domingo, agosto 28, 2022

DENISE FERREIRA, ALÍCIA FERNÁNDEZ, MANUEL DE CASTRO & ANA LUIZA KOEHLER

 

Ao som do álbum Saudações a Egberto (Tuff Beats, 2016), da pianista, cantora, compositora e arranjadora Delia Fischer. Veja mais aqui e aqui.

 

TRÍPTICO DQP: - Hestorieta dantanho... - Nos olhos da primavera lá vinha ela das ondas do mar de Copacabana pro quintal da minha casa que não mais existe. Ali sua alma cigana inflava meus segredos e me embalava na dança dos meninos. Era tão levada e me puxava para subir pelos galhos e telhados, pular muros e valetas, desfilando inquieta a sua bunda-rica cheia de babados, o saiote ao vento e os olhos vivos, criancices rodopiantes. A gente já adolescia nos quartos e esquinas, peraltices medonhas e intermináveis. E, como tudo na vida, ouvi de Cesare Pavese: Todas as paixões passam e se apagam, exceto as mais antigas, aquelas da infância... Lá eu ia me esfacelando por rotas atravessadas, contando passos, acenos e paisagens; catalogava cenas inesquecíveis, outras nem tanto, errava na vida pelos devires e percorridos. Foi Mia Couto quem me deu conta: Quase tudo se adquire nesse tempo em que aprendemos o próprio sentimento do Tempo... É quando estamos disponíveis para nos surpreendermos, para nos deixarmos encantar... Lá ia tudo se esgarçando pelos dias e aquilo que eu jurava jamais esquecer. E não esqueci mesmo, o tempo passou e Manoel de Barros me dizia sorrindo: Sou hoje um caçador de achadouros da infância. Vou meio dementado e enxada às costas cavar no meu quintal vestígios dos meninos que fomos. A vida passava e eu ainda amanhecia.

 


Ainda a esperança...- A arte do artista de rua Thiago Mundano. – As tardes nublavam pelos umbrais e eu divisava os morros entre o falível e o perene, enquanto a ilustradorarquiteta Ana Luiza Koehler me dizia dos: ...tempos de distantes, mas que se assemelham muito ao nosso... Nisso aprendia que o tempo é uma bomba no espaço, lenta e letal, sem saber quanto sobra ou falta para capturar na existência. Muito menos entendia o que dizia Manuel de Castro: Em cada sendo a questão é corresponder, no e pelo agir, aso apelo de ser o sendo, não a partir do sendo enquanto sendo do sistema, mas do sendo enquanto sendo do ser. Apropriar-se é o concreto poético da realização sempre em processo, onde o Tempo é o Ser enquanto doação. Levei muito tempo para discernir enquanto sobrevivíamos a um holocausto cotidiano como quem não falava, não questionava, não brilhava, não era... Só o apocalipse cotidiano das crônicas da Mata Sul, onde a força bruta da ignorância esmagava a cidade que se calava na décima primeira hora do dia, um ermo pro final de semana. Exatamente quando o vizinho inventava de lubrificar suas dores de cotovelo virando a chave da ignição dos estridentes chifres com suas lamúrias exaltadas e o show de horrores era ouvi-lo se esgoelar imolando sua sofrência. Era um outro Brasil diferente de tudo que já foi escrito e estudado até agora, um Brasil que inexiste e nenhuma remissão, como dizia a filósofa Denise Ferreira da Silva: O conceito de justiça social se encaixa bem dentro do estado-nação. Mas o estado de segurança está agora firmemente estabelecido, com o único mandato de proteger a economia; é o “estado-corporação”, cujos papéis primordiais para o capital global são criar instrumentos jurídicos e estruturas e mecanismos que facilitem a extração, a expropriação e a exploração e protejam o interesse das empresas e de seus investidores. O que nós vamos fazer? Eu sequer sabia porque a zoada do vizinho era maior que minha sanidade e, depois do confinamento compulsório, só restava a reconexão pelas brechas: o lugar estranho à flor da frágil pele, a gigante fenda de um estado permanente e o sintoma do medo vivenciado. Esse armagedon trouxe do passado o presente de sempre. Era o fim derradeiro, parecia; e não se podia confiar em ninguém porque o vil e o cruel estava sempre à espreita, a terra devastada... Na lata do lixo eu sabia: tudo poderia reviver, um simples catador.

 


Perfume da noite... - A arte do artista visual estadunidense Anatol Woolf. – A quem se perdera o dia, quase fatigada noite assim se fizera porque a bacante seminua era ela Frau Troffea, solícita com o sangue superaquecido da ira sagrada dionisíaca de Estrasburgo, respirando na neblina a me embalar para o que viria da dança de Vatsyayana. Eu lhe recitei ao ouvido Não sei dançar de Bandeira e ela me contou da solidão do deus de Nietzsche. E me fez compenetrado para contar que há quinhentos anos escapara duma epidemia medieva e se safou porque se tornou na Dançarina de Izu de Kawabata, depois a ressurreta bailarina de João Cabral na dança de Amiri Baraka, e escapara fedendo da gripe espanhola na saga de La dansarina de Lilo Parra e Jefferson, até a sobrevivente Rosalyn Rincon que saiu da caixa mágica do Costa Concórdia para me surpreender a pele e a alma com o bálsamo da dança da filha entre Drummond e Degas. E me envolveu marinheiro num Pas de Deux sob o céu turvo de primeira viagem, desbussolado, quase à deriva para contar o devir de uma história que fosse só minha numa canção que ela exigiu compusesse ali mesmo, de voz própria pelas emoções propositivas e potentes que emanavam de sua candura sedutora, e nada mais restava porque a dança revelou o amor... E eu nem era mais... Até mais ver.

 


Aprender supõe... um sujeito que se historia. Historiar-se é quase sinônimo de aprender, pois, sem esse sujeito ativo e autor que significa mundo, significando-se nele, a aprendizagem irá converter-se na memória das máquinas, ou seja, em uma tentativa de cópia...

Trecho extraído da obra Os idiomas do aprendente: análise de modalidades ensinantes em família, escolas e meios de comunicação (Artmed, 2001), da psicopedagoga argentina Alícia Fernández (1946-2015), autora da obra La Inteligencia Atrapada (Nueva Vision, 1995). Veja mais Educação & Livroterapia aqui e aqui.