segunda-feira, abril 15, 2024

ALICIA PULEO, CRISTINA GÁLVEZ MARTOS, TATYANA TOLSTAYA & BARRO DE DONA NICE

 

 Imagem: Acervo ArtLAM.

Ao som dos álbuns Britten Piano Concerto (1990), MacGregor on Broadway (1991), Outside in Pianist (1998), Damba Moon (2001), Neural Circuits (2002), Quiet Music Sound Circus (2004) e Messiaen: Vingt Regards/Quatuor pour la fin du temps/Harawi (2010), da pianista, maestro e compositora britânica Joanna MacGregor. Veja mais aqui.

 

RENASCER DA MEMÓRIA, REENCONTRO NO ACERVO DE EMOÇÕES... - Nasci entre um rio e um sorriso de mulher. A vida era branda então e o Sol nascia por trás do morro para me ensinar a não ter medo da escuridão. Estradas se fizeram com todas léguas além do quintal e eu crescia no mundo pelos aromas do lugar ideal para se viver e fruir como se fosse invisível. Entrava dia com noite no meio de outro. Paula Fox ao ouvido: Ser humano é estar em uma história... A vida é se acostumar com o que você não está acostumado... O que tivera de ser e não fui, saí do traçado. Nunca tive tempo pra hesitações nem penitências. Sempre prestei muita atenção às coisas – as que são parte de nós e somos, apesar de não ouvir os que falavam, se é que diziam alguma coisa: olhos proutro lado, desde os de tantos de não sei quando, lonjura a perder de vista: era como se estisse diante dos perós dagora com seus perdigotos & malefícios. Advertia Louise Brooks: Não me desculpo com a habitual fuga de “não tentar”. Eu tentei de todo o coração... E só me senti verdadeiramente vivo e pela primeira vez quando agitou o maracá do cacique Sotero Kanindé contando da onça da Terra da Gia. E pisamos a areia macia Kapinawá do vale do Catimbau, caboco do mato pela furna do Furengo e com gente de Mina Grande, Massaranduba, Baixa da Palmeira, Malhador. O coro era um só: Eu sou caboclinho / eu só visto pena / eu só vivo na terra / para beber jurema!.. E dançamos com a Índia do Ozi. Sou Kadu na Retomada de Escada, sou Anaíra da Mulher Marcolina Macambira da poesia de José do Egito. Sou multicor Fino Barro e Jahbes de Rio Formoso, José Ayres da Vitória de Antão, seu Zito de Galileia. Sou Fervedouro que resiste em Jaqueira com a CPT-Mata Sul, o Memorial Cigano, o sarau do Nós por Nós – e Alexandre da Escola Livre sacou Nietzsche da bisaca: A arte existe para que a realidade não nos destrua... Toré! Toré nas poses pros cliques de Zzui, como se fosse uma festa pictórica do Bajado no cordão Fulni-ô, Kambiwá, Xucuru, Truká, Atikum, Pipipã, Pankararu, Tuxá. Arreia & Toré! Lá pras tantas todos se foram e mais da metade de mim foi embora: a minhalma indiafro, negríndia. E a gente precisava saber mais quem somos e onde estamos, o que temos e o que fazemos, como se dissesse Julia Kristeva: O amor é o tempo e o espaço onde “eu” me dou o direito de ser extraordinário. O que podia ser do que já fora soçobrava e mais me exauria, a memória trouxe de volta malunguinho: como eu queria que não acabasse amanhã nem depois nem nunca mais, já era noite pro adeus, fui embora com três folhas ao vento e uma canção no peito. Até mais ver.

 

UM PAÍS

Imagem: Acervo ArtLAM.

Um país é sempre uma ilha que você carrega: o contorno dos seus limites que são seus. Cegueira para o que você não entende; silêncio pelo que não entendem sobre você. \ É uma pelagem azul ou laranja que recebe os escassos raios de sol; a atmosfera – um lugar é sempre a singularidade da sua luz. \ Um lugar é cada uma de nossas mães. Nossa pedra de demolição dia e noite: deixe a mãe. \ É um aglomerado de passado vivo, preso como a longa cauda de um animal pré-histórico, é um presente muito maior do que podemos perceber. \ É uma guerra invisível e silenciosa que acontece enquanto você olha pela janela do transporte público; \ É uma guerra interior. \ É esquecer a fórmula para fazer qualquer coisa. \ Um país é uma esquina mil vezes pisada, cuja forma você também inscreveu, com manchas de fuligem e óleo. É também um tipo de pássaro, uma verdura. \ Tudo isso acontece quando você fecha os olhos. \ É não prestar atenção em que idades. \ Cada perda é um país, cada ser é uma nação inteira, cada ente querido é um lugar onde você cresceu, um território infinito em seus símbolos. \ Um país é um lugar que nunca mais é o mesmo; novos rostos e gestos. Pessoas que nascem, pessoas que morrem. Um círculo que se fecha com você lá fora.

Poema da escritora venezuelana Cristina Gálvez Martos, autora de obras como Psicopompa (Monte Ávila, 2015), Bicorne (Casa das Letras Andrés Bello, 2016), Fauna de Cal (Casa dos Escritores do Uruguai, 2020), Animal mais escuro (Fundarte, 2022) e Irmã amarga (LP5, 2024).

 

O LINCE - […] Você, livro! Você é o único que não enganará, não atacará, não insultará, não abandonará! Você fica quieto - mas ri, grita e canta: você é obediente - mas surpreende, provoca e seduz; você é pequeno, mas contém inúmeras pessoas. Nada além de um punhado de letras, só isso, mas se você quiser, você pode virar cabeças, confundir, girar, nublar, fazer lágrimas brotarem nos olhos, tirar o fôlego, toda a alma se agitará ao vento como um tela, subirá em ondas e baterá suas asas! [...] um livro é um amigo delicado, um pássaro branco, um ser primoroso, com medo de água. Coisas queridas! Com medo da água, do fogo, Eles tremem ao vento. Dedos humanos desajeitados e grosseiros deixam hematomas que nunca desaparecerão! Nunca! Algumas pessoas tocam nos livros sem lavar as mãos! Alguns sublinham coisas com tinta! Alguns até arrancam páginas! [...] É para isso que servem os poemas, então você não entende nada. [...] O mundo pode perecer, mas o moedor de carne é indestrutível. [...] Você lê, move os lábios, descobre as palavras, e é como se você estivesse em dois lugares ao mesmo tempo: você está sentado ou deitado com as pernas dobradas, a mão tateando na tigela, mas você pode ver diferente mundos, mundos distantes que talvez nunca tenham existido, mas que ainda parecem reais. Você corre, navega ou corre de trenó - você está fugindo de alguém, ou você mesmo decidiu atacar - seu coração bate forte, a vida voa e é maravilhoso: você pode viver tantas vidas diferentes quantas houver. livros para ler. [...] Eu só queria livros - nada mais - só livros, só palavras, nunca foram nada além de palavras - dê-me, não tenho nenhum! Olha, eu não tenho nenhum! Veja, estou nu, descalço, estou diante de você – nada nos bolsos da calça, nada debaixo da camisa ou debaixo do braço! Eles não estão presos na minha barba! Por dentro — vejam — também não há nada lá dentro — tudo foi virado do avesso, não há nada lá! Apenas coragem! Estou com fome! Estou atormentado!... O que você quer dizer com não há nada? Então como você pode falar e chorar, com quais palavras você tem medo, quais você pronuncia durante o sono? Os gritos noturnos não vagam dentro de você, um murmúrio estrondoso do crepúsculo, um grito fresco da manhã? Aí estão as palavras – você não as reconhece? Eles estão se contorcendo dentro de você, tentando sair! Ali estão eles! Sao seus! Da madeira, da pedra, das raízes, crescendo em força, um mugido surdo e um gemido nas entranhas estão tentando sair; um pedaço de língua se enrola, as narinas rasgadas incham de tormento. É assim que os enfeitiçados, espancados e retorcidos fungam com um lamento sarnento, os olhos brancos e fervidos trancados em armários, a veia arrancada, a espinha dorsal roída; isso mesmo, é assim que seu pushkin se contorce, ou mushkin - o que há em meu nome para você? - pushkin-mushkin, jogado no morro como um ídolo negro peludo, para sempre achatado pelas cercas, até as orelhas em di, o pushkin toco, sem pernas, seis dedos, mordendo a língua, nariz no peito - e a cabeça não pode ser levantada! - Pushkin, arrancando a camisa envenenada, cordas, correntes, cafetã, laço, aquele peso de madeira: deixe-me sair , deixe-me sair! O que está em meu nome para você? Por que o vento gira na ravina? Quantas estradas um homem deve percorrer? O que você quer, velho? Por que você me incomoda? Meu Senhor, qual é o problema? Tédio, ah, Nin! Pegue as tintas e chore! Abra bem a masmorra! Estou aqui! Eu sou inocente! Estou com você! Estou com você! [...]. Trechos extraídos da obra The Slynx (Houghton Mifflin, 2002), da escritora russa Tatyana Tolstaya.

 

ECOFEMINISMO - Os problemas das mulheres são de várias ordens: de acesso aos recursos, que em cifras globais mundiais se dá de forma absolutamente inferior aos homens, de reconhecimento, por que a cultura ainda tem um traço masculino muito profundo, de violência de gênero, porque o número de mulheres vítimas de violência e assassinadas é enorme em todo o mundo, ainda que seja pior em países com problemas econômicos, de representação política. Todos estes problemas estão ligados uns aos outros por laços e por causas bidirecionais. Em uma palavra, se retroalimentam. Quanto maior dificuldade de alcançar um salário digno, mais as mulheres terão que suportar a violência de gênero e menos poderão ter tempo de corrigir e transformar a cultura. Por sua vez, se a cultura seguir repetindo os mesmos tópicos patriarcais, mais dificuldade teremos para fazer com que diminua a violência de gênero, para aumentar nosso reconhecimento social, para alcançar postos de decisão política e conseguir trabalho com salários dignos. A situação das mulheres, que são a metade da humanidade, é uma questão de justiça social que se justifica por si só. Se a isso acrescentarmos que a inclusão da voz das mulheres pode melhorar a sociedade em seu conjunto, teremos uma razão a mais para apoiar velhos e novos pontos de nossa agenda... Pensamento da filósofa argentina radicada na Espanha, Alicia Puleo, que em sua obra Ecofeminismo para outro mundo possível (Cátedra, 2011) expressa: [...] A minha posição está enraizada na tradição esclarecida de análise de doutrinas e práticas opressivas. Reivindica a igualdade e a autonomia das mulheres, com especial atenção ao reconhecimento dos direitos sexuais e reprodutivos que, em algumas formas de ecofeminismo, podem ser corroídos em nome da santidade da vida. Aceita os benefícios do conhecimento científico e tecnológico com prudência e atitude vigilante. Promove a universalização dos valores da ética do cuidado, evitando fazer das mulheres as salvadoras do planeta. Propõe a aprendizagem intercultural sem prejudicar os direitos humanos das mulheres e afirma a unidade e a continuidade da Natureza a partir do conhecimento evolutivo, do sentimento de compaixão e da vontade de justiça para com os animais não humanos, que o Outro ignorou e calou, mas capaz de ansiar, amoroso e sofredor. [...]. Ela também é autora de outras obras: Como ler a Schopenhauer (Júcar, 1991), Dialética da sexualidade. Gênero e sexo na Filosofia Contemporânea (Cátedra, 1992), A ilustração esquecida: La polémica de los sexos en el siglo XVIII (Antropos, 1993), entre outras.

 

DO PÓ AO BARRO...

O que é essencialmente humano não tem data, permanece...

Epígrafe do poeta e compositor Fernando Brant (1946-2015), extraída do catálogo Do pó ao Barro (2012), com a arte da artesã Dona Nice – Eunice Clotilde do Nascimento Oliveira, curadoria de Beto Normal e fotografia de Rachel Ellis. Veja mais aqui e aqui.

 

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