapés por ele enquanto vivo. Agora que esticou as canelas, não havia quem não quisesse revidar tomando pra si o que era dele, muito embora nenhum soubesse, nem mulher, nem filhos, sabiam como ele enricou da noite pro dia, uns cinquenta anos atrás, ou quase isso, por aí. Só os linguarudos tinham a história como certa e amiudada assim: era quase esmoléu até um dia desses, não tinha onde cair morto, nem carregava uma quenza magra pelo rabo, sequer. De repente, ajeitou-se nas costas dum baitola enrolão que era vendedor de lotes lá pras bandas de Caixa Pregos, negócio a crediário, riscado e apalavrado, só, e o povo tudinho, preço bom, hora certa, deixava os pagamentos semanais arrecadados pelo Donho, que sequer dava recibos, garantindo a quitação com o cabelo do bigode. Para esses era prestativo, guardava feira e posses, sempre devolvendo aos seus donos; providenciando compras antecipadas, ajeitados pra lá e pra cá, até condução pros requerentes, senão médicos e enfermeiros, botijões de gás levado em casa quando precisassem, tudo na maior confiança de pariceiros. Acontece que depois de anos, toda semana amortizando a dívida, chegava um dos pagantes para pedir a escritura: Pronto, seu Donho, acho que já liquidei aqui nas minhas contas, certo? Aí ele ia ao caderninho que sacava do bolso, perguntava o nome do distinto e dizia, depois de conferir a lista, que não havia pagamento algum a respeito ali anotado. Cadê o recibo? Nâo me deu, a gente é amigo. Ah, negócios lá, amizade cá, papel assinado, coisa certa. Mas, mas. Não tem mas, mas, ou traz o recibo ou nada! Mas toda semana eu lhe pagava, o senhor sabe disso? Dei recibo?Não. Então. Aí era salto de banda, pinote de todo jeito, encrencas e bufados por parte dos revoltados que, de enfrentá-lo quase em brigas esfoladas, para juras de morte ameaçaram para todo o lado. Foi por causa disso que adotou o costume de andar só de preto, com dois revolveres calibrados nos coldres da cintura, fechou a cara montado no bigodão, óculos escuros dos grandes em cima do pau da venta, arrotando brabeza e oferecendo dinheiro por empréstimo para liquidação da dívida se o queixoso quisesse, alegando ser ele alma boa de não necessitar de se apossar de nada de ninguém. Ah, é? É. Destá. Prevendo tempo ruim, virou baba-ovo de autoridades, intimo da cozinha deles, conseguindo tornar-se até araque de polícia e faz tudo para o que fosse necessário para atendê-los em cima da bucha. Todo folgado, passou a tramar das suas, um e outro dos então algozes morrendo do coração com as inventadas denúncias que ele armava para cima dos coitados com polícia na porta e tudo. Não demorou muito, só de cruzeta e sem dar um tiro sequer, removeu todos os obstáculos, tornando-se um dos homens mais ricos do lugar, a ponto de viver somente de alugueis, agiotagem e de agradar delegados, juízes, promotores e prefeitos, tudo no bolso dele. Não perdia viagem. Depois de rico, virou carrasco com os filhos e a parentalha toda, vivendo maritalmente com a esposa que era cega, muda e surda, coitada. Tinha uns quebra-galhos que ele emprenhava invariavelmente, e com o embuchamento ameaçava de morte se abrisse o bico. Blefe, só. Passou-se o tempo e ele arrotando riqueza e tirando proveito de abestalhados que o tinham por cabra certo e direito. Pois bem, na hora da pendenga judicial do espólio, o juiz tomou ciência de tudo, justiça seja feita: devolveu cada um dos bens e créditos aos seus legítimos donos, não sobrando nada para a viúva e os herdeiros, afora a casa própria que morava por ter sido herança do finado que ele se emancebara na juventude. Pois é, a justiça demora que só a peste, mas um dia lá, não sei quando, vai saber, ela vinga de uma forma ou de outra. Destá, digo eu agora. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.

DITOS & DESDITOS:
[...] Porque a fala, e com ela, indiretamente, o pensamento, é uma habilidade que, em contraste com todas as outras aptidões físicas, não se desenvolve nos indivíduos, mas entre os indivíduos. É com os outros que aprendemos a falar. A linguagem, por assim dizer, é uma rede aberta entre as pessoas, uma rede em que nossos pensamentos estão inextricavelmente presos. [...] a linguagem é obrigada a se apoiar em alguma ligação com a realidade. [...] nossa realidade depende da estrutura de nossa consciência; só podemos tornar objetiva uma pequena parcela de nosso mundo. [...] Admito que, às vezes, o campo subjetivo de um indivíduo, tal como o de uma nação, pode ficar num estado de confusão. Os demônios podem soltar-se e causar inúmeros danos, ou, para dizê-lo mais cientificamente, as ordens parciais que se separam da ordem central, ou que não se enquadram nela, pode assumir o comando. Mas, em última análise, a ordem central, ou o “uno”, como era costume chamá-la, e com a qual comungamos na linguagem da religião, tem que prevalecer. Quando as pessoas buscam valores, é provável que estejam à procura daqueles atos que se harmonizam com a ordem central e que, como tais, estão livres das confusões provenientes das ordens parciais divididas. [...] É nesse contexto que minha idéia da verdade relaciona-se com o conteúdo efetivo da experiência religiosa. [...] O caos sempre cede lugar à ordem. [...]. A parte e o todo: encontros e conversas sobre física, filosofia, religião e política (Contraponto, 1996),
do físico e Prêmio Nobel de 1932, Werner Heisenberg (1901-1976). Veja mais aquiaqui e aqui.

CANÇÃO DE OUTONO, DE W. H. AUDEN
As folhas tombam bem depressa agora,
Nem o copo-de-leite se demora,
Amas de leite estão no campo-santo,
Mas carros de bebê seguem rolando.
Cicios de vizinho, esquerda, direita,
Roubando-nos àquilo que deleita,
Mãos hábeis a gelar no exílio forçado
De seus joelhos desacompanhados.
Seguindo perto o nosso rastro, a voz
De morto aos centos grita Ai de nós,
Braços erguidos em censura, a opor-
Se-nos com seus falsos gestos de amor.
Ossudos, pela mata revolvida
Correm trolls gritando por comida.
Rouxinol e coruja estão silentes
E o anjo, certo, vai primar por ausente.
Erguer-se clara e inescalável desde
Os longes a Cordilheira do Em-vez-de
De cujos frios ribeiros tão risonhos
Ninguém pode beber, exceto em sonhos.
Poema do poeta, dramaturgo e editor britânico Wystan Hugh Auden (1907-1973). Veja mais aqui, aqui, aqui & aqui.

A ARTE DE SIMONE SAPIENZA, A SISS
A arte da artista urbana e muralista Simone Sapienza. Veja mais aqui.
&
A obra do poeta, filósofo e cientista alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui & aqui.