Ao som do álbum Saudações a Egberto (Tuff Beats, 2016), da pianista, cantora, compositora e arranjadora Delia Fischer. Veja mais aqui e aqui.
TRÍPTICO DQP:
- Hestorieta dantanho... - Nos olhos da
primavera lá vinha ela das ondas do mar de Copacabana pro quintal da minha casa que não mais existe. Ali sua alma cigana
inflava meus segredos e me embalava na dança dos meninos. Era tão levada e me puxava para subir pelos galhos e telhados,
pular muros e valetas, desfilando inquieta a sua bunda-rica cheia de babados, o
saiote ao vento e os olhos vivos, criancices rodopiantes. A gente já adolescia
nos quartos e esquinas, peraltices medonhas e intermináveis. E, como tudo na
vida, ouvi de Cesare Pavese: Todas as paixões passam e se apagam, exceto
as mais antigas, aquelas da infância... Lá eu ia me esfacelando por rotas atravessadas, contando passos, acenos e paisagens; catalogava cenas
inesquecíveis, outras nem tanto, errava na vida pelos devires e percorridos. Foi
Mia Couto quem me deu conta: Quase tudo se adquire nesse tempo em que
aprendemos o próprio sentimento do Tempo... É quando estamos disponíveis para
nos surpreendermos, para nos deixarmos encantar... Lá ia
tudo se esgarçando pelos dias e aquilo que eu jurava jamais esquecer. E não
esqueci mesmo, o tempo passou e Manoel de Barros me dizia sorrindo: Sou hoje
um caçador de achadouros da infância. Vou meio dementado e enxada às costas
cavar no meu quintal vestígios dos meninos que fomos. A vida passava e eu ainda amanhecia.
Ainda a esperança...- A arte do artista de rua Thiago Mundano. – As tardes nublavam
pelos umbrais e eu divisava os morros entre o falível e o perene, enquanto a
ilustradorarquiteta Ana
Luiza Koehler me dizia
dos: ...tempos
de distantes, mas que se assemelham muito ao nosso... Nisso aprendia que o tempo é uma bomba no espaço, lenta e letal, sem
saber quanto sobra ou falta para capturar na existência. Muito menos entendia o
que dizia Manuel de Castro: Em cada sendo a questão é
corresponder, no e pelo agir, aso apelo de ser o sendo, não a partir do sendo
enquanto sendo do sistema, mas do sendo enquanto sendo do ser. Apropriar-se é o
concreto poético da realização sempre em processo, onde o Tempo é o Ser
enquanto doação. Levei
muito tempo para discernir enquanto sobrevivíamos a um holocausto cotidiano como
quem não falava, não questionava, não brilhava, não era... Só o apocalipse
cotidiano das crônicas da Mata Sul, onde a força bruta da ignorância esmagava a
cidade que se calava na décima primeira hora do dia, um ermo pro final de semana. Exatamente
quando o vizinho inventava de lubrificar suas dores de cotovelo virando a chave
da ignição dos estridentes chifres com suas lamúrias exaltadas e o show de
horrores era ouvi-lo se esgoelar imolando sua sofrência. Era um outro Brasil
diferente de tudo que já foi escrito e estudado até agora, um Brasil que
inexiste e nenhuma remissão, como dizia a filósofa Denise Ferreira da Silva: O conceito de justiça social se encaixa bem
dentro do estado-nação. Mas o estado de segurança está agora firmemente
estabelecido, com o único mandato de proteger a economia; é o
“estado-corporação”, cujos papéis primordiais para o capital global são criar
instrumentos jurídicos e estruturas e mecanismos que facilitem a extração, a
expropriação e a exploração e protejam o interesse das empresas e de seus investidores.
O que nós vamos fazer? Eu sequer sabia porque a zoada do vizinho era maior
que minha sanidade e, depois do
confinamento compulsório, só restava a reconexão pelas brechas: o lugar
estranho à flor da frágil pele, a gigante fenda de um estado permanente e o
sintoma do medo vivenciado. Esse armagedon trouxe do passado o presente de
sempre. Era o fim derradeiro, parecia; e não se podia confiar em ninguém porque
o vil e o cruel estava sempre à espreita, a terra devastada... Na lata do lixo
eu sabia: tudo poderia reviver, um simples catador.
Perfume da
noite... - A arte do
artista visual estadunidense Anatol
Woolf. – A quem se perdera o dia, quase fatigada noite assim se fizera porque
a bacante seminua era ela Frau Troffea,
solícita com o sangue superaquecido da ira sagrada dionisíaca de Estrasburgo, respirando
na neblina a me embalar para o que viria da dança de Vatsyayana. Eu lhe recitei ao ouvido Não sei dançar de Bandeira e ela me contou da solidão
do deus de Nietzsche. E me fez
compenetrado para contar que há quinhentos anos escapara duma epidemia medieva e
se safou porque se tornou na Dançarina de Izu de Kawabata, depois a ressurreta bailarina de João Cabral na dança de Amiri Baraka, e escapara fedendo da gripe espanhola na saga de La dansarina de Lilo Parra e Jefferson, até a sobrevivente Rosalyn Rincon que saiu da caixa mágica
do Costa Concórdia para me surpreender a pele e a alma com o bálsamo da dança da filha entre Drummond e Degas. E me envolveu marinheiro num Pas de Deux sob o céu turvo de primeira viagem, desbussolado, quase à deriva para
contar o devir de uma história que fosse só minha numa canção que ela exigiu
compusesse ali mesmo, de voz própria pelas emoções propositivas e potentes que
emanavam de sua candura sedutora, e nada mais restava porque a dança revelou o amor... E eu nem era mais... Até mais ver.
Aprender supõe...
um sujeito que se historia. Historiar-se é quase sinônimo de aprender, pois,
sem esse sujeito ativo e autor que significa mundo, significando-se nele, a
aprendizagem irá converter-se na memória das máquinas, ou seja, em uma
tentativa de cópia...
Trecho extraído da obra Os idiomas do aprendente: análise de
modalidades ensinantes em família, escolas e meios de comunicação (Artmed, 2001), da psicopedagoga argentina Alícia Fernández (1946-2015), autora da obra La Inteligencia Atrapada (Nueva
Vision, 1995). Veja mais Educação & Livroterapia aqui e aqui.