domingo, agosto 28, 2022

DENISE FERREIRA, ALÍCIA FERNÁNDEZ, MANUEL DE CASTRO & ANA LUIZA KOEHLER

 

Ao som do álbum Saudações a Egberto (Tuff Beats, 2016), da pianista, cantora, compositora e arranjadora Delia Fischer. Veja mais aqui e aqui.

 

TRÍPTICO DQP: - Hestorieta dantanho... - Nos olhos da primavera lá vinha ela das ondas do mar de Copacabana pro quintal da minha casa que não mais existe. Ali sua alma cigana inflava meus segredos e me embalava na dança dos meninos. Era tão levada e me puxava para subir pelos galhos e telhados, pular muros e valetas, desfilando inquieta a sua bunda-rica cheia de babados, o saiote ao vento e os olhos vivos, criancices rodopiantes. A gente já adolescia nos quartos e esquinas, peraltices medonhas e intermináveis. E, como tudo na vida, ouvi de Cesare Pavese: Todas as paixões passam e se apagam, exceto as mais antigas, aquelas da infância... Lá eu ia me esfacelando por rotas atravessadas, contando passos, acenos e paisagens; catalogava cenas inesquecíveis, outras nem tanto, errava na vida pelos devires e percorridos. Foi Mia Couto quem me deu conta: Quase tudo se adquire nesse tempo em que aprendemos o próprio sentimento do Tempo... É quando estamos disponíveis para nos surpreendermos, para nos deixarmos encantar... Lá ia tudo se esgarçando pelos dias e aquilo que eu jurava jamais esquecer. E não esqueci mesmo, o tempo passou e Manoel de Barros me dizia sorrindo: Sou hoje um caçador de achadouros da infância. Vou meio dementado e enxada às costas cavar no meu quintal vestígios dos meninos que fomos. A vida passava e eu ainda amanhecia.

 


Ainda a esperança...- A arte do artista de rua Thiago Mundano. – As tardes nublavam pelos umbrais e eu divisava os morros entre o falível e o perene, enquanto a ilustradorarquiteta Ana Luiza Koehler me dizia dos: ...tempos de distantes, mas que se assemelham muito ao nosso... Nisso aprendia que o tempo é uma bomba no espaço, lenta e letal, sem saber quanto sobra ou falta para capturar na existência. Muito menos entendia o que dizia Manuel de Castro: Em cada sendo a questão é corresponder, no e pelo agir, aso apelo de ser o sendo, não a partir do sendo enquanto sendo do sistema, mas do sendo enquanto sendo do ser. Apropriar-se é o concreto poético da realização sempre em processo, onde o Tempo é o Ser enquanto doação. Levei muito tempo para discernir enquanto sobrevivíamos a um holocausto cotidiano como quem não falava, não questionava, não brilhava, não era... Só o apocalipse cotidiano das crônicas da Mata Sul, onde a força bruta da ignorância esmagava a cidade que se calava na décima primeira hora do dia, um ermo pro final de semana. Exatamente quando o vizinho inventava de lubrificar suas dores de cotovelo virando a chave da ignição dos estridentes chifres com suas lamúrias exaltadas e o show de horrores era ouvi-lo se esgoelar imolando sua sofrência. Era um outro Brasil diferente de tudo que já foi escrito e estudado até agora, um Brasil que inexiste e nenhuma remissão, como dizia a filósofa Denise Ferreira da Silva: O conceito de justiça social se encaixa bem dentro do estado-nação. Mas o estado de segurança está agora firmemente estabelecido, com o único mandato de proteger a economia; é o “estado-corporação”, cujos papéis primordiais para o capital global são criar instrumentos jurídicos e estruturas e mecanismos que facilitem a extração, a expropriação e a exploração e protejam o interesse das empresas e de seus investidores. O que nós vamos fazer? Eu sequer sabia porque a zoada do vizinho era maior que minha sanidade e, depois do confinamento compulsório, só restava a reconexão pelas brechas: o lugar estranho à flor da frágil pele, a gigante fenda de um estado permanente e o sintoma do medo vivenciado. Esse armagedon trouxe do passado o presente de sempre. Era o fim derradeiro, parecia; e não se podia confiar em ninguém porque o vil e o cruel estava sempre à espreita, a terra devastada... Na lata do lixo eu sabia: tudo poderia reviver, um simples catador.

 


Perfume da noite... - A arte do artista visual estadunidense Anatol Woolf. – A quem se perdera o dia, quase fatigada noite assim se fizera porque a bacante seminua era ela Frau Troffea, solícita com o sangue superaquecido da ira sagrada dionisíaca de Estrasburgo, respirando na neblina a me embalar para o que viria da dança de Vatsyayana. Eu lhe recitei ao ouvido Não sei dançar de Bandeira e ela me contou da solidão do deus de Nietzsche. E me fez compenetrado para contar que há quinhentos anos escapara duma epidemia medieva e se safou porque se tornou na Dançarina de Izu de Kawabata, depois a ressurreta bailarina de João Cabral na dança de Amiri Baraka, e escapara fedendo da gripe espanhola na saga de La dansarina de Lilo Parra e Jefferson, até a sobrevivente Rosalyn Rincon que saiu da caixa mágica do Costa Concórdia para me surpreender a pele e a alma com o bálsamo da dança da filha entre Drummond e Degas. E me envolveu marinheiro num Pas de Deux sob o céu turvo de primeira viagem, desbussolado, quase à deriva para contar o devir de uma história que fosse só minha numa canção que ela exigiu compusesse ali mesmo, de voz própria pelas emoções propositivas e potentes que emanavam de sua candura sedutora, e nada mais restava porque a dança revelou o amor... E eu nem era mais... Até mais ver.

 


Aprender supõe... um sujeito que se historia. Historiar-se é quase sinônimo de aprender, pois, sem esse sujeito ativo e autor que significa mundo, significando-se nele, a aprendizagem irá converter-se na memória das máquinas, ou seja, em uma tentativa de cópia...

Trecho extraído da obra Os idiomas do aprendente: análise de modalidades ensinantes em família, escolas e meios de comunicação (Artmed, 2001), da psicopedagoga argentina Alícia Fernández (1946-2015), autora da obra La Inteligencia Atrapada (Nueva Vision, 1995). Veja mais Educação & Livroterapia aqui e aqui.



domingo, agosto 21, 2022

BELL HOOKS, VERA INBER, HARRY MULISCH, ELIZABETH LEE WURTZEL & MARIA JOYCE

 

 

Ao som da cantora, compositora e produtora cultural Maria Joyce.

 

TRÍPTICO DQP: A casa em que eu nasci não existe mais... - A madrugada chovia e eu dei a mão ao menino da beira do rio que sempre fui lá no quintal dos milagres. Divagação à toa, talvez. Horas a fio. Ali muitos dos meus amigos invisíveis, Ambulantes do Una, me contavam de tudo, escondidos nos troncos e galhos da minha imaginação. E me davam corda para que eu me metesse a ser o protagonista todo Gonçalo do Ramirez de Eça ou aprontando nas ilhas da Polinésia montado na Moby Dick do Melville, como se me esgueirasse explorando a Meseta do Pamir. Vivia solto na traquinagem e, vez em quando, uma menina aparecia para me contar doutras hestórias do tempo do ronca e do faz de conta, e já sabia de cor outras tantas pulando o muro para ir com ela pro brejo no monte de pó de serra, coisas da meninice mais faceira. Foi lá que Zezé apareceu e eu tinha tantas aventuras a mais que um simples pé de laranja lima. Hoje sorrio xexéu exilado a reviver perplexo o que sobrou daquela infância, assaltado pelos fantasmas madrugadores dos aprisionados pela memória da Casa dos mortos de Doistoiewski – todos foram fuzilados, apesar da comutação da pena, e zanzavam por ali como se fossem aqueles do documentário da Débora Diniz. A menina que brincava comigo naquele tempo reapareceu e era a amiga Sydia Araújo: Eu fui criança e hoje sou lembranças do passado que resiste num presente cuja ausência deixa suspensa em nuvens de algodão doce, um filme que insiste na tela de minha cinemateca. Quando ela sumia tudo ficava como se ouvisse de Stravinsky: Minha infância... foi apenas o período de espera até o momento em que pude mandar para o inferno todos e tudo que me rodeou. Sim, comigo também. É que fui pro mundo e enfrentei vicissitudes e o futuro. Hoje a casa onde nasci não existe mais...

 


Tranche de vie... - Imagem do artista conceitual e visual estadunidense David Reed. – O voo, a mão no presente, a cabeça no futuro e o mundo girava sob meus pés. Fui aprendendo que os seres e coisas não só possuem dois lados, mas muitos no âmago dos mistérios. Com isso muitos desmoronamentos dramáticos presidiram a grandiloquência das repulsas. Amiúde, a brandura, mesmo espedaçado, indignado com a repugnante estupidez. E se de um lado ouvia Eyvind Johnson: Deve-se pensar que você é alguém que vive no futuro e que você tem que julgar – aprovar ou desaprovar – o eu que age hoje, o eu que mantém ou falha... E nisso devemos acreditar: que a esperança e a vontade podem nos aproximar do nosso objetivo final: justiça para todos, injustiça para ninguém. De outro aquela menina reaparecia moça feita como se fosse Chimamanda Ngozi Adichie: A história sozinha cria estereótipos, e o problema com estereótipos é que não é que eles não são verdadeiros, mas que eles são incompletos. Eles fazem uma história se tornar a única história... Eu constantemente cometo o erro de pensar que algo óbvio para mim é óbvio para todo mundo... Nossas histórias se agarram a nós. Somos moldados pelo lugar de onde viemos... O tempo passava e entre dúvidas eu ia singrando a vida para saber do escritor holandês Harry Mulisch (1927-2010) a me jogar na cara lisa: Mas nada existe no futuro; ele está vazio; Pode-se morrer a qualquer momento... Um começo nunca desaparece, nem mesmo com um fim. Ao desencontrar de mim no meio de tantos tropeços, aquela que tanto ia e vinha me trazia os versos de Vai Passar da Vera Inber: Inevitavelmente, os anos passarão, arquivando... / Uma longa, longa fila. / Em uma cidade de pomar, colmeia de asfalto, / Todas as cidades crescerão. / Lindas rosas plantadas em telhados de vidro também florescerão. / Mas nós – asas! — não o verá nem o ouvirá; / Não eu, não você. / Apesar de tudo isso, é fácil imaginar / Esta cidade e / Seu verde, emoldurado no brilho do sol, / Em terra de todos os homens. — / Haverá uma estátua centrada no / octógono de uma certa Praça, / Construída para que o ouro do pôr-do-sol se derrame, escorrendo / Sobre o bronze da jaqueta. / Todos os tipos de criancinhas vão lá, felizes, / sem cuidados. / Brilhantes, eles enviam seus sorrisos no rico pôr do sol / Para aquele que ali se eleva. / Uma mãe levanta seu bebê para os degraus de pedra / E vendo os raios de sol empilhados / Acima deles diz baixinho... E sequer ouvia as últimas palavras porque a buzina do trânsito me roubava a complacência. Sabia, nada é dito em vão, mesmo que se pareça um chiste. Dou meu testemunho, apenas, a minha catarse...

 


É guerra e eu da paz...- Imagem: Iconografia do artista estadunidense Robert Motherwell (1915-1991). – Como pode, hem? Aos trancos e barrancos voo, tudo é tão indefinido, graças! Do nada os olhos de Maria Joyce cantarolando inquieta e cheia de vida, ruacima tempabaixo ali e acolá apontando: viver é possível. Sim, pode ser, eu sei. Era como se fosse a jornalitescritora estadunidense Elizabeth Lee Wurtzel (1967-2020) me dizendo: Às vezes eu gostaria de poder andar por aí com uma placa MANUSEIE COM CUIDADO grudada na minha testa... Isso é tudo que eu quero na vida: que essa dor pareça ter um propósito... E das casas olhos invisíveis por onde íamos entre fotos, instrumentos, garrafas da cachaçaria, o caminho de volta sem antes nem depois. E se para todo lado há só conflito, onde a paz? Não deu outra e Käthe Kollwitz nos lembrava: Toda guerra já traz em si a guerra que a responderá. Cada guerra é respondida por uma nova guerra, até que tudo seja destruído... O pacifismo simplesmente não é uma questão de olhar calmo; é um trabalho árduo... É meu dever dar voz aos sofrimentos das pessoas, os sofrimentos que nunca terminam e são grandes como montanhas. E a cantora trouxe ânimo como se me dissesse que tudo vale a pena, agora e já. Esqueci o que era apenas passado porque o futuro era daquela que se foi sem saudade como se ganhasse o mundo perdendo-se de si mesma. Até mais ver.

 


[...] Não é possível mudá-las [as salas de aula] se os professores não estiverem dispostos a admitir que ensinar sem preconceitos exige que a maioria de nós reaprenda, que voltemos a ser estudantes [...] A integridade está presente quando há congruência ou concordância entre o que pensamos, dizemos e fazemos. [...] Imagine como é ter aulas com um professor que não acredita que você é totalmente humano. Imagine como é ter aulas com professores que acreditam pertencer a uma raça superior e sentem que não deveriam ter de se rebaixar dando aulas para estudantes que eles consideram incapazes de aprender. [...] Foram as experiências dolorosas que me incentivaram a lutar para ensinar de formas que fossem humanizadoras, que animassem o espírito de meus estudantes de maneira que eles se elevassem na direção de sua peculiar completude de pensar e de ser. [...].

Trechos extraídos da obra Ensinando pensamento crítico: sabedoria prática (Elefante, 2020), da escritora, artista professora e ativista feminista e antirracista estadunidense Bell Hooks (Gloria Jean Watkins – 1952-2021), autora de obras como E eu não sou uma mulher? Mulheres negras e feminismo (1981), Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra (1989), Olhares negros: raça e representação (1992), Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade (1994). Dela a frase: O amor é o fundamento de toda mudança social significativa. Veja mais Educação & Livroterapia aqui e aqui.

 


segunda-feira, agosto 15, 2022

IMRE KERTSZ, MAVIS GALLANT, VERONICA FRANCO, CHARLOTTE YONGE& CLODOALDO CARDOSO

 

Ao som do show Almério e Martins gravado ao vivo no Teatro do Parque, Recife, 21 de novembro de 2021.

 

TRÍPTICO DQP: Isso é aquilo ou outro...Ainda que não tivesse esperança da manhã eu saía porta afora e em cada esquina a implacável presença de dementadores prontos para devorar cada um dos passantes: a frieza das atitudes desumanas como gente que pulsa com a surdez na iminência letal, tão cegos quanto mudos de braços cruzados com a sua resignada covardia, seu raciocínio inútil de quem odeia por não saber amar e seu ar perfurador apagando palavras e emoções como quem mais odeia e eu precisava comiserar como nem sei. Precisava mesmo estar atento. E ao me esquivar do ataque deles, logo dei de cara com o hipogrifo de Ariosto: sabia, acenar ou correr – cara ou coroa, dá no mesmo. Nem me assustei porque já sabia dos Tetrálios para quem via constantemente a morte rondando cada vez mais perto. Mas, por via de dúvidas optei pela segunda, não podia correr mais risco e sabia que a vida não cabia num simples silogismo: se havia enigmas, nada tão factual que saber meu quarto verdadeiro simulacro de cela penitenciária. Precisava sair: um lugar qualquer de nenhum local, só para refrescar a ideia e lembrar que minha irmã sempre me tratou por palerma; a do meio, era tanto faz; e a caçula sequer entendia nada direito. E eu entre os horrores do museu do Terror de Budapest, ouvindo Imre Kertsz: Você sobrevive à sua falta de sensibilidade e compreende que o vazio do mundo é, de certa maneira, obra sua... Com o meu espanto diante do que dissera, acrescentou: A leitura é como que uma droga que confere um adorno agradável aos contornos da crueldade da vida... Ah, sim, e me serviu como uma alquimia revivificante ou bricolagem instantânea para animar meus passos assimétricos de quem quase claudica a se precipitar pelas horas abissais no meio da noite trágica, mesmo que fosse dia ensolarado, como se fosse um deus inapropriado anulado pela própria sorte da anárquica ousadia disso ou daquilo e era outro, nada mais e o ditado: cobra que não anda não engole sapo.

 


Antes que chegue amanhã... - Imagem da artista japonesa Tomoko Takahashi. - O acorde a corda olhos dum poema estival advenoite augurando: Não chegue amanhã, por favor, oh, não chegue. E era como se Charlotte Mary Yonge me dissesse: O erro que fazemos, é quando procuramos ser amados, em vez de amar. Ah se pelo menos o mundo eu tivesse um tiquinho de nada, não me atemorizaria com a fugacidade e descontinuidades. Mas não, como Candeia precisava se encontrar consigo e com o Sol, rios, pássaros, eu precisava das passagens excruciantes como se fosse Ulisses diante de Atena, sem precisar lançar mão do dolo diante dos secretos desesperos inconsoláveis, ou como um deus que dança a poetar que sou o tempo que me esfacela e me destroça feito um rio incendiado pelas chamas do tempo. Atrevo-me a abrir o trinco dos labirintos e eis que emerge Mavis Gallant: Decida o que o resto da sua vida é ser. Tudo o que você é agora, você pode ser para sempre. Mas como se a vida reduzida ao buraco da fechadura, porque aqui se matam sonhos, aqui se mata de tudo e todos: a gentrificação na festa apoplética dos ignorantes abastados sobre almas desgarradas. Antes que chegue a manhã eu preciso subir à superfície: a distância entre o que digo e sinto, a desvalorização humana, o ódio pelo amor e o fracasso humano, as filigranas da vileza inapelável sob o Sermão contra usurários de Gregório de Nissa, tudo algaravias pelo entardecimento.

 


A vertigem da deriva... Imagem do ilustrador britânico Tom Poulton (1897-1963) – Lá longe quase via a dança das Horas nuas. Ao chegar mais perto, não, não era: a vida prega das suas. E só muito depois quando a boca noite se fizera a primeira das moiras ali me chegou e era Cloto desnudadivosa como aquela do Querubim de Rops, a tomar das minhas mãos, ajeitando-se para beijar meu sexo e surpreendentemente entregar-se escancarada para meu prazer sobre a poltrona. Tão surpreso quanto curioso deixei-me levar e assim como veio se foi, o trâmite de um dia atrás do outro. Escapei por pouco, mas sabia envolvido de forma inescapável. Sim. Foi no outro dia de tarde, a segunda, Láquesis, achegou-se como aquela da jarra de Shuvalon: vasculhou minhas intimidades, despiu-se apressada para atrepar-se sobre meu ventre, voluptuosamente enlouquecida. E se ela espichou a minha vida, nada saberia. Até que na noite seguinte, a terceira, Átropo, puxou-me até sua alcova, arrancou-me as vestes e empurrou-me sob os cobertores para arranchar despida e de costas, tomando-me as mãos ao seio e deitando-se como aquela do Amor do Liber Tacuina Sanitatis. O que aprendi ali não sei para quem se eternizava no corte entre o previsto e a prevenção, era só o que restava. Até que dois dias depois apareceu a translúcida Veronica Franco: Quando nós também estamos armadas e treinadas, podemos convencer os homens de que temos mãos, pés e um coração como o seu; e embora possamos ser delicadas e macias, alguns homens delicados também são fortes; e outros, grosseiros e duros , são covardes. As mulheres ainda não perceberam isso, pois se assim o decidissem, poderiam lutar contra você até a morte; e para provar que falo a verdade, entre tantas mulheres, serei a primeira a agir, dando um exemplo para eles seguirem. E me enfrentou como a Hidra para geminiano que almejasse a lua inteira só para si, tão longe da repugnância humana e dos desapontamentos da memória longínqua da ruína e a pressentir ocasos sucessivos. Ela então se apossou de um enorme espelho, depôs ao chão e ajoelhou-se perante um jarro de flores a deslizar uma fita mágica. Pude então ver-lhe a intimidade escondida para entender que a vida e a morte não são duas, mas uma só e mútua experiência. Até mais ver.

 


[...] Educar significa utilizar práticas pedagógicas que desenvolvam simultaneamente razão, sensação, sentimento e intuição e que estimule a integração intercultural e a visão planetária das coisas [...] A aprendizagem integral depende, portanto, do desenvolvimento harmonioso de todos estes canais de relação homem-mundo [...] Isto porque a aprendizagem no sentido holístico não objetiva apenas capacitar o individuo para entender o funcionamento do mundo [...].

Trechos extraídos da obra A canção da inteireza: uma visão holística da educação (Summus, 1995), do filósofo e professor Clodoaldo Meneguello Cardoso. Veja mais Educação & Livroterapia aqui e aqui.

 



sábado, agosto 06, 2022

ROSÁRIO CASTELLANOS, DIANE DI PRIMA, LOUELLA PARSONS, EVANDRO NICOLAU & VITAL CORRÊA DE ARAÚJO

 

 

TRÍPTICO DQP: Itinerar pelos devires e espaventos... - Ao som do álbum Diários de vento (Prêmio de Música TerraUna Ibermúsicas, Serra da Mantiqueira, 2016), da compositora e multi-instrumentista Joana Queiroz - Voo pelas praças e por aí: a cidade se confunde com o abandono das imundícies. É quase tão inabitável quanto a sede ressentida que esmola em meu peito à procura da mão amiga jamais vista. Só os invisíveis estirados nas calçadas de agosto saúdam o que já morreu faz tempo, enquanto ensaio as Despedidas de Rosário Castellanos: Queríamos aprender a despedida / e rompemos a aliança / que unia o amigo com o amigo. / E nós preenchemos a lacuna / entre amizades divididas. / Para aprender a sair, andamos. / Deixamos para trás as colinas, os vales, / os prados verdejantes. / observamos sua beleza, / mas não ficamos. Prossigo e os farrapos dum fantasmenino estende a mão com seus olhos famintos de espera a me levar entre vultos alheios como sombras divagantes pela sedução insone da ganância. Ele me olha com um sorriso inocente de quem é apenas uma criança e o seu gesto me diz do poema Gente que gosto, do Mário Benedetti: Antes de mais nada gosto da gente que vibra, / que não é necessário empurrar,/ que não se tem que dizer que faça as coisas / e que sabem o que tem que ser feito / e o fazem em menos tempo que o esperado. / Gosto da gente com capacidade de medir / as consequências de suas ações. / A gente que não deixa as soluções para a sorte decidir. / Gosto da gente exigente com seu pessoal e consigo mesma, / mas que não perde de vista que somos humanos / e que podemos nos equivocar. / Gosto da gente que pensa que o trabalho em equipe, entre amigos, / produz às vezes mais que os caóticos esforços individuais. / Gosto da gente que sabe da importância da alegria. / Gosto da gente sincera e franca, / capaz de opor-se com argumentos serenos e racionais às decisões de seus superiores. / Gosto da gente de critério, / a que não sente vergonha de reconhecer / que não conhece algo ou que se enganou. / Gosto da gente que ao aceitar seus erros, / se esforça genuinamente por não voltar a cometê-los. / Gosto da gente capaz de criticar-me construtivamente e sem rodeios: / a essas pessoas as chamo de meus amigos. / Gosto da gente fiel e persistente / e que não descansa quando se trata de alcançar objetivos e ideais. / Gosto da gente que trabalha para alcançar bons resultados. / Com gente como esta, me comprometo a tudo, / já que por ter esta gente ao meu lado me dou por satisfeito. Ele, então, meninamente abre os braços e dou-lhe o meu afago e tudo é como se eu escutasse o trecho doutro do poeta uruguaio insistindo ao meu ouvido que eu não desista: Ainda há fogo em sua alma, / Ainda há vida em seus sonhos / Porque cada dia é um novo começo, / Porque este é o momento e o melhor tempo. / Porque você não está sozinho, porque eu te amo. O seu abraço ensolarou os meus anoitecidos dias, não havia como ignorar, esse aconchego me levou a perseguir caminhos proutras descobertas, mesmo que amanhã pareça distante e sequer pouso algum tenha para mirar.

 


Um verso não brota à toa... - Restou-me a mim os meus próprios redemoinhos e fui arrastado para o Labirinto Verbo de VCA. O poetamigo mostrou-me mais que a loucura dos meus próprios dédalos no seu jeito aberto e desanuviou o trajeto agora desembaraçado nas paredes que se tornaram Monósticos entroutros poemas esgarçantes da venda mitológica dominante, desvelando o Minotauro como se me dissesse que É de lástima a pele dos pusilânimes que se esvaíram nas Líricas Chacinárias deste e de todos os tempos. Não, não era uma encruzilhada nem malsinações caluniosas dos óbices impostores, definitivamente não era porque a Ascese é uma mulher transfigurada em muitas outras. E entre elas a escritorestadunidense Louella Parsons (1881-1972) dissesse: Não é da minha natureza chorar por muito tempo. É uma das bênçãos da minha vida que as coisas que são passadas - são passadas. As calamidades de ontem são apenas o desafio de hoje. Eu posso descer - mas não posso ficar lá... Quase qualquer pessoa que já alcançou qualquer tipo de estatura pública em sua profissão pode esperar ver, às vezes, um reflexo em um espelho rachado. Atento ouvia tudo mesmo que parecesse me iludir ali instantaneamente confessional com a Carta Revolucionária nº 1, da poetativistestadunidense da Geração Beat, Diane di Prima (1934-2020): Acabo de perceber que o que está em jogo sou eu / Não tenho outra moeda de resgate, nada para / quebrar ou trocar, a não ser minha vida / meu espírito parcelado, em fragmentos, esparramado sobre / a mesa de roulette, eu recupero o que posso / só isso para enfiar embaixo do nariz do maitre de jeu / só isso para jogar pela janela, nenhuma bandeira branca / só tenho minha pele para oferecer, para fazer minha jogada / com esta cabeça imediata, com aquilo que inventa, é a minha vez / enquanto deslizamos sobre o tabuleiro, e sempre pisando / (assim esperamos) nas entrelinhas. Era como se lesse a minha alma estilhaçada e não tivéssemos nenhuma outra possibilidade de escapar daquele angustiante momento tenebroso, só a poesia nos salvava e eu pude segui-la rumalhures sem que soubesse qual direção seguíamos.

 


A paz age na paisagem”... – Imagem: fotograma do professor, compositor e artista visual Evandro Carlos Nicolau - Tantas paragens entre iridescentes meteoros esvoaçantes e cascalhos do meu chão fantasmagórico, até uma ancoragem sabia-se lá onde, nalgum tempespaço amigável e era Graça Lins apontando a manchete jornalística a respeito da necessidade de se ter amizades positivas para uma vida saudável, mas como se eu sequer sabia dalguma coisa próxima no espaçagora temperdido, não fosse ela própria a benfazeja instância dos sonhos que viajei nas asas de Darel e pude ouvir da sua graça e jeito o que dissera Evandro Carlos Nicolau: Mesmo sem percebermos todos estamos deixando marcas de nossas ações movimentos, interferências no mundo... E foi ao som de um trecho da canção dele mesmo, Viver além, do álbum Esboço (2016): ...o que desejo é não querer nada apenas tenho os meus pés na estrada... E seguisse assim aos Archivos del Sur para ganhar um Heráclito poema de Araceli Otamendi: eu sou feito de barro / eu moro em um pote / e a água passa... E um convite poético inusitado dela: Há uma cidade dentro de uma cidade... / saio a caminhar... Então fomos todos de mãos dadas singrando a delicadeza dos potentes afetos que nos fazem tão vivos quanto humanos atravessando o mais terrível flagelo na nossa doce ilusão de indelével incolumidade. Até mais ver.


 

[...] uma práxis pedagógica que pretenda ser emancipada e emancipadora não pode se furtar da responsabilidade de promover um clima cultural que favoreça o desenvolvimento de uma identidade autocrítica, de uma proposta pedagógica que permita com que os agentes educacionais experienciem verdadeiramente tanto os vínculos entre si quanto também os fracassos amealhados no processo ensino- aprendizagem que podem se transformar em sucesso; que conceda oportunidade de que o aluno e o mestre enfrentem seus medos e percebam que é o trabalho coletivo, que respeite as diferenças, aquele que produz uma individualidade não-patológica [...].

Trecho extraído da obra Indústria Cultural e educação: o novo canto da sereia (Autores Associados, 1999), do professor Antônio Álvaro Soares Zuin. Veja mais Educação & Livroterapia aqui e aqui.

 



segunda-feira, agosto 01, 2022

ANN BRASHARES, MALALA YOUSAFZAI, MEIR SHALEV & MIRÓ DA MURIBECA

 

 

TRÍPTICO DQP: De máscaras & personas... - Ao som do Concert Excerpts @International Guitar Festival Ferran Sor (2020), da violonista espanhola Anabel Montesinos. - O que vejo e sou: a máscara traz a persona que se mostra no palco do mundo e no cenário da vida. A aparência preferida almeja protagonizar entre os arquétipos de Jung e o senso diante da escolha entre os princípios de Freud: o prazer e a realidade. A lucidez é um detalhe e não precisa ser sisuda, como diria Nise da Silveira, seria uma chatura por esconder o real sob o ideal. E essa manipulação não seria lá tão saudável, ou quem capaz do Poema em linha reta ou da Tabacaria de Pessoa, enquanto visualizasse aquela que Carl Rogers colocou no centro da fenomenologia-existencial. Talvez seria melhor considerar o que dissera a escritora estadunidense Ann Brashares: Talvez haja mais verdade em como você se sente do que no que realmente acontece... Talvez a verdade seja que há um pouco de perdedor em todos nós. Ser feliz não é ter tudo em sua vida perfeito. Talvez seja sobre juntar todas as pequenas coisas... Ou atentar para o que escrevera o escritor israelense Meir Shalev: Se ao menos pudéssemos nos livrar de todas as coisas mortas dentro de nossos próprios corpos e almas!... Cada qual seu repertório de representações no ludo vital, sabendo-se de antemão que na cena, diz Stanislavski, deve-se expor o que vem de dentro para não ser um histrião no meio dos outros. É que por trás da máscara mil semblantes podem reverberar...

 


Dum lado a outro a vida se manifesta... – Imagem: arte da sulcoreana Stella Im Hultberg. - Um clique, o estalo, zás. Dentro: um som, tons. Daí sílabas e sonoridades: uma palavra, uma sinapse neuronal, zis significados – senão todos à mercê da percepção. Disso um dedo, o sinal e quantos sentidos (do caos, quantas expressões por descobrir). O simples ato apenas sugeriu e tudo, exatamente tudo pode acontecer: um fio puxa outro, teias. Não é só uma coisa ou outra, de um ponto: todas as ideias – rizomas, galhos dendríticos pulsantes escorrem pelo axônio: as terminações atraem umas às outras, as escolhas, imantações. Quanto poderia se dizer de um simples ato: vibrações ecoam, reverberam algures. E se uma emergiu aqui pode ser outra noutra percepção. Dita o poder de síntese de quem se expressa, a imaginação de quem perceber. Não só, cabe o mundo inteiro em uma só palavra, quanto mais em duas, três, seis. E se uma fonte expede sêxtuplas rajadas de gotas entre muitas outras que circundam e desembocam na emersão do universo à seletividade, níveis da compreensão. É só um triz, apenas, em meia dúzia de jatos com outros pingos condensados, aleatórios ou não, quantas emissões: em cada gota significados implícitos; e, se reunidas, múltiploutros. Ou como diz Cees Nooteboom: O mundo é uma referência cruzada sem fim... Cada período da história tem seus próprios castigos, e o nosso tem uma infinidade... Essa é a diferença entre deuses e homens. Os deuses podem mudar a si mesmos; humanos só podem ser mudados... Quem fala e quem ouve entre empatias e dissonâncias, transmissões e retransmissões: dum lado a outro a vida se manifesta.

 


D’agosto e lá se vai... - Imagem: arte da sulcoreana Stella Im Hultberg. - Era eu menino pelos quatro anos de idade e bateram no portão de quase derrubá-lo – era o início do tenebroso período ditatorial do golpe militar de sessenta e quatro. Começou no primeiro de abril e me assustou: botas expunham fuzis das fardas, vasculhando salas, quartos e quintal. Não sabia o que queriam, só sei que todos os dias marchavam bravos lá em casa e eu, toda vez, entre um dos braços de minha mãe grávida, agarrado à minha irmã. Lembro certa vez ela gritou que era agosto e eles nem consideraram: estava prestes a dar à luz. Lembrei-me porque li A história de mim de Graça Lins, como se lesse um poema de Miró da Muribeca (1960-2022): olhei para o passado / as folhas dos calendários / caindo / é preciso plantar cedo sua árvore / pra mais tarde ter uma sombra / que lhe agasalhe... Agora novamente agosto como o poema de Tchello d’Barros: O tempo desenha na face / O alto custo de um imposto / Pois lento nos dá outro susto / Chegamos a outro agosto / Posto que o destino é vasto / E visto o que está posto / Este viver tão sucinto / Nesta sina a contragosto / Dias semanas e meses / Somam em si um desgosto / No raso espaço do espelho / Os anos esculpem seu rosto... e eu sozinho conto de Emily Brontë: Deixe-me a sós, que preciso pensar; enquanto penso, não sofro… Do que passou e o presente, lembranças tão vivas como ecoassem agora. Até mais ver.

 


Um livro, uma caneta, uma criança e um professor podem mudar o mundo. A diversidade garante que crianças possam sonhar, sem colocar fronteiras ou barreiras para o futuro e os sonhos delas. Vamos pegar nossos livros e canetas. Eles são nossas armas mais poderosas. Uma criança, um professor, uma caneta e um livro podem mudar o mundo. A educação é a única solução. A educação é o poder das mulheres.

Pensamento da ativista paquistanesa Malala Yousafzai. Veja mais Educação & Livroterapia aqui e aqui.