terça-feira, abril 30, 2019

ERNESTO SÁBATO, MACHADO DE ASSIS, RENATO ORTIZ, NICOLINA VAZ DE ASSIS & MUCUNÃ


O PRESENTE DE MACHADO - Menino peralta duns oito ou nove anos, por aí, não dava sossego a ninguém tagarelando com meu amigo invisível e na amizade do maior converseiro com todo bicho e pés de plantas no quintal, ou da varanda pro jardim, qualquer brecha a ganhar o mundo e me esgueirando ladeiras acima na fuga pra casa de Pai Lula e Carma, ou, ainda, invadindo a biblioteca do meu pai para me aboletar sobre as coleções à cata das imagens de mulher nua, aos flagras, puxões de orelha e findar amarrado nas pernas de mesa da sala. Aos livros, de vera, era achegado mesmo, gostava. E foi por isso que no meu aniversário, meu pai chegou carregando uma caixa enorme nos braços. Ele me chamou e pediu para que eu adivinhasse o presente. Cá comigo, queria que fosse uma bicicleta e não era, ou um autorama, também não, ou uma coleção de super-herois, gibis, armas de brinquedo, coisa que valha e, evidentemente, pra minha contrariedade não era nada disso. Nada. Fomos pro sofá, mandou-me abrir e vi que era uma tuia de livros. Hum? Folheei um a um e, desapontado, disse: Mas painho não tem uma... ah, não poderia dizer, era segredo, senão estragava tudo e minha mãe viria com beliscões e outras reprimendas. Lição de reincidente, ora. Tive que tapiar na hora e fiz de conta que havia gostado e comecei a soletrar o nome: Machado de Assis (1839-1908). Quem é painho? Ah, vai gostar, tem muitas histórias. E tinha mesmo. Primeiro fui saber quem era, lendo a biografia: nasceu pobre e mesmo sem nunca ter ido à escola, ele escreveu em quase todos os gêneros literários, desde poesias, romances, crônicas, peças teatrais, tornando-se, inclusive, jornalista e crítico literário. Foi testemunha ocular da história, desde o movimento abolicionista, a passagem da monarquia para o republicanismo, além de todas as reviravoltas ocorridas entre o final do século XIX e o início do século XX, fatos que foram registrados em suas obras, ao todo 10 romances, 200 contos, 10 peças teatrais, 5 coletâneas de poemas e mais de 600 crônicas. Tudo isso na minha coleção de 31 volumes, uma edição da W. M. Jackson Inc, datada de 1938: no volume 1 – Ressurreição (1872), a história de Félix, Lívia, Raquel e Meneses. No volume 2 – A mão e a luva (1874), contando da relação de Guiomar com seus três pretendentes, findando a escolha dela por um deles, o Luis Alves. No volume 3 – Helena (1878), contando o acolhimento da jovem Helena pela família quando do falecimento do seu pai. No volume 4 – Yayá Garcia (1878), com a história engenhosa de Jorge e Estela, e ele vai à guerra do Paraguay, enquanto ela, orientada pela mãe dele, para se casar com outro. No volume 5 – Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), marcando o início do Realismo e compreendendo a autobiografia do protagonista que resolve escrever suas memórias depois de morto, a sua paixão pela prostituta Marcela, a claudicante e pobre Eugenia e a Virgilia roubada por Lobo Neves (Veja aqui e aqui). No volume 6 – Quincas Borba (1891), a história do professor Rubião e o filósofo Quincas, a paixão por Sofia, a mulher do sócio, o Humanitismo, a fortuna e o cachorro: “Aos vencedores, as batatas!”. No volume 7 – Dom Casmurro (1900), contando a história de Bentinho, o seminarista órfão, e a sua linda paixão Capitu. No volume 8 – Esaú e Jacó (1904), a história dos irmãos gêmeos briguentos Pedro e Paulo. No volume 9 – Memorial de Ayres (1908), a história do conselheiro Ayres e o amor de Tristão e Fidelia. No volume 10 – Contos fluminenses (vol. 1), com 7 contos, entre eles, Miss Dolar, A mulher de preto, Confissões de viúva moça, O segredo de Augusta, entre outros. No volume 11 – Contos fluminenses (Vol.2), com 14 contos publicados no Jornal das Famílias (1864-1878) e na Estação (1884-1891). No volume 12 – Histórias da meia noite, com 6 narrativas, entre elas A parasita azul, O relógio de ouro e Ponto de Vista. No volume 13 – Histórias Românticas, com 8 contos publicados do Jornal das Famílias (1864-1876). No volume 14 - Papeis Avulsos, com 12 contos, entre eles O Alienista (1882), a história de Simão Bacamarte, médido que reúne os loucos na Casa Verde, de Itagaraí; além de O empréstimo e O espelho. No volume 15 – Histórias sem data, com 18 contos, entre eles A igreja do diabo, Uma senhora e A segunda vida. No volume 16 – Várias histórias, com 16 narrativas entre elas A cartomante, A desejada das gentes, Adão e Eva, entre outras. No volume 17 – Páginas recolhidas (1889), com contos e duscursos pronunciados na Academia Brasileira de Letras. No volume 18 – Relíquias da casa velha (Vol.1) reunindo 21 contos. No volume 19 – Relíquias da casa velha (Vol.2) com 22 contos. No volume 20 – Chronica I (1859-1863), com crônicas publicadas no Diário do Rio de Janeiro, O Futuro, Semana Ilustrada, entre outros veículos (Veja aqui). No volume 21 – Chronica II (1859-1863), com crônicas publicadas no Diário do Rio de Janeiro (1859-1867) e Ao acaso & Cartas fluminenses. No volume 22 – Chronica III (1859-1888), com crônicas publicadas na Semana Literária (1871-1873) e Ilustração Brasileira (1876-1878). No volume 23 – Chronicas IV (1859-1888), com crônicas publicadas no O Cruceiro (1878) e Gazeta de Notícias (1884-1888). No volume 24 - A semana (1892-1897), 1º volume de crônicas. No volume 25 – A semana (1892-1897), 2º volume de crônicas. No volume 25 – A semana (1892-1900), 3º volume de crônicas. No volume 26 – A semana (1892-1900), 4º volume de crônicas. No volume 27 - Poesias completas (1870-1900), reunindo os livros Chrysalidas, Phalenas, Americanas, Ocidentaes e o Almada. No volume 28 – Theatro – reunindo as comédias Não consultes médico, O caminho da porta, O protocolo, Quase Ministro, além de folhetins, cartas e a fantasia dramática Desencantos. No volume 29 – Crítica literária (1858-1906), reunindo críticas e prefácios. No volume 30 – Crítica literária (1858-1906), 2º volume reunindo críticas e prefácios. No volume 31 – Correspondência, reunindo 25 cartas, entre elas a Quintino Bocaiuva, José de Alencar e Joaquim Nabuco. Era história que não acabava mais: 31 volumes. E quanto mais lia, mais gostava – apesar da grafia que não era do meu tempo de aprendizado, bem diferente e cheia de phs, ffs e coisas e tais. Confesso hoje que o presente foi melhor que tudo que desejei à época e que ainda hoje releio alguns volumes – embora dois deles já estejam bem deteriorados -, cuidando bem da obra desse grande escritor brasileiro que contribuiu e muito para minha formação. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.

DITOS & DESDITOS:
[...] um executivo alemão foi mandado à China para projetar uma grande instalação industrial. Durante algumas semanas, devido ás exigências de sua profissão, ele se vê obrigado a viver uma experiência amarga. Não fala chinês, desconhece os costumes locais, ressente-se da falta dos automóveis, encontra-se na contingência de partilhar um modesto quarto de hotel com outro viajante qualquer. De retorno a Hong Kong, sua conexão para voltar à Europa, respira aliviado. A paisagem que o cerca é sua velha conhecida. Mas por que um alemão se “sente em sua casa” em Hong Kong? O que lhe é familiar neste lugar longínquo? [...] A China Popular, para nosso executivo alemão, é um “mundo” distante, inóspito. Em seu território, tudo lhes é estranho. Em contrapartida, Hong Kong representa algo próximo, um recanto povoado por coisas de sua vida prosaica (hotéis, padrão de refeição e de conforto, táxis, etc.). Envolvido por uma miríade de objetos-mobilias, ele sente-se à vontade neste mundo-mundo. Familiaridade que se realiza no anonimato de uma civilização que minou as raízes geográficas dos homens e das coisas. [...].
Trechos extraídos da obra Mundialização e cultura (Brasiliense, 1994), do sociólogo e antropólogo Renato Ortiz, refletindo sobre a condição de cidadão do mundo diante da mundialização da cultura e a inevitável reorientação das sociedades atuais. No primeiro capítulo, trata sobre Cultura e sociedade global, discutindo a distinção entre mundialização, internacionalização e globalização, cultura e sociedade mundializada; o segundo capítulo trata do advento de uma civilização, efetuando uma abordagem do séc. XV até a atualidade, tratando sobre a sobremodernidade e alta modernidade de Giddens; no terceiro capítulo trata sobre a cultura e modernidade-mundo, procurando o entendimento sobre o contato entre as civilizações, trabalhando conceitos de mapa cultural; no quarto capítulo, aborda sobre cultura internacional-popular, a desterritorialização e os não-lugares; o quinto capítulos aborda sobre os artífices mundiais de cultura, em que as pessoas são praticamente forçadas a perder toda a relação com as antigas culturas da nação, diferentemente dos seus antecessores pré-globais (as ditas antigas multinacionais), estabelecendo a cultura-mundo; no sexto, a legitimidade e estilos de vida são o foco da sociologia; no sétimo, a digressão final, elucidando os conceitos de tradição, o fim do Estado, entre outros assuntos.

MUCUNÃ
O documentário Mucunã (2019), direção e roteiro de Carol Correia, trata sobre a história das mulheres do Sítio Rodrigues, vilarejo situado próximo a cidade de Belo Jardim, agreste pernambucano, povoado em que todos descendem de uma índia, que ainda criança, foi capturada nas margens do Rio Ipojuca, levada para casa, “amançada” e obrigada a casar com seu algoz. Da indiazinha, as mulheres herdaram o exímio traquejo com o barro e através da sua arte subverteram a lógica devastadora do patriarcado se tornando provedoras do lar e revolucionando uma realidade de violência e miséria extrema. O filme foi vencedor do Prêmio Naíde Teodósio de Estudos de Gênero – Ano IX, na categoria Roteiro, promovido pela Secretaria da Mulher de Pernambuco, em 2016. Veja mais aqui.

A ESCULTURA DE NICOLINA VAZ DE ASSIS
A arte da escultora Nicolina Vaz de Assis (1874-1941). Veja mais aqui.
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A OBRA DE ERNESTO SÁBATO
A história não é mecânica, porque os homens são livres para a transformar.
A obra do escritor e artista plástico argentino Ernesto Sábato (1911-2011) aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui & aqui.


segunda-feira, abril 29, 2019

KAVÁFIS, JOSÉ J. VEIGA, ONDINA POZOCO, AS FULÔ DO SERTÃO & ERÓTICA UNIVERSALIS



EROTICA UNIVERSALIS – Já tratei aqui sobre a temática do Erotismo & Pornografia, bem como da arte erótica e a respeito da educação sexual, por se tratar de tema de suma importância para compreensão das manifestações humanas. Exemplo disse foram as mais diversas publicações que fiz aqui no blog, acerca de obra como Thérèse Philosophe, bem como de autores como Marquês de Sade, Bataille, Henry Miller, Anais Nin, entre tantos outros das mais diferentes épocas do inventário humano. Trata-se de um tema que não é apenas deste tempo, vem desde a mais remota era, como comprova a obra Erótica universalis (Benedidikt Taschen, 1994), do historiador e editor de arte francês Giles Néret, volume este reunindo a Erotica antiqua, clássica, revolutionnaria, romântica, artis novae e moderna. A primeira parte da publicação compreende uma introdução trazendo As alegrias de Eros (The joys of Eros), destacando a luxúria a partir das expressões da antiguidade, passando pela arte egípcia e da Grécia Antiga. Na parte que compreende a Erotica Antiqua, a arte grega, Pompeia, o amor cortês e, como destaque, a arte do desenhista e gravurista francês Jacques Callot (1592-1635). Na abordagem acerca da Erotica Clássica, O amor dos deuses, reunindo obras de Hans Balding, Dürer, Rembrandt, Carracci, Boucher, Fragonard, Binet, Monnet, entre outros. Já a Erotica Revolutionnaria, trata sobre a arte à época da Revolução Francesa, sobretudo sobre a depravação com a arte e a propaganda sexual que destruiu Marie Antoinette, com gravuras e panfletos pornográficos da época. Na Erotica Romantica, denominada Puxando o diabo pela cauda, a arte de Achile Devaria, Eugénne Le Potevin e Peter Fendi, entre outros. A Artis Novae representando os dândis com a arte de Aubrey Beardsley, Franz Von Bayros e Felicien Ropes, entre outros. Por fim, a Erotica Moderna com a Origem do Mundo de Coubert, a colheita erótica de Gauguin, Tolouse, Degas, Ingres, Maele, Viset, Rodin, Klimt, Schiele, Grosz, Picasso, Dali, Dubuffet, Pascin, Bellmer, Honore Daumier, Bernard Montorgueil, aquarelas judias, ilustrações de fetiche vintage do Carlo, Foujita, John Willie e Eneg. Essas representam o tratamento de questões que envolvem a sexualidade humana e a expressão da mais diversa manifestação do prazer, do amor e da paixão, merecendo, por isso, estudos e reflexões acerca do comportamento humano. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.

DITOS & DESDITOS:
[...] Ai as coisas começam a se complicar; e na falta de informações seguras abre-se um vale-tudo em que as opiniões mais absurdas são lançadas como verdades comprovadas, o que só serve para desacreditar aqueles poucos estudiosos que se dedicam seriamente ao assunto, num trabalho paciente e penoso, como cegos tateando cominho em nevoeiro fechado. No meio dessa confusão que às vezes toma aspectos até grotescos há quem indague se vale a pena perder tempo com elucubrações que não levam a nada, a não ser talvez à loucura, quando o grande problema do momento é o de viver nesta Terra chata que jamais voltará a ser redonda, se é que algum dia foi. [...] Não será de melhor proveito nos preocuparmos com a vida nesta imensa planura que ainda continuará plana quando não houver mais ninguém para pisá-la, maltratá-la e muito menos fazer planos mirabolantes para devolver-lhe a forma arredondada que ela teria tido em épocas remotas? [...] É fascinante, por exemplo, imaginar que da redondeza da Terra devia decorrer a redondeza de quase tudo o que havia nela. Só de pensar que os homens (como também os animais, as plantas, os minerais), não seriam chatos como os de hoje, pelo menos não tão chatos, já dá vontade de ter vivido naquele tempo. [...] Por que achataram a Terra? [...] Enquanto o povo plainava, equipes de cientistas de várias especialidades iam cuidando de apagar os vestígios da redondeza, num tratamento meticuloso que incluía a coleta, destruição ou ocultamento de objetos, utensílios e obras de arte. [...] Também o sentido de muitas palavras que significavam ou sugeriam redondeza foi alterado nos dicionários, e com o tempo o povo foi aceitando as alterações. [...] a Terra continua redonda como sempre foi. O que aconteceu foi que as pessoas, geração após geração, foram condicionadas desde pequenas a aceitar o dogma de que vivem numa Terra chata; e como só viam formas chatas por toda parte, acabaram se convencendo. [...] o fato de a vermos chata não é mais do que uma monumental ilusão de ótica, reforçada pelo condicionamento da visão interior, ilusão e condicionamento incutidos nas pessoas desde o momento do nascimento. [...].
Conto Quando a Terra era redonda, extraída da obra De jogos e festas (Civilização Brasileira, 1980), do escritor do realismo fantástico brasileiro José J. Veiga (1915-1999). Veja mais aqui e aqui.

A ARTE DE ONDINA POZOCO
A arte da artista plástica Ondina Pozoco na expressão das mais diversas formas, como aquarelas, desenhos, litografias, pasteis e pintura acrílica, explorando a riqueza dos detalhes e das cores intensas. Ela participou  da criação do Núcleo de Gravura do Rio Grande do Sul e de Bienais em Porto Rico, Coréia do Sul, Espanha e Florença. Veja mais aqui.

A MÚSICA D’AS FULÔ DO SERTÃO
A música da banda de forró de Teresina (PI), As Fulô do Sertão, formado pelo trio de instrumentistas Adnayane Marins no triângulo e percussão, Écore Nascimento na voz, violão e sanfona, e Tauana Queiroz na zabumba, criado em 2014, com o objetivo de cantar canções que falam e valorizam a cultura nordestina. O grupo lançou em 2018 o álbum Balanço do novo amor. Veja mais aqui.
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A OBRA DE KONSTANTÍNOS KAVÁFIS
Peça que a estrada seja longa. Pode haver muitas manhãs de verão quando você chegar, com prazer e alegria, a portos nunca antes vistos.
A obra do poeta grego Konstantínos Kaváfis (1863-1933) aqui e aqui.


sexta-feira, abril 26, 2019

WITTGENSTEIN, PEDRO NAVA, MICHELINY VERUNSCHK, ANA PAULA HOPPE & REVELAÇÃO ANAGRAMÁTICA.


REVELAÇÃO ANAGRAMÁTICA - Na cidade vizinha de Malrepas descobriram um livro que tomaram por mágico e que estava enterrado nos fundos do cemitério. Nada demais, evidentemente. Foi mão-de-obra para transportar a coisa, sem saber o que fazer com ela. Livro, nem deram bolas; antes fosse uma botija com muito ouro, isso sim, valeria. Mas livro, nenhuma serventia. Como parecia uma Bíblia, deram de início certa atenção, porém, como não era, caiu no desdém. Afinal, era só uma dessas coisas que aparecem do inopinado e, depois de matar a curiosidade, tornam-se banal. E tudo voltaria ao normal, não fosse o fato de, repentinamente, alguém enlouquecer. Como? Foi, birutou. Ninguém sabia o motivo. Como é que pode? É normal. Logo outro endoideceu assim do nada. De novo? Mais outro e outros tantos, muitos. Peraí, o que é que está havendo? Quem sabe! Ué, deram de desassisar, foi? Pois é. Por que será? Não se tinha a menor ideia. Investigações foram diligenciadas. Todos queriam saber por que, de um tempo para cá, as pessoas deram de amalucar sem qualquer motivo aparente. E foram juntando as pedras, montaram o quebra-cabeça e só deu uma por resultado: o tal do livro desenterrado. Vamos ver! O mistério se mantinha. Ué, mas fulano num foi com beltrano ver isso? Foram, endoidaram juntos. Como é que pode? E sicrano e outro mano também foram e piraram, outranos também. Vixe! Um a um na fila, encangados. O título, em letras de ouro: Revelação Anagramática. Com a ponta dos dedos, de um lado a outro, de cabeça pra baixo, a lombada, nada mais, só o título gravado em caligrafia artística numa capa dura de camurça escura, dumas mil páginas, 40x60 centímetros, difícil de apalpar e segurar de tão pesado e grosso. Quem abrisse em qualquer página, findava ruim da bola! Atenção redobrada. Receio, precaução. Ah, tem coisa. Tem. Que danado de livro é esse? Só vendo. Uma comitiva topou desvendar o mistério. Abriram. O primeiro: Oxe, isso sou eu? Como? Eita! Que foi? A minha vida! Como assim? O que estava lendo, fechou de repente e saiu sem falar. O que estava do lado, curioso, abriu: Ave, Maria! Depois de pregar as vistas na leitura, também saiu todo desequilibrado. Até alguém dizer: Ninguém abre, esse livro, é amaldiçoado. Já havia mais de duas centenas de hospedados no manicômio. Estava líquido e certo: quem abriu, acabou no hospício. E agora? O que havia de gente bisbilhoteira para saber detalhes do caso, não findava de chegar. Logo a notícia chegou à Alagoinhanduba, justo para saber do doutor Zé Gulu, o único que parou para pensar a respeito e deu uma resposta razoável para os incrédulos: Ah, deve de ser o fabuloso Livro de Areia que encontraram! O quê? Um livro diabólico que foi narrado por um escritor argentino chamado Borges. Hem? É um livro estranho, sem começo nem fim, carregado de fábulas! Mas fica pinel quem lê-lo? Sei não. Então, vamos lá! Ah, eu já li. E o que tem de tão apavorante de desaprumar a cachola do leitor? Só narrativas fabulosas. E por que quem bota o olho nele funde a cuca? Ué, eu li e não fiquei louco, vou lá saber por que estão perdendo a sanidade mental, ora! Ah, então vamos lá! Nada demais. Vamos, homem! Nada. Fizeram tudo para ele ir, não teve jeito. Ele amuou-se e não cedeu nem a rogos da população. Então, tá. Quem correu para saber detalhes de tudo foi o bispo que, aos cochichos, quis saber o que se sucedia. Padre Quiba que tinha visto o piripaque do padre novato, ficou na dele, nem chegou perto da suposta danação e narrou tintim por tintim ao superior. Pois, então, vamos abri-lo! Deus me livre! É uma ordem! Nem amarrado. Vamos os dois! Vou nada! Que é que tem no livro? Não sei, só sei que tem um monte de gente aí que abilolou só de ler a primeira página. Hummmmm. Só está salvo desse estrupício quem não leu, quem não abriu uma página sequer daquilo, só dizendo quem lia que era ele que estava lá escrito, a vida dele e saía todo desgovernado fazendo bilu-bilu. Ah, quero ver esse livro. Arrepara. Ao chegarem diante daquele volume ainda todo empoeirado, logo deram de cara com os juízes e delegados das duas cidades e doutras, confabulavam. Quem é maluco de abrir uma praga dessa? Procuraram voluntários, nenhuma iniciativa. Convocaram a polícia e elegeram um condenado a abrir na marra e dizer o que tinha escrito. Assim feito, amarrado, o sujeito dizia: Eita, sou eu! Vixe! E o cara abria um boticão de quase os olhos pularem fora. Fale! Ficou hipnotizado. Fale! Ele não tirava as vistas daquela página. O que está vendo, responda, é uma ordem! Nem batia as pálpebras, de boca aberta. Pronto, já era. O sujeito começou a gritar, espernear, tiveram de levá-lo pro sanatório. Logo estavam todos os prefeitos da região, deputados, senadores, pais de santo, fuxiqueiros, autoridades de todo tipo arrodeando a obra esquisita, sacudindo um pro outro a responsabilidade de abri-la e dizer o que é que tem nessa maldita publicação. Depois de muito puxa-encolhe, resolveram colocá-la numa redoma indestrutível e transparente, colocaram num altar para exploração turística, rendendo altas receitas até hoje. Pronto, resolvido. O que não querem saber é de leitura, tem feitiço no livro, dito e feito: quem lê perde o juízo. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.

DITOS & DESDITOS:
[...] Abolida a escravidão e não se podendo mais comprar negro, as senhoras de Minas tomavam para criar negrinhas e mulatinhas sem pai e sem mãe ou dadas pelos pais e pelas mães. Começava para as desgraçadas o dormir vestidas em esteiras postas em qualquer canto da casa, as noites de frio, a roupa velha, o nenhum direito, o pixaim rapado, o pé descalço, o tapa na boca, o bolo, a férula, o correão, a vara, a solidão. Apesar disso, íntimas das sinhás, ajudando nos fuxicos, nas intrigas – servis, bajuladoras, vendo tudo, alcovitando namoros, sabendo dos podres e integradas em cheio nos complexos sexuais dos meninos da família. Em casa de minha avó materna, funcionava o sistema. Ela era mesmo tida como grande disciplinadora de negrinhas, disputando a palma dessa primazia, em Juiz de Fora, com D. Guilhermina do Dr. Rosa da Costa e a D. Clementina do Dr. Feliciano Pena. Para o arbítrio de Inhá Luisa, nem o batismo tinha barreiras. Ela revogava o sacramento quando a graça das negrinhas parecia de moça branca. O quê? Evangelina Berta? Absolutamente. Fica sendo Catita, que isto que é nome de negro! [...]
Trecho extraído da premiada obra Baú de Ossos (José Olympio, 1978), do escritor e médico brasileiro Pedro Nava (1903-1984), primeiro volume das memórias do autor. Veja mais aqui e aqui.

A POESIA DE MICHELINY VERUNSCHK
PROPÓSITO: ela se abre / pétala a pétala / e branca é a sua carne / ela se abre / pétala a pétala / e exala a doce abacaxi. / ele duro e brilhante / mal sabe o que o traz aqui / mal sabe do pólen / que traz nas patas / no abdome / ele só sabe do que sente / do que o consome / a noite vem e ela se fecha / de novo / pétala por pétala / ele guardado dentro dela / ele luz e calor / quando ao dia mais uma vez chegar / ela será vermelha / ela será ele / ela será amor.
O CORPO AMOROSO DO DESERTO: Teu corpo / branco e morno / (que eu deveria dizer sereno) / é para mim / suave e doloroso / como as areias cortantes / dos desertos. / Que importa / que ignores minha sede / se tua miragem / é água cristalina. / E a miragem eu firo com mil línguas / e cada uma é um pássaro / a bebê-la. / Ferroam a minha pele / escorpiões de fogo e sol / com seu veneno / e vejo, / magoada de desejo, / os grãos tão leves / indo embora ao vento.
RÁPIDO MONÓLOGO DO CAÇADOR COM SUA CAÇA: Trago / Pardos / Os olhos / De cobiça / Que atiro / Sobre ti, / Teu verbo/teu sexo: / Tua presa / de / marfim.
Poemas da poeta e historiadora Micheliny Verunschk, autora dos livros Geografia Íntima do Deserto (Landy 2003), O Observador e o Nada (Bagaço, 2003), A Cartografia da Noite (Lumme, 2010), Nossa Teresa - vida e morte de uma santa suicida (Patuá/Petrobras Cultural, 2014) e b de bruxa (Mariposa Cartonera, 2014). Ela é mestre em Literatura e Crítica Literária, doutora em Comunicação e Semiótica e doutoranda em Letras pela PUC-SP. Veja mais aqui.

A ARTE DE ANA PAULA HOPPE
A arte da escritora e artista visual Ana Paula Hoppe, co-autora da obra interativa Baleia Rosa: você está espalhando o bem? (Buzz,2017), em parceria com Rafael Tiltscher, construído com desafios lúdicos e práticos a partir de frases como: Seja você a mudança que deseja ver no mundo ou Não faça aos outros o que não gostaria que fizessem para você, direcionadas para a alegria de viver, a autoestima e o sentimento de pertencimento. Veja mais aqui.
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A OBRA DE LUDWIG WITTGENSTEIN
Os problemas filosóficos surgem quando a linguagem sai de férias.
A obra do filósofo austríaco naturalizado britânico Ludwig Wittgenstein (1889-1951) aqui, aqui e aqui.


quinta-feira, abril 25, 2019

ERICH FROMM, LEDO IVO, RUTH MEZECK, MONA KUHN & DO OURO AO PÓ!


DO OURO AO PÓ – Meu nome é Atilardisio Silva Terceiro, o Tezinho para os íntimos. Esse era o nome do meu avô, seu Titido, homem de negócio, sisudo, austero. Ele tinha para mais de 10 irmãos, se virou sozinho desde muito jovem, vendendo bolo de goma, sandálias, brebotes em tolda na feira. Família, para ele, só no retrato e em funerais. Sumia toda noite na ponta dos pés, transações com fornecedores e fisco até de madrugada – as más línguas insinuavam barriga verde e lupanar, coisas de fofoca, ao que parece, nunca me disseram a verdade. Os irmãos arriavam a ripa, tratavam-no por traidor. Outras diziam dele, nunca deixou cair a pose, muito embora gostasse de um rabo de saia e de sodomitas. Só sei que ele se engraçou da minha avó, uma linda jovem chamada Nitinha – ela odiava o nome de registro e batismo: Norinete. Casaram e ele prosperou longe dos parentes, não sei ao certo como, apenas que conseguiu depois de muito esforço abrir a Loja do Titido, um estabelecimento comercial que vendia de tudo. Com o tempo já mais de uma centena, uma rede de lojas pelo interior afora. Do casal nasceu meu pai, Atilardisio Segundo, o Sessé, filho único que nunca deu um murro numa cocada, nem estudou nem quis nada com a vida já que ela, para ele, já estava ganha: era só pegar o que quisesse e gastar com apostas, caprichos e relações escusas. Perto dos 30 anos, meu pai casou-se com uma ricaça fútil: a minha mãe que não descia do salto alto nem para me parir. Tornei-me o brinquedinho predileto dela e da minha avó. Do meu avô só sei de ouvir dizer: morreu de forma duvidosa, não se sabe por conta dos desmandos do meu pai, ou se bateu as botas nos regalos de umas coxas taradas de mulher da vida. Só sei que nada me faltava até então: aparelhos tecnológicos, caboetas, posses e jeitinhos. Usei e abusei, como meu pai: ofício algum na vida, só gastar por prazer. Sempre tive ao alcance da mão tudo que quisesse. Minha mãe sempre tirânica ralhava que eu era escritinho ao meu pai, tal e qual. Nunca notei essa semelhança, na verdade, pois, igual a ele, para mim, só no nome, já que ele era sabido demais, malicioso. Minha indignação com ele se deu quando descobri quem era aquela mulher toda espaçosa e elegante que ele chamava de Jacinto. Isso às gargalhadas com seus comparsas insuportáveis, Adolfo Dias e Oscar Alhada, que não saiam lá de casa nem do escritório dele. Só no dia que peguei na folha de pagamento é que entendi: havia uma soma mensal para Jacinto Leite Aquino Rego. Na verdade, nunca gostei mesmo dos meus pais. Principalmente quando ele acabou com tudo e virou a cara para a política, elegendo-se prefeito numa cidadezinha interiorana. Meu pai virou pilhéria, além de um salafrário. Nem tenho notícia dele – só daquela da tevê anunciando o afastamento dele do cargo -, nem quero saber se já foi preso ou se está corrido de tanto meter a mão na prefeitura. Nem da minha mãe, uma dondoca chata que, tenho certeza, está endoidando ainda mais a sogra até matá-la de raiva. Até me esquecia do enlouquecimento de vez da minha avó, sabia que ela já não vinha boa da bola desde um dia lá de uma coisa que só soube muitos anos depois. Tinha ciência que havia perdido um seio por doença, o que a desgraçara para o resto da vida. Contudo, outra causa remoía no seu juízo e eu não fazia a menor ideia: o flagra do marido aos amores com um sobrinho dela. Fatídico. Desde então minha mãe me deixou aos cuidados das babás, as quais embuchei, bancando abortos para não queimar meu filme. São minhas guarda-costas, agenciam serviçais e administram as que pensam que namoram comigo, afora propiciarem acesso a baratos incalculáveis. Dos meus pais e avós guardo nenhum afeto, hoje muito menos, me abandonaram nesta cela infecta, nem me visitam. Só das minhas protetoras que sobrevivo na minha solidão, elas que me visitam e me mimam atrás dessas grades, aprendendo todo dia o que é a vida. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.

DITOS & DESDITOS:
[...] O mundo é um grande objeto de nosso apetite, uma grande maçã, uma grande garrafa, um grande seio; nós somos os lactentes, os eternamente expectadores lactentes – e lactentes eternamente desapontados. [...] O caráter acumulador, o caráter de marketing que se adapta à economia de mercado ao se tornar apartado de emoções autenticas, da verdade e de convicções, tudo se transforma em mercadoria, não só as coisas, mas a própria pessoa, sua energia física, suas aptidões, seu conhecimento, suas opiniões, seus sentimentos, até mesmo seus sorrisos. [...] Essas pessoas não são capazes de se afeiçoar, não porque sejam egoístas, mas porque sua relação com outros e consigo mesmas é muito tênue [...] O catáter produtivo que ama e cria, e para o qual ser é mais importante do que ter. um caráter produtivo como esse não encontra estímulo na economia de mercado. Na verdade, constitui uma ameaça a seus valores. [...]
Trechos extraídos da obra The Sane Society (A sociedade sã - Reissue, 1990), do filósofo, sociólogo e psicanalista alemão Erich Fromm (1900-1980), em que o autor apresenta a sua filosofia social e política, analisando a moderna sociedade capitalista industrial e seus cidadãos vistos como necessariamente alienados, comercializados e conformados, tratando, por consequência das patologias da sociedade que contribuem para a doença dos indivíduos. Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui & aqui.

O TEATRO DE RUTH MEZECK
A arte da atriz, palhaça, performer e blogueira do Teatro Etc & Tal, Ruth Mezeck, que está no III Bolina – Festival Internacional de Palhaças, com o seu espetáculo A mulher aquela, dia 06 de maio, às 21hs, em Portalegre, Portugal. Veja mais aqui e aqui.

A FOTOGRAFIA DE MONA KUHN
A arte da fotógrafa contemporânea Mona Kuhn. Veja mais aqui.
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A OBRA DE LEDO IVO
O que sobra é obra, o resto soçobra.
A obra do premiadíssimo escritor e ensaísta alagoano Ledo Ivo (1924-2012) aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.


quarta-feira, abril 24, 2019

YASUNARI KAWABATA, NIELS BOHR, MARIKA GIDALI, ARTUR AZEVEDO & A SALVAÇÃO DO BILAC


A SALVAÇÃO DO BILACÉ cada uma que aparece! Veja como são coisas que acontecem não se sabe como. Para se ter uma ideia, essa eu não sabia, nem imaginava tivesse ocorrido. Não fosse um caso recolhido no não menos curioso livro Como você se chama? Estudo sócio-psicologico de prenomes e cognomes (Documentário, 1973), do saudoso jornalista, poeta, biógrafo e teatrólogo Raimundo Magalhães Júnior (1907-1981), passaria em branco com essa curiosidade. Pois bem, vamos ao caso. Acontece que Brás Martins dos Guimarães era filho de Brás Martins dos Guimarães. Ou seja, com os mesmos nomes, o pai, seu Brás, um funcionário público exemplar; e Brasinho, o filho, um futuro médico que, prestes a se formar, requereu ao diretor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, que lhe acrescentasse o cognome Bilac, para distinguir seu nome do de seu pai, evitando confusões futuras na hora de enfrentar a burocracia brasileira. Assim pleiteou e, por fim, conseguiu. Com isso, construiu a família Bilac que se ramificou com o nascimento dos filhos Cora, Olavo e Gastão. A prole recebeu os devidos cuidados do casal Bilac até crescerem e se proliferarem quando adultos. Acontece, porém, que, ao se casar, a filha Cora perdeu o patronímico, ganhando o do marido; Olavo, o famoso poeta e cronista carioca da Academia Brasileira de Letras, que era um solteirão convicto, não deixou filhos, contrariando os sonhos dos pais como sempre o fez; e, o caçula, Gastão, trouxe ao mundo o Ernani que, por sua vez, não deixou descendência. Então, o Bilac surgiu para distinguir pai e filho, findava sem que houvesse na face da terra mais nenhum parentesco. Por conta disso, com o tempo, inevitavelmente a família Bilac sumiria do mapa, extinta para todo o sempre. Ah, mas não foi bem assim. Não fosse um pai mineiro admirador dos versos do vate parnasiano, registrar na certidão de nascimento do filho recém-nascido o nome de Olavo Bilac Pinto e este ao se formar em direito passar a se assinar Bilac Pinto, a família não se salvaria. Pronto, dito e feito, TTTTT também é cultura e onomástica, diga se não é? © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aquiaqui.

DITOS & DESDITOS:
O sentido da vida consiste em que não tem sentido nenhum dizer que a vida não tem sentido. Ainda bem que chegamos a um paradoxo. Agora, há esperança de conseguirmos algum progresso. Qualquer um que não se choque com a Mecânica Quântica é porque não a entendeu. O oposto de uma afirmação correta é uma afirmação falsa. Mas o oposto de uma verdade profunda pode ser outra verdade profunda. Nunca se expresse mais claramente do que você é capaz de pensar. Toda frase que eu digo deve ser entendida não como uma afirmação, mas como um pergunta. Um físico é apenas a forma que um átomo encontrou de olhar para si mesmo. Algumas coisas são tão sérias que você tem que rir delas.
Pensamento extraído da obra Física atômica e conhecimento humano (Contraponto, 1995), do físico dinamarquês Niels Bohr (1885-1962) que desenvolveu trabalhos nas áreas de estrutura atômica e da física quântica.

EPIDAURO PAMPLONA
Em Mar de Espanha havia um velho fazendeiro, viuvo que tinha uma filha muito tola, muito mal-educada, e, sobretudo. muito caprichosa. Chamava-se Zulmira. Um bom rapaz, que era empregado no comércio da localidade, achava-a bonita, e como estivesse apaixonado por ela, não lhe descobria o menor defeito. Perguntou-lhe uma vez se consentia que ele fosse pedi-la ao pai. A moça exigiu dois dias para refletir. Vencido o prazo, respondeu: - Consinto, sob uma pequena condição. - Qual? - Que o seu nome seja impresso. - Como? - É um capricho. - Ah! - Enquanto não vir o seu nome em letra redonda, não quero que me peça. - Mas isso é a coisa mais fácil... - Não tanto como supõe. Note que não se trata da assinatura, mas do seu nome. É preciso que não seja coisa sua. Epidauro, que assim se chamava o namorado, parecia ter compreendido. Zulmira acrescentou: - Arranje-se! E repetiu: - É um capricho. Epidauro aceitou, resignado, a singular condição, e foi para casa. Aí chegado, deitou-se ao comprido na cama, e, contemplando as pontas dos sapatos, começou a imaginar por que meios e modos faria publicar o seu nome. Depois de meia hora de cogitação, assentou em escrever uma correspondência anônima para certo periódico da Corte, dando-lhe graciosamente notícias de Mar de Espanha. Mas o pobre namorado tinha que lutar com duas dificuldades: a primeira é que em Mar de Espanha nada sucedera digno de menção; a segunda estava em como encaixar o seu nome na correspondência. Afinal conseguiu encher duas tiras de papel de notícias deste jaez! "Consta-nos que o Rev.mo Padre Fulano, vigário desta freguesia, passa para a de tal parte." "O Ilmo Sr. Dr. Beltrano, juiz de direito desta comarca, completou anteontem 43 anos de idade. S. Sª, que se acha muito bem conservado, reuniu em sua casa alguns amigos." "Tem chovido bastante estes últimos dias", etc. Entre essas modestas novidades, o correspondente espontâneo, depois de vencer um pequenino escrúpulo, escreveu: "O nosso amigo Epidauro Pamplona tenciona estabelecer-se por conta própria." Devidamente selada e lacrada, a correspondência seguiu, mas... Mas não foi publicada. O pobre rapaz resolveu tomar um expediente e o trem de ferro. - À Corte! à Corte! dizia ele consigo; ali, por fás ou por nefas, há de ser impresso o meu nome! E veio para a Corte. Da estação central dirigiu-se imediatamente ao escritório de uma folha diária, e formulou graves queixas contra o serviço da estrada de ferro. Rematou dizendo: - Pode dizer, Sr. redator, que sou eu o informante. - Mas quem é o senhor? perguntou-lhe o redator, molhando uma pena; o seu nome? - Epidauro Pamplona. O jornalista escreveu; o queixoso teve um sorriso de esperança. - Bem. Se for preciso, cá fica o seu nome. Queria ver-se livre dele; no dia seguinte, nem mesmo a queixa veio a lume. Epidauro não desesperou. Outra folha abriu uma subscrição não sei para que vítimas; publicava todos os dias a relação dos contribuintes. - Que bela ocasião! murmurou o obscuro Pamplona. E foi levar cinco mil-réis à redação. Com tão má letra, porém, assinou, e tão pouco cuidado tiveram na revisão das provas, que saiu: Epifânio Peixoto 5$OOO Epidauro teve vergonha de pedir errata, e assinou mais 2$OOO. Saiu: "Com a quantia de 2$, que um cavalheiro ontem assinou, perfaz a subscrição tal a quantia de tanto que hoje entregamos, etc. Está fechada a subscrição." Uma reflexão de Epidauro: Oh! Se eu me chamasse José da Silva! Qualquer nome igual que se publicasse, embora não fosse o meu, poderia servir-me! Mas eu sou o único Epidauro Pamplona... E era. Daí, talvez, o capricho de Zulmira. Uma folha caricata costumava responder às pessoas que lhe mandavam artigos declarando os respectivos nomes no Expediente. Epidauro mandou uns versos, e que versos! A resposta dizia: "Sr. E. P. Não seja tolo." Como último recurso, Epidauro apoderou-se de um queijo de Minas à porta de uma venda e deitou a fugir como quem não pretendia evitar os urbanos, que apareceram logo. O próprio gatuno foi o primeiro a apitar. Levaram-no para uma estação de polícia. O oficial de serviço ficou muito admirado de que um moço tão bem trajado furtasse um queijo, como um reles larápio. Estudantadas... refletiu o militar; e, voltando-se para o detido: - O seu nome? - Epidauro Pamplona! bradou com triunfo o namorado de Zulmira. O oficial acendeu um cigarro e disse num tom paternal: - Está bem, está bem. Sr. Plampona. Vejo que é um moço decente--- que cedeu a alguma rapaziada. Ele quis protestar. - Eu sei o que isso é! atalhou o oficial. De uma vez em que saí de súcia com uns camaradas meus pela Rua do Ouvidor, tiramos à sorte qual de nós havia de furtar uma lata de goiabada à porta de uma confeitaria. Já lá vão muitos anos. E noutro tom: - Vá-se embora, moço, e trate de evitar as más companhias. - Mas... - Descanse, o seu nome não será publicado. Não havia réplica possível; demais, Epidauro era por natureza tímido. O seu nome, escrito entre os dos vagabundos e ratoneiros, era uma arma poderosíssima que forjava contra os rigores de Zulmira; dir-Ihe-ia: - Impuseste-me uma condição que bastante me custou a cumprir. Vê o que fez de mim o teu capricho! Quando Epidauro saiu da estação, estava resolvido a tudo! A matar um homem, se preciso fosse, contanto que lhe publicassem as dezesseis letras do nome! Lembrou-se de prestar exame na Instrução Pública. O resultado seria publicado no dia seguinte. E, com efeito, foi: "Houve um reprovado." Era ele! Tudo falhava. Procurou muitos outros meios, o pobre Pamplona, para fazer imprimir o seu nome; mas tantas contrariedades o acompanharam nesse desejo que jamais conseguiu realizá-lo. Escusado é dizer que nunca se atreveu a matar ninguém. A última tentativa não foi a menos original. Epidauro lia sempre nos jornais: "Durante a semana finda, S.M. ,,o Imperador foi cumprimentado pelas seguintes pessoas, etc. Lembrou-se também de ir cumprimentar Sua Majestade.- Chego ao paço, pensou ele, dirijo-me ao Imperador, e digo-lhe: - Um humilde súdito vem cumprimentar Vossa Majestade, - e saio. Mandou fazer casaca; mas, no dia em que devia ir a Cristóvão, teve febre e caiu de cama. Voltemos a Mar de Espanha: Zulmira está sentada ao pé do pai. Acaba de contar-lhe a que impôs a Epidauro. O velho fazendeiro ri-se a bandeiras despregadas. Entra um pajem. Traz o Jornal do Comércio, que tinha ido buscar à agência de correio. A moça percorre a folha, e vê, afinal, publicado o nome de Epidauro Pamplona. - Coitado! murmura tristemente, e passa o jornal ao velho. - É no obituário: "Epidauro Pamplona, 23 anos, solteiro, mineiro. - Febre perniciosa." O fazendeiro, que é estúpido por excelência, acrescenta: - Coitado! foi a primeira vez que viu publicado o seu nome.
Um capricho, conto extraído da obra Contos possíveis (H. Garnier, 1908), do dramaturgo, escritor e jornalista brasileiro Artur Azevedo (2855-1908). Veja mais aqui.

A ARTE DE MARIKA GIDALI
Subir no palco e dançar é uma forma de você se comunicar com você mesmo de uma forma profunda.
Eu nunca dividi o lado social e o artístico. A minha forma de pensar sempre foi a de usar o meu potencial no trabalho com o social. Não teve um dia que eu acordei e decidi que iria fazer um trabalho social. Eu sempre conduzi a minha vida dessa maneira.
Eu acredito que o corpo é absolutamente necessário para qualquer coisa. Você não pode pensar sem o corpo. E a arte-cidadania na dança envolve música, harmonia, cultura, beleza, disciplina, sociabilização. Tudo o que a gente precisa para montar um serzinho.
A arte da premiada e inovadora bailarina húngara, coreógrafa e líder de companhia de dança, Marika Gidali, artista empenhada na ação social pelos menos favorecidos, batalhadora das causas sociais e justas, mãe devotada, fundadora do Ballet Stagium e que tem sua vida e arte reunida no volume Marika Gidali: singular e plural (Senac, 2001), de Décio Otero. Na área da educação e inclusão social está à frente de projetos sociais com grande repercussão, tendo coordenado as atividades de dança nas unidades da FEBEM, coordenando o Projeto Joaninha, o Dança a Serviço da Educação- Stagium vai às Escolas e Escolas Vão ao Teatro, e o Professor Criativo - curso dirigido a professores da rede pública de ensino do de São Paulo. Veja mais aqui e aqui.
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A OBRA DE YASUNARI KAWABATA
Em tempos de guerra, as pessoas são transformadas em todos os tipos de coisas. O destino de cada um fica louco.
A obra do escritor japonês prêmio Nobel de Literatura de 1968, Yasunari Kawabata (1899-1972) aqui e aqui.


terça-feira, abril 23, 2019

JORGE DE LIMA, TEILHARD DE CHARDIN, VALERIA DELFIM, DOMÉSTICAS & QUASE UM BOI DE FOGO


QUASE UM BOI DE FOGO, PARECE – Zuzinha que não era besta coisa nenhuma, achou de se enrabichar para as bandas da belíssima branquela Pupu – cujo nome era Pulquéria –, se enrolando da coisa mexer de feder. O povo só de butuca no meio do sarro pesado deles, coisa de dizerem que o menino achou de brincar nas maiores intimidades com ela, passando as mãos e o que mais tivesse nos guardados da donzela. Foi não! Oxente, como se não fosse! É mesmo? E a falação solta na buraqueira. De tão escandaloso ficou esse idílio, do caso ganhar prestígio no meio da fofocagem geral: Foi mesmo! E então, rapaz! Vixe, Mulher! Num diga! Não sabia ele que de irmãos ela tinha quinze, nove deles uns atarracados dos maus bofes, tudo filho do ajegado Pedrinácio das Coivaras e de sua não se sabe lá se legítima esposa, dona Baronesa, pois o poderoso estibado mantinha umas e outras teúdas e manteúdas por aí, de modos que formava com a distinta um casal que não deixava por menos nem um cisquinho de nada que fosse deles. Sinal do maior estrupício, avalie. Todo mundo já sabia disso, outras contavam dos desfechos nada pacíficos da truculência deles. Pois bem, o primeiro que deu as caras para tirar satisfação, foi o encostado ao mais novo, Genebão: Ô nego, dá fora da tua asa pras bandas da minha irmã, senão te capo! Venha! E foi: no estapeado, um murro levou-lhe dois incisivos pro mato, agora sorriria com uma janelinha na banguelada. Nada demais perto do estrago no agressor: um corte rasgou-lhe a carne do osso do mucumbu ao centro da coxa esquerda, de quase deixá-lo rancolho. E o povo: O negócio está piorando, não vai findar bem! E torciam prum lado e pro outro. Aguardavam o próximo capítulo. Não demorou muito, logo outro deles, o escostado ao mais velho, o Jamelão, já foi caindo no bofete pra cima do mulatinho: uma roncha no olho esquerdo e outro incisivo cuspido fora. Ah, é? Tome! Um talho rasgou da parte esquerda do bigode, atravessou tudo de deixar aberto o buraco direito da venta do rapaz. Sangreiro espirrou. Agora, danou-se tudo! Vem nuvem negra por aí. E veio mesmo. O velho Pedrinácio foi arrotar fumaceiro na lata do Seu Zuza: O seu neguinho tá querendo mexer com minha filha e quase aleijou dois dos meus filhos! Respeite as caras, véio! Eu pego ele! Pegue e eu acabo com a sua raça! Pronto! O negócio esquentou no confronto que só não houve porque alguém gritou pro parrudo acudir outra coisa urgente: Quéqui foi dessa vez? Acode! Não foi dessa vez que os dois queimaram a rixa. Prometia tragédia braba. A polícia já rondava atrás do Zuzinha por conta da fuxicada que sapecava atentado ao pudor pras bandas dele! Seu Zuza, sereno, acompanhava o rastro do rapaz, se fazendo de mouco. Pegou-lo na virada: Seu cabra, quer me desmoralizar é? Eu não. Mexendo com filha alheia, você morre! Morro não, mato antes. Deixe de petulância! Eu tava quieto no meu canto, ela veio, levantou a saia, num sou molenga, agarrei o osso, vieram dois irmãos dela, me deixaram banguela, fui lá e loa, resolvido. Resolvido, nada! O pai dela esteve aqui! Mande ele vir! Se aquiete, menino, desempina esse nariz. Estou no meu canto, ela que vem. Não me desmoralize que lhe dou umas lamboradas boas de deixá-lo imprestável pro resto da vida! Esquenta não, pai, resolvo isso. Resolva já. E resolveu. Não como queria. Numa esquina, quando menos esperava, o velho e os nove filhos emboscaram. Agora quero ver. Venha! Será a besta fera? Zuzinha riscou a peixeira no chão: É hoje! Arrocha! Fecharam o cerco e acossaram o rapaz. Agora! Não fosse a providente chegada de Pupu naquela hora, ele não sairia vivo: Eu caso com ele. O velho bufou, deu murro no vento, deu pesada nos ares, mas segurou a onda: Casa agora que quero ver! Oxe, o pároco às pressas: Eu te benzo, marido e mulher. Pronto, ninguém sabe ao certo que fim levou, nunca mais vi Zuzinha nem Pupu por aí, se estão na fazenda do pai dela ou se arribaram para a capital. O velho Zuza fechou-se em copas, nem dá as caras na ferragem, o povo que fica boatando das suas, disso e daquilo, na vera mesmo, nem um pingo de verdade, ao que parece. Eita, povinho. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.

DITOS & DESDITOS:
[...] Quantas vezes a arte, a poesia, e até a própria filosofia não têm pintado a natureza como uma mulher de olhos vendados, pisando uma poeira de existências esmagadas? Isto seria um efeito direto da multiplicação? [...] O termo de nós próprios, o cúmulo da nossa originalidade, não é a nossa individualidade – é a nossa pessoa; e esta, em razão da estrutura evolutiva do mundo, não a podemos encontrar senão unindo-nos. [...]. O processo cósmico da personalização tem como finalidade realizar a personalização, a existência de pessoas cada vez mais pessoas, até se integrarem, sem deixar de serem pessoas, na última comunhão com a Pessoa absoluta. [...] Mas qual é, no próprio interesse da vida geral, a obra das obras humanas, senão o estabelecimento, por cada um de nós em si próprio, de um centro absolutamente original, onde o Universo se reflete de uma maneira única, inimitável: precisamente o nosso eu, a nossa personalidade? [...].
Trechos extraídos da obra O fenômeno humano (Cultrix, 1955), do filósofo, paleontólogo e teólogo francês Pierre Teilhard de Chardin (1881-1955). Veja mais aqui e aqui.

DOMÉSTICAS
O filme Domésticas (1997), de Fernando Meirelles e Nando Olival, é baseado na peça homônima de Renata Melo e conta fragmentos de histórias contadas por cinco domesticas a respeito de seu cotidiano na casa dos patrões, em suas casas, na rua, seus sonhos, crenças, valores, a dura realidade de vida na cozinha e lavandeira, enfim, contam suas desventuras em busca de futuro melhor ou da patroa perfeita, sonhos com carreira de modelo, casamento, um marido melhor, estudos. O filme aborda questões que vão desde a geografia étnica, da linguagem usada e ideologia presente, afora questões da dignidade humana e direitos humanos. Veja mais aqui.

A ESCULTURA DE VALÉRIA DELFIM
A arte da escultura, artista plástica e gestora cultural Valeria Delfim, que é graduada em Desenho e Artes Plástica pela Fundação Universidade Mineira de Artes, pós-graduada em Arte Contemporânea pela PUC-MG, participando de exposições coletivas e individuais no Brasil e no exterior. Ela também edita o blog Arte Valéria Delfim. Veja mais aqui.
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A OBRA DE JORGE DE LIMA
Uma janela aberta
e um simples rosto hirto,
e que provavelmente
nela se debruçou;
e nesse gesto puro
do rosto na janela
estava todo o poema
que ninguém escutou;
só a janela aberta
e o espaço dentro dela
que o tempo atravessou.
Poema Invenção de Orfeu – XIII, do médico, escritor, tradutor e pintor Jorge de Lima (1893-1953) aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.