segunda-feira, abril 29, 2024

SAM HARRIS, DANIELA CAMACHO, CHO NAM-JOO & CRIANÇAS PERNAMBUCANAS

 

 Imagem: Acervo ArtLAM.

Ao som do grupo instrumental MaKaMo, formado pelas instrumentistas e compositoras Moema Macêdo (bandolim), Maíra Macêdo (cavaquinho), Karol Maciel (acordeon) e Gabi Carvalho (violão).

 

UM DIA NOUTRO DE AMANHÃS & ONTENS... – Naquela do quando chove ou estia, a boia embalada pelo vaivém dos sonhos em redemoinhos trazia a surpresa da véspera pra reinvenção de outro amanhã. Nem havia senão e sem precisar o porquê dos quando nem onde as coisas do fim. Mas quem nunca tremeu diante do perigo, quem jamais se aperreou com adversidades: a felicidade urgente adoecendo cada vez mais gente, enquanto livros intactos de alta literatura na biblioteca do telecentro de Campestre são jogados no lixo das Alagoas. A indignação em dia ressoava como se tomasse vulto pelas acrobacias dos ventos ecoando Han Kang: O tempo era uma onda, quase cruel na sua implacabilidade... Então, se um doido bateu à sua porta é só atinar pro ditado do remédio de um é o outro, afora afastar todo mau olhado, com a irrecusável oportunidade de se habilitar à sabedoria e, de quebra, ganhar um salvo conduto para a sorte grande, afinal todo louco é amigo de Deus. É só voar com uns versos de Maria Negroni: A vida é uma jornada rumo ao nada e escrever é um atalho... mortalmente infinito \ sonhamos que somos... Como o nome chama as coisas é preciso ter cuidado, falar baixo para não acordá-las e saber que tudo acontece do impensável: falar pode trair a alma, como diz a lição nativa. E isso vale também para quem tem posses que vão dali pracolá e a perder de vista, mesmo que tenha perdido no tempo o que seja de dentro de si mesmo e restar só o perecível do lado de fora pra valer as rezas de infinitas velas na morte inevitável. Nunca é demais aprender com Niède Guidon: O que eu quero é olhar os outros nos olhos. É não ter que esconder nada. Tudo o que fiz aqui, procurei fazer o melhor possível... Se já perdia a conta de quantos recomeços, não será além da conta reinventar a vida uma vez mais, até que chegue a hora, quem sabe, da remissão neste primitivo tempo em que vivemos... Até mais ver.

 

OS NOMES DOS DEFINITIVOS

Imagem: Acervo ArtLAM.

Um único objeto: \ soco de palavras ilegíveis em papel branco \ carcinoma diz em letras pretas \ (… tempo parou um dois vinte e quatro segundos \ parado. tempo …) \ câncer de flor impreciso no local da língua da \ glândula parótida \ (… trezentos e dezenove segundos e assim por diante \ até o final dos números …) \ engolir saliva pela última vez. muito lentamente \ na cama do hospital está nevando \ tumor pérola milagre minúsculo \ tumor substantivo propenso à multiplicação \ como a palavra floresta \ Há uma floresta em chamas na floresta: \ flor textual ereta convallaria não morra \ parasita cefalantera sem sentido fuja da fumaça \ arraste sua coroa \ afunde a espada fugaz neste corpo para sempre \ cirurgicamente docemente \ á aberto, anestesiado em outro mundo, \ estabelecerei a ordem dos instrumentos \ diante do esplendor do sangue, as mãos dos homens são mais graciosas \ (… seis sete quando aquele pavor parcimonioso parou …) \ O perigo que não se vê não existe. até que alguém, \ no momento menos esperado, \ ordene que você coloque uma máscara que se pareça com você. \ nêutrons prótons frutos da vertiginosa \ rapidez crianças vêm até mim \ lentamente tremo e fico com o rosto muito branco \lentamente a ferida está desperta \ para o animal que estou curando não é um hábito terrestre\ —ir ao local da música para fugir do medo \ —não. música da madrugada é falsa \ Deixei-me cair na mesa \ odeio o ausente que deixou seus cavalos \ amarrados ao meu sonho \ as cordas do violino \ o colar de salamandra da enforcada \ Eu digo que a doença vai me ajudar a viver \ Eu digo que a seca contém a floresta \ gaultheria insana evergreen combate \ a catástrofe humilhação punição é felicidade \ o tumor, um choque, uma vontade de dizer coisas horríveis.

Poema da premiada poeta e tradutora mexicana Daniela Camacho, fundadora da revista El Puro Cuento e autora das obras En la punta de la lengua (2007), Aire seria (2008), Plegarias para insomnes (2008), Pasaporte (2012) e Experiencia Butoh (Amargord, 2018), entre outros.

 

NASCIDA EM 1982 – [...] O mundo mudou muito, mas as pequenas regras, contratos e costumes não, o que significa que o mundo não mudou nada. [...] As garotas burras são burras demais, as garotas inteligentes são muito espertas e as garotas comuns são muito comuns? [...] Enquanto os infratores temiam perder uma pequena parte de seus privilégios, as vítimas corriam o risco de perder tudo [...] Você tem razão. Num mundo onde os médicos podem curar o cancro e fazer transplantes de coração, não existe um único comprimido para tratar as cólicas menstruais. ‘O mundo quer que nosso útero esteja livre de drogas. Como terrenos sagrados numa floresta virgem. [...] Não sei se vou me casar ou se vou ter filhos. Ou talvez eu morra antes de fazer isso. Por que tenho que negar a mim mesmo algo que quero agora para me preparar para um futuro que pode ou não chegar? [...] cresceu ouvindo ordens para ser cautelosa, para se vestir de maneira conservadora, para ser “elegante”. Que é sua função evitar lugares, horários do dia e pessoas perigosas. A culpa é sua por não perceber e não evitar. [...] Pessoas que tomam um analgésico ao menor sinal de enxaqueca, ou que precisam de creme anestésico para remover uma verruga, exigem que as mulheres que dão à luz suportem com prazer a dor, a exaustão e o medo mortal. Como se isso fosse amor maternal. Esta ideia de “amor maternal” está se espalhando como um dogma religioso. [...] As mulheres assumem todas as tarefas menores e complicadas sem serem solicitadas, enquanto os homens nunca o fazem. Não importa se são novos ou os mais novos - eles nunca fazem nada que não lhes seja dito para fazer. Mas por que as mulheres simplesmente assumem as responsabilidades? [...]. Trechos extraídos da obra Kim Jiyoung, Born 1982 (Intrínseca, 2022), da escritora sul-coreana Cho Nam-joo.

 

ACORDANDO PARA ESPIRITUALIDADE SEM RELIGIÃONós temos uma escolha. Temos duas opções como seres humanos. Temos uma escolha entre conversação e guerra. É isso. Conversa e violência. E a fé é um obstáculo à conversa. Teologia é ignorância com asas... Pensamento do escritor, filósofo e neurocientista estadunidense Sam Harris, que na sua obra Waking Up: A Guide to Spirituality Without Religion (Simon & Schuster, 2015), expressa que:  [...] Nossas mentes são tudo o que temos. Eles são tudo o que já tivemos. E são tudo o que podemos oferecer aos outros. Isso pode não ser óbvio, especialmente quando há aspectos da sua vida que parecem precisar de melhorias – quando seus objetivos não são alcançados, ou você está lutando para encontrar uma carreira, ou tem relacionamentos que precisam ser reparados. Mas é a verdade. Cada experiência que você já teve foi moldada por sua mente. Todo relacionamento é tão bom ou tão ruim por causa das mentes envolvidas. Se você está perpetuamente irritado, deprimido, confuso e sem amor, ou se sua atenção está em outro lugar, não importa o quão bem-sucedido você se torna ou quem está em sua vida – você não desfrutará de nada disso. [...] Minha mente começa a parecer um videogame: posso jogá-lo de maneira inteligente, aprendendo mais a cada rodada, ou posso ser morto no mesmo lugar pelo mesmo monstro, repetidas vezes. [...] Se, como muitas pessoas, você tende a ser vagamente infeliz a maior parte do tempo, pode ser muito útil criar um sentimento de gratidão simplesmente contemplando todas as coisas terríveis que não aconteceram com você, ou pensando em quantas pessoas o fariam. considere suas orações respondidas se eles pudessem viver como você está agora. O simples fato de você ter tempo para ler este livro o coloca em companhia muito rara. Muitas pessoas na Terra neste momento nem conseguem imaginar a liberdade que vocês atualmente consideram garantida. [...] Por um lado, a sabedoria não é nada mais profundo do que a capacidade de seguir os próprios conselhos. [...] Não há nada passivo na atenção plena. Poderíamos até dizer que expressa um tipo específico de paixão – uma paixão por discernir o que é subjetivamente real em cada momento. É um modo de cognição que é, acima de tudo, sem distrações, receptivo e (em última análise) não-conceitual. Estar atento não é uma questão de pensar mais claramente sobre a experiência; é o ato de vivenciar com mais clareza, incluindo o surgimento dos próprios pensamentos. Mindfulness é uma consciência vívida de tudo o que aparece na mente ou no corpo – pensamentos, sensações, humores – sem se apegar ao que é agradável ou recuar diante do que é desagradável. [...] Algumas pessoas ficam satisfeitas em meio à privação e ao perigo, enquanto outras ficam infelizes, apesar de terem toda a sorte do mundo. Isto não quer dizer que as circunstâncias externas não importem. Mas é a sua mente, e não as próprias circunstâncias, que determina a qualidade da sua vida. Sua mente é a base de tudo que você vivencia e de cada contribuição que você dá à vida de outras pessoas. Diante desse fato, faz sentido treiná-lo. [...] A espiritualidade deve ser diferenciada da religião – porque pessoas de todas as religiões, e de nenhuma, tiveram os mesmos tipos de experiências espirituais [...] A forma como prestamos atenção ao momento presente determina em grande parte o caráter da nossa experiência e, portanto, a qualidade das nossas vidas. Os místicos e os contemplativos têm feito esta afirmação há muito tempo – mas um corpo crescente de investigação científica confirma-a agora. [...] todos nós buscamos a realização enquanto vivemos à mercê de experiências mutáveis. Tudo o que adquirimos na vida se dispersa. Nossos corpos envelhecem. Nossos relacionamentos desaparecem. Mesmo os prazeres mais intensos duram apenas alguns momentos. E todas as manhãs somos expulsos da cama pelos nossos pensamentos. [...] O sentimento que chamamos de “eu” é em si o produto do pensamento. Ter um ego é a sensação de estar pensando sem saber que você está pensando [...] Simplesmente aceitar que somos preguiçosos, distraídos, mesquinhos, facilmente provocados pela raiva e propensos a desperdiçar nosso tempo de maneiras das quais nos arrependeremos mais tarde não é um caminho para a felicidade. [...] Cada momento do dia – na verdade, cada momento da vida – oferece uma oportunidade de estar relaxado e receptivo ou de sofrer desnecessariamente. [...] A realidade da sua vida é sempre agora. E perceber isso, veremos, é libertador. Na verdade, acho que não há nada mais importante para entender se você quiser ser feliz neste mundo. [...]. Ele é autor das obras Free will (2012), Lying (2013) e The moral landscape: how science can determine human values (2010). Veja mais aqui.

 

POR AMOR ÀS CRIANÇAS PERNAMBUCANAS

[…] E eu fico apenas a refletir que as amizades políticas são sempre e naturalmente passageiras. Mas as que se firmaram sobre um ideal, no serviço de uma causa nobre, vão buscar, na eternidade de seus motivos, a força e a sobrevivência, que os interesses humanos não sabem e não podem encontrar [...]

Trecho da crônica Por amor às crianças pernambucanas, extraída da obra Assuntos pernambucanos (Fundarpe, 1986), do jornalista, advogado, escritor, historiador e ensaísta Barbosa Lima Sobrinho (1897-2000), tratando acerca de temas como Guerra dos Mascates, dos engenhos centrais às usinas de açúcar, a Revolução Praieira, Nelson Chaves, Antonio Carneiro Leão, a pernambucanidade de Freyre, Mauro Mota, Joaquim Nabuco, Urbano Sabino, Oliveira Lima, o socialismo de Abreu e Lima, o separatismo e a restauração pernambucana, missões de capuchinhos franceses, Capitania de Pernambuco, a nêmesis de Capistrano de Abreu, entre outros assuntos. Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.

 

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segunda-feira, abril 22, 2024

FABIENNE BRUGÈRE, WARSAN SHIRE, FATOU DIOME, ANTÔNIO MADUREIRA, POEMA & POESIA NA ESCOLA!

 

 Imagem: Acervo ArtLAM.

Ao som dos álbuns Sirens (Zone Records, 1994), Passionate Voice (2004), Rough and Steep (2006), The Ten Thousand Steps (Biomusique, 2008), Journey (Sony, 2012), Eternal Om (Hearts of Space, 2016) e Calm and Comfort (Hearts of Space, 2022), da compositora, multi-instrumentista, vocalista e produtora estadunidense de origem armênia, Lisbeth Scott. Veja mais aqui.

 

PROSCRITO MIGRANTE DO MEU PRÓPRIO CHÃO: QUANTUM MUTATUS AB ILLO... – A minha vida entre parêntesis topadas & pontapés, sequioso então pelos inumeráveis devires das ensolaradas noites dos meus crebros breus infindos. Ainda tive bons motivos para rir tão à toa, empolgado demais para baldes enormes de água fria, resiliente demais para mais uma queda, otimista demais para mais um contratempo. Mesmo assim enfrentava o implacável, como se insistentemente ouvisse Barbara Oakley: A Lei da Serendipidade: a sorte favorece quem tenta... A persistência costuma ser mais importante que a inteligência...Tantas expectativas, oh não, quantos disparates, desempenho para um inconsequente – algumas vezes mergulhado em conflitos crônicos, ônus da própria natureza. Outras, péssimo humor, pouco animador - tão desencorajadoras situações aversivas, episódios nada atraentes soavam caus&feito no plausível, quando o mais era tão falso, pretextos e comiseração. A contragosto, frustrações e deixa pra lá, mais ouvia Aniela Jaffé: O homem é a única criatura com o poder de controlar o instinto pela sua própria vontade, mas também é capaz de suprimi-lo, distorcê-lo e feri-lo - e um animal, para falar metaforicamente, nunca é tão selvagem e perigoso como quando é ferido... Ah, como urrava pelas constâncias dramáticas, outras nem lembro - também desapontei muito, confesso. Vulgaridade e a reputação quase nenhuma, anonimato esparramado, davam vida desinteressante e sem sentido. Era só o eco de Agnès Bertholet-Raffard: Somos todos vulneráveis porque todos podemos precisar de cuidados, mas, ao mesmo tempo, somos todos interdependentes porque todos beneficiamos dos bons cuidados dos outros e, para que a sociedade funcione, é importante ter cuidados... Nenhum, olvidava os que tinha, nem os dei. Um tanto descascado, ainda pueril no meio de tempestades arrebatadoras explodindo minha cabeça e o envelhecimento precoce: eu e o meu país cambaleante, quão mudado se fez, até certo ponto mais que desagradável, e sabia - a ingenuidade mata: viver mais um dia do que resta e seguir em frente. Até mais ver.

 

A CASA

Imagem: Acervo ArtLAM.

1 - A mãe diz que dentro de todas as mulheres há quartos trancados; cozinha da luxúria, \ quarto da dor, banheiro da apatia. \ Às vezes os homens vêm com chaves. \ e às vezes os homens vêm com martelos.

2 - Nin soo joog laga waayo, soo jiifso aa laga helaa, \ Eu disse Pare , disse Não e ele não ouviu.

3 - Talvez ela tenha um plano, talvez ela o leve de volta para a casa dela \ só para ele acordar horas depois em uma banheira cheia de gelo, \ com a boca seca, olhando para seu novo e elegante procedimento.

4 - Aponto para o meu corpo e digo: Ah, essa coisa velha? Não, eu apenas coloquei.

5 - Você vai comer aquilo? — digo para minha mãe, apontando para meu pai que está deitado na mesa da sala de jantar, com a boca cheia de uma maçã vermelha.

6 - Quanto maior é o meu corpo, quanto mais quartos trancados há, mais homens vêm com chaves. Anwar não foi até o fim, ainda penso no que ele poderia ter aberto dentro de mim. Basil veio e hesitou na porta por três anos. Johnny de olhos azuis veio com uma sacola com ferramentas que usara em outras mulheres: um grampo de cabelo, um frasco de alvejante, um canivete e um pote de vaselina. Yusuf gritou o nome de Deus pelo buraco da fechadura e ninguém respondeu. Alguns imploraram, alguns subiram na lateral do meu corpo em busca de uma janela, alguns disseram que estavam a caminho e não vieram.

7 - Mostre-nos na boneca onde você foi tocado, disseram. \ Eu disse que não pareço uma boneca, pareço uma casa. \ Eles disseram: Mostre-nos a casa. \ Assim: dois dedos no pote de geleia \ Assim: um cotovelo na água do banho \ Assim: uma mão na gaveta.

8 - Devo contar a vocês sobre meu primeiro amor, que encontrou um alçapão sob meu peito esquerdo há nove anos, caiu nele e não foi visto desde então. Todo \ de vez em quando sinto algo subindo pela minha coxa. Ele deveria se dar a conhecer, eu provavelmente o deixaria sair. Espero que ele não tenha \ topei com os outros, os meninos desaparecidos de cidades pequenas, com mães simpáticas, que faziam coisas ruins e se perdiam no labirinto de \ meu cabelo. Eu os trato muito bem, uma fatia de pão, se tiverem sorte, um pedaço de fruta. Exceto Johnny de olhos azuis, que arrombou minhas fechaduras e entrou. Garoto bobo, acorrentado ao porão dos meus medos, toco uma música para afogá-lo.

9 - TOC Toc. \ Quem está aí? \ Ninguém.

10 - Nas festas aponto para o meu corpo e digo: É aqui que o amor morre. Bem-vindo, entre, sinta-se em casa. Todo mundo ri, acham que estou brincando.

Poema da premiada escritora, editora e professora Somali, Warsan Shire.

 

OS VIGILANTES DE SANGOMAR - [...] Ser mãe é viver a serviço de um ser em formação, mesmo quando você não quer mais existir para si mesmo. Sem Bouba, Coumba tinha perdido a mulher que tinha sido, deixando apenas a mãe de Fadikiine para se agarrar. Ser mãe é respirar por uma vida diferente da sua, Coumba descobriu isso. [...] é o que um olhar atento pode detectar nos olhos dos homens, quando a curva dos seus ombros protege as mulheres e as crianças contra a violência do mundo. [...] Toda criança sabe que sua mãe é o mastro sólido sobre o qual erguer a esperança, quando o moral está a meio mastro. [...] A liberdade total, a autonomia absoluta que exigimos, quando acaba de lisonjear o nosso ego, de nos provar a nossa capacidade de nos responsabilizarmos, revela finalmente um sofrimento tão pesado como todas as dependências evitadas: a solidão. O que significa a liberdade, senão o nada, quando já não é relativa aos outros? O mundo se oferece, mas não abraça ninguém e não se deixa abraçar. [...]. Trechos extraídos da obra Les Veilleurs de Sangomar (Hachette, 2021), da escritora senegalesa Fatou Diome.

 

ÉTICA DO CUIDADOTodas as vidas são iguais e os mais vulneráveis precisam de atenção... Estamos num capitalismo patriarcal: a economia e a política, globalmente, estão nas mãos de uma ordem masculina até manifestações preocupantes como o questionamento do direito ao aborto nos Estados Unidos. As desigualdades de género fazem, portanto, parte desta ordem, embora desde o movimento #MeToo as mulheres tenham exigido justiça de género. A ética do cuidado questiona as razões e a história destas desigualdades, enfatizando a natureza central de atividades como o cuidado dos corpos, o trabalho emocional e a resposta às necessidades vitais. O cuidado tem valor; deve ser pago tanto quanto possível e partilhado entre homens e mulheres. As mulheres são delegadas às tarefas de cuidado porque isso lhes foi imposto ao longo da história, a ponto de fabricar a perspectiva de uma natureza feminina amorosa! Agora, ninguém, por exemplo, é mãe em nome de um instinto. Criamos papéis, binários que prejudicam a nossa vida, que poderia ser muito mais livre. Da mesma forma, criamos profissões “femininas” que são menos remuneradas porque são consideradas fáceis. No entanto, cuidar de pessoas muito idosas em lares de idosos exige conhecimentos, experiência e competências, tanto quanto o trabalho de alvenaria. A ética do cuidado reside numa atitude aberta com a perspectiva de Carol Gilligan de uma “voz diferente”, de escuta do outro, em grande parte atribuída às mulheres ao longo da história. A atenção à singularidade de uma situação complexa onde as pessoas se relacionam, reabilitando o lugar das emoções e da racionalidade dialógica, é muitas vezes desvalorizada, ao contrário de uma moralidade que exibe princípios. No entanto, é disso que precisamos hoje... Pensamento da filósofa francesa Fabienne Brugère, autora da obra L'Éthique du “care ” (PUF, 2021), considerando o cuidado como uma ética com rosto humano, contextual e renovada na abordagem da razão e dos sentimentos, na atenção ao outro, nas formas de responsabilização. A fundamentação teórica é uma antropologia da vulnerabilidade, a possibilidade de tornar audível a voz das mulheres e dos vulneráveis. Esta ética está enraizada em debates da psicologia moral, da filosofia prática, da sociologia e da política. Hoje, a transição da ética para a política se faz graças à exigência do cuidado como filosofia social, voltada para enfrentar um ciclo político de desregulamentação e a crise dos estados de bem-estar social, razão pela qual as filosofias do cuidado apreendem através das vidas comuns ligadas ao cuidado, estes exércitos de populações invisibilizadas e marginalizadas na atual estrutura do mercado. Cuidado, ou como entender a interdependência e as dependências hoje, nas relações baseadas na solidariedade e na partilha de recursos.

 

COMPOSIÇÕES PARA VIOLÃO, DE ANTONIO MADUREIRA.

[...] Há artistas cuja música reverbera, de forma amplificada, muito mais que o significado isolado das notas e dos ritmos. Eles não seguem uma tendência, eles criam valores. Elas carregam no âmago de sua criação toda uma cultura, uma história, um modo de vida, um anseio expresso por um povo. Eles criam vínculos entre o universal e o regional, entre o rural e o urbano, entre uma cultura milenar e o hoje [...].

Trecho da apresentação do violonista, regente, escritor, comunicador e professor, Fabio Zanon, para o songbook Composições para violão Antonio Madureira (Autor, 2016), do músico Antônio Madureira, vinculado ao Movimento Armorial e integrante do Quinteto Armorial. Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.

 

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segunda-feira, abril 15, 2024

ALICIA PULEO, CRISTINA GÁLVEZ MARTOS, TATYANA TOLSTAYA & BARRO DE DONA NICE

 

 Imagem: Acervo ArtLAM.

Ao som dos álbuns Britten Piano Concerto (1990), MacGregor on Broadway (1991), Outside in Pianist (1998), Damba Moon (2001), Neural Circuits (2002), Quiet Music Sound Circus (2004) e Messiaen: Vingt Regards/Quatuor pour la fin du temps/Harawi (2010), da pianista, maestro e compositora britânica Joanna MacGregor. Veja mais aqui.

 

RENASCER DA MEMÓRIA, REENCONTRO NO ACERVO DE EMOÇÕES... - Nasci entre um rio e um sorriso de mulher. A vida era branda então e o Sol nascia por trás do morro para me ensinar a não ter medo da escuridão. Estradas se fizeram com todas léguas além do quintal e eu crescia no mundo pelos aromas do lugar ideal para se viver e fruir como se fosse invisível. Entrava dia com noite no meio de outro. Paula Fox ao ouvido: Ser humano é estar em uma história... A vida é se acostumar com o que você não está acostumado... O que tivera de ser e não fui, saí do traçado. Nunca tive tempo pra hesitações nem penitências. Sempre prestei muita atenção às coisas – as que são parte de nós e somos, apesar de não ouvir os que falavam, se é que diziam alguma coisa: olhos proutro lado, desde os de tantos de não sei quando, lonjura a perder de vista: era como se estisse diante dos perós dagora com seus perdigotos & malefícios. Advertia Louise Brooks: Não me desculpo com a habitual fuga de “não tentar”. Eu tentei de todo o coração... E só me senti verdadeiramente vivo e pela primeira vez quando agitou o maracá do cacique Sotero Kanindé contando da onça da Terra da Gia. E pisamos a areia macia Kapinawá do vale do Catimbau, caboco do mato pela furna do Furengo e com gente de Mina Grande, Massaranduba, Baixa da Palmeira, Malhador. O coro era um só: Eu sou caboclinho / eu só visto pena / eu só vivo na terra / para beber jurema!.. E dançamos com a Índia do Ozi. Sou Kadu na Retomada de Escada, sou Anaíra da Mulher Marcolina Macambira da poesia de José do Egito. Sou multicor Fino Barro e Jahbes de Rio Formoso, José Ayres da Vitória de Antão, seu Zito de Galileia. Sou Fervedouro que resiste em Jaqueira com a CPT-Mata Sul, o Memorial Cigano, o sarau do Nós por Nós – e Alexandre da Escola Livre sacou Nietzsche da bisaca: A arte existe para que a realidade não nos destrua... Toré! Toré nas poses pros cliques de Zzui, como se fosse uma festa pictórica do Bajado no cordão Fulni-ô, Kambiwá, Xucuru, Truká, Atikum, Pipipã, Pankararu, Tuxá. Arreia & Toré! Lá pras tantas todos se foram e mais da metade de mim foi embora: a minhalma indiafro, negríndia. E a gente precisava saber mais quem somos e onde estamos, o que temos e o que fazemos, como se dissesse Julia Kristeva: O amor é o tempo e o espaço onde “eu” me dou o direito de ser extraordinário. O que podia ser do que já fora soçobrava e mais me exauria, a memória trouxe de volta malunguinho: como eu queria que não acabasse amanhã nem depois nem nunca mais, já era noite pro adeus, fui embora com três folhas ao vento e uma canção no peito. Até mais ver.

 

UM PAÍS

Imagem: Acervo ArtLAM.

Um país é sempre uma ilha que você carrega: o contorno dos seus limites que são seus. Cegueira para o que você não entende; silêncio pelo que não entendem sobre você. \ É uma pelagem azul ou laranja que recebe os escassos raios de sol; a atmosfera – um lugar é sempre a singularidade da sua luz. \ Um lugar é cada uma de nossas mães. Nossa pedra de demolição dia e noite: deixe a mãe. \ É um aglomerado de passado vivo, preso como a longa cauda de um animal pré-histórico, é um presente muito maior do que podemos perceber. \ É uma guerra invisível e silenciosa que acontece enquanto você olha pela janela do transporte público; \ É uma guerra interior. \ É esquecer a fórmula para fazer qualquer coisa. \ Um país é uma esquina mil vezes pisada, cuja forma você também inscreveu, com manchas de fuligem e óleo. É também um tipo de pássaro, uma verdura. \ Tudo isso acontece quando você fecha os olhos. \ É não prestar atenção em que idades. \ Cada perda é um país, cada ser é uma nação inteira, cada ente querido é um lugar onde você cresceu, um território infinito em seus símbolos. \ Um país é um lugar que nunca mais é o mesmo; novos rostos e gestos. Pessoas que nascem, pessoas que morrem. Um círculo que se fecha com você lá fora.

Poema da escritora venezuelana Cristina Gálvez Martos, autora de obras como Psicopompa (Monte Ávila, 2015), Bicorne (Casa das Letras Andrés Bello, 2016), Fauna de Cal (Casa dos Escritores do Uruguai, 2020), Animal mais escuro (Fundarte, 2022) e Irmã amarga (LP5, 2024).

 

O LINCE - […] Você, livro! Você é o único que não enganará, não atacará, não insultará, não abandonará! Você fica quieto - mas ri, grita e canta: você é obediente - mas surpreende, provoca e seduz; você é pequeno, mas contém inúmeras pessoas. Nada além de um punhado de letras, só isso, mas se você quiser, você pode virar cabeças, confundir, girar, nublar, fazer lágrimas brotarem nos olhos, tirar o fôlego, toda a alma se agitará ao vento como um tela, subirá em ondas e baterá suas asas! [...] um livro é um amigo delicado, um pássaro branco, um ser primoroso, com medo de água. Coisas queridas! Com medo da água, do fogo, Eles tremem ao vento. Dedos humanos desajeitados e grosseiros deixam hematomas que nunca desaparecerão! Nunca! Algumas pessoas tocam nos livros sem lavar as mãos! Alguns sublinham coisas com tinta! Alguns até arrancam páginas! [...] É para isso que servem os poemas, então você não entende nada. [...] O mundo pode perecer, mas o moedor de carne é indestrutível. [...] Você lê, move os lábios, descobre as palavras, e é como se você estivesse em dois lugares ao mesmo tempo: você está sentado ou deitado com as pernas dobradas, a mão tateando na tigela, mas você pode ver diferente mundos, mundos distantes que talvez nunca tenham existido, mas que ainda parecem reais. Você corre, navega ou corre de trenó - você está fugindo de alguém, ou você mesmo decidiu atacar - seu coração bate forte, a vida voa e é maravilhoso: você pode viver tantas vidas diferentes quantas houver. livros para ler. [...] Eu só queria livros - nada mais - só livros, só palavras, nunca foram nada além de palavras - dê-me, não tenho nenhum! Olha, eu não tenho nenhum! Veja, estou nu, descalço, estou diante de você – nada nos bolsos da calça, nada debaixo da camisa ou debaixo do braço! Eles não estão presos na minha barba! Por dentro — vejam — também não há nada lá dentro — tudo foi virado do avesso, não há nada lá! Apenas coragem! Estou com fome! Estou atormentado!... O que você quer dizer com não há nada? Então como você pode falar e chorar, com quais palavras você tem medo, quais você pronuncia durante o sono? Os gritos noturnos não vagam dentro de você, um murmúrio estrondoso do crepúsculo, um grito fresco da manhã? Aí estão as palavras – você não as reconhece? Eles estão se contorcendo dentro de você, tentando sair! Ali estão eles! Sao seus! Da madeira, da pedra, das raízes, crescendo em força, um mugido surdo e um gemido nas entranhas estão tentando sair; um pedaço de língua se enrola, as narinas rasgadas incham de tormento. É assim que os enfeitiçados, espancados e retorcidos fungam com um lamento sarnento, os olhos brancos e fervidos trancados em armários, a veia arrancada, a espinha dorsal roída; isso mesmo, é assim que seu pushkin se contorce, ou mushkin - o que há em meu nome para você? - pushkin-mushkin, jogado no morro como um ídolo negro peludo, para sempre achatado pelas cercas, até as orelhas em di, o pushkin toco, sem pernas, seis dedos, mordendo a língua, nariz no peito - e a cabeça não pode ser levantada! - Pushkin, arrancando a camisa envenenada, cordas, correntes, cafetã, laço, aquele peso de madeira: deixe-me sair , deixe-me sair! O que está em meu nome para você? Por que o vento gira na ravina? Quantas estradas um homem deve percorrer? O que você quer, velho? Por que você me incomoda? Meu Senhor, qual é o problema? Tédio, ah, Nin! Pegue as tintas e chore! Abra bem a masmorra! Estou aqui! Eu sou inocente! Estou com você! Estou com você! [...]. Trechos extraídos da obra The Slynx (Houghton Mifflin, 2002), da escritora russa Tatyana Tolstaya.

 

ECOFEMINISMO - Os problemas das mulheres são de várias ordens: de acesso aos recursos, que em cifras globais mundiais se dá de forma absolutamente inferior aos homens, de reconhecimento, por que a cultura ainda tem um traço masculino muito profundo, de violência de gênero, porque o número de mulheres vítimas de violência e assassinadas é enorme em todo o mundo, ainda que seja pior em países com problemas econômicos, de representação política. Todos estes problemas estão ligados uns aos outros por laços e por causas bidirecionais. Em uma palavra, se retroalimentam. Quanto maior dificuldade de alcançar um salário digno, mais as mulheres terão que suportar a violência de gênero e menos poderão ter tempo de corrigir e transformar a cultura. Por sua vez, se a cultura seguir repetindo os mesmos tópicos patriarcais, mais dificuldade teremos para fazer com que diminua a violência de gênero, para aumentar nosso reconhecimento social, para alcançar postos de decisão política e conseguir trabalho com salários dignos. A situação das mulheres, que são a metade da humanidade, é uma questão de justiça social que se justifica por si só. Se a isso acrescentarmos que a inclusão da voz das mulheres pode melhorar a sociedade em seu conjunto, teremos uma razão a mais para apoiar velhos e novos pontos de nossa agenda... Pensamento da filósofa argentina radicada na Espanha, Alicia Puleo, que em sua obra Ecofeminismo para outro mundo possível (Cátedra, 2011) expressa: [...] A minha posição está enraizada na tradição esclarecida de análise de doutrinas e práticas opressivas. Reivindica a igualdade e a autonomia das mulheres, com especial atenção ao reconhecimento dos direitos sexuais e reprodutivos que, em algumas formas de ecofeminismo, podem ser corroídos em nome da santidade da vida. Aceita os benefícios do conhecimento científico e tecnológico com prudência e atitude vigilante. Promove a universalização dos valores da ética do cuidado, evitando fazer das mulheres as salvadoras do planeta. Propõe a aprendizagem intercultural sem prejudicar os direitos humanos das mulheres e afirma a unidade e a continuidade da Natureza a partir do conhecimento evolutivo, do sentimento de compaixão e da vontade de justiça para com os animais não humanos, que o Outro ignorou e calou, mas capaz de ansiar, amoroso e sofredor. [...]. Ela também é autora de outras obras: Como ler a Schopenhauer (Júcar, 1991), Dialética da sexualidade. Gênero e sexo na Filosofia Contemporânea (Cátedra, 1992), A ilustração esquecida: La polémica de los sexos en el siglo XVIII (Antropos, 1993), entre outras.

 

DO PÓ AO BARRO...

O que é essencialmente humano não tem data, permanece...

Epígrafe do poeta e compositor Fernando Brant (1946-2015), extraída do catálogo Do pó ao Barro (2012), com a arte da artesã Dona Nice – Eunice Clotilde do Nascimento Oliveira, curadoria de Beto Normal e fotografia de Rachel Ellis. Veja mais aqui e aqui.

 

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