Imagem: Acervo ArtLAM.
Ao som do Concerto Elegia (Elegia,
Solilóquio e Final) para Flauta e orquestra de cordas (2015), da compositora
estadunidense Ellen Taaffe Zwilich. Veja mais aqui e aqui.
ENTRELINHAS DO PAIDEUMA –
Na travessia do dia nada mais que noitescuridão, nem nada lisonjeiro, por
enquanto, acredito: o aversivo não dura a vida inteira, impossível. Uma estrela
solitária pisca pra mim na lonjura da galáxia e quase nem vejo. O surpreendente
é que ela desce vertiginosamente e, antes de espatifar na queda, levita qual águia
bicéfala rondando meus domínios. Depois de volteios e flertes ela aterrissa elegantemente.
Aos poucos se transforma na linda e nua Catxerê. Aproxima-se a me dizer
que traz revelações poimândricas – ali eu me via atordoado com aquela chegada, parecia
mais que era eu Asclépio insone nos confins de tudo. Passou-me um volume e logo
abriu para me mostrar a folha de rosto na qual estava impresso no centro o
quadrado sator em alto relevo. Mencionou tratar-se de textos do Ayvú
rapyta. Fitei-a e voltei para a caligrafia
colorida dos escritos ininteligíveis: estava em bustrofédon, salientou receptiva.
Diante da minha interrogação a respeito, senti-me numa viagem noética de Stephan Dédalus
errante numa Dublin inexistente, como um retrato de Telêmaco apagado da
Odisseia, ou imprudente Ícaro a confrontar o labirinto do pai na vez de ir
embora e no meio de um diário inquisidor de quem esquecera as lições de Frobenius,
em total apostasia para distinguir o responsável pela desgraça humana se não o
próprio. Ouvi furioso Hamlet: a racionalidade é covardia. Ela apenas me
olhava e eu sabia: os mortos clamavam por justiça no buraco azul de Belize. Era
como se ela me interrogasse de quem ainda hoje olha pro céu quando não o umbigo
altivo, se estava selado o divórcio com o divino e que todos erramos como quem
descura da vida. Não via salvação alguma, sentia-me um mentiroso contingente
que singrava o tempo ao lado dela com o blues de Crumb: porque haverá
amanhã mesmo no meio da maior celebração da dança da morte pelas redondezas dos
paradoxos! Ela parecia me entender e lia minha revolta em meus pensamentos: Ah,
seres permeáveis olvidam a alquimia fogáguas, um tanto desolador por tão
sombrio. Sim, mas ela sabia de mim: como dois e dois são seis já sou sete vezes
noves fora um! Colherei o que semeei, pelo menos. Onde o problema se não em nós
mesmos: estragamos tudo, emporcalhamos o planeta, desgraçamos a vida. Eu sei: tudo
por fazer. Sim. Estendeu-me as mãos e sorriu, era apenas uma estrela e me
entregou a luz possível. Até mais ver.
DITOS & DESDITOS
Imagem: Acervo ArtLAM.
O desejo é
uma coisa irracional pela qual você sempre tem que pagar um preço alto. Felizmente,
a natureza me dotou de uma curiosidade irracional, mesmo para as coisas mais
triviais. Isso me salva. A curiosidade é a única coisa que me mantém à tona.
Todo o resto flui para mim. Ah! E vocação. Não sei se conseguiria viver sem
ela. Há uma grande beleza na deterioração física. Você nem sempre será jovem,
digo por experiência própria. Dor e vergonha também são uma prisão.
Pensamento
do cineasta Pedro Almodóvar. Veja mais aqui,
aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.
SOZINHOS JUNTOS – […] Esperamos mais da tecnologia e menos
uns dos outros. […] As mensagens de texto oferecem a quantidade certa de
acesso, a quantidade certa de controle. Ela é uma Cachinhos Dourados moderna: para ela, enviar mensagens de texto
coloca as pessoas nem muito perto, nem muito longe, mas na distância certa. O mundo agora está cheio de
Cachinhos Dourados modernos, pessoas que se confortam em estar em contato com
muitas pessoas que também mantêm afastadas. [...]. Trechos extraídos da obra Alone Together: Why We Expect
More from Technology and Less from Each Other (Basic Books, 2012), da socióloga, psicóloga e
psicanalisya estadunidense Sherry
Turkle, autora de obras
como The Second Self (1984), Life on the Screen (1995) e Reclaming
Conversation (2015). Dela a expressão: Os relacionamentos humanos são ricos, confusos e
exigentes. E nós os
limpamos com tecnologia. Mensagens
de texto, e-mail, postagem, todas essas coisas nos permitem apresentar o eu
como queremos ser. Podemos
editar, e isso significa que podemos deletar, e isso significa que podemos
retocar, o rosto, a voz, a carne, o corpo -- nem pouco, nem muito, apenas certo...
COMO SER UMA MULHER
- [...] Precisamos recuperar a palavra
'feminismo'. Precisamos muito da palavra 'feminismo' de volta. Quando as
estatísticas dizem que apenas 29% das mulheres americanas se descreveriam como
feministas - e apenas 42% das mulheres britânicas - eu costumava pensar: o que
vocês acham que é o feminismo, senhoras? Que parte da 'libertação para as
mulheres' não é para você? É liberdade de voto? O direito de não ser
propriedade do homem com quem você se casou? A campanha pela igualdade
salarial? 'Vogue' de Madonna? Jeans? Toda aquela merda boa TE DEU NERVOSO? Ou
você estava apenas BÊBADA NO MOMENTO DA PESQUISA? [...] Não consigo entender os argumentos antiaborto centrados na santidade da
vida. Como espécie, demonstramos de forma
bastante abrangente que não acreditamos na santidade da vida. A aceitação indiferente da guerra,
fome, epidemia, dor e pobreza ao longo da vida nos mostra que, não importa o
que digamos a nós mesmos, fizemos apenas o mais débil dos esforços para
realmente tratar a vida humana como sagrada. [...] Quando uma mulher diz:
'Não tenho nada para vestir!', o que ela realmente quer dizer é: 'Não há nada
aqui para quem eu deveria ser hoje. [...].
Trechos extraídos da obra How to Be a Woman (Harper Perennial, 2012), da
escritora, jornalista e radialista inglesa Caitlin
Moran.
IN THIS PLACE
(Imagem:
Acervo ArtLAM)
Há um
poema neste lugar— \ nos passos nos corredores \ na batida silenciosa dos
assentos.\ É aqui, na cortina do dia, \ onde a América escreve uma letra \ você
deve sussurrar para dizer.
Há um poema
neste lugar—\ na pesada graça, \ a face alinhada deste nobre edifício, \ coleções
queimadas e renascidas duas vezes.
Há um
poema na Copley Square de Boston \ onde cantos de protesto \ rasgar o ar\ como
lençóis de chuva, \ onde o amor de muitos\ engole o ódio de poucos.
Há um
poema em Charlottesville \ onde tochas tiki encadeiam um anel de chamas \ apertado
em volta do pulso da noite \ onde homens tão brancos que brilham em azul— \ parecem
estátuas \ onde os homens amontoam aquela longa queima de cera \ cada vez mais
alto \ onde Heather Heyer \ floresce para sempre em um prado de resistência.
Há um
poema no grande gigante adormecido \ do Lago Michigan, levantando
desafiadoramente \ sua grande cabeça azul para Milwaukee e Chicago— \ um poema
iniciado há muito tempo, queimado em solo congelado, \ desfilando para cima e
brilhando.
Há um
poema na Flórida, no leste do Texas \ onde as ruas incham em um nexo \ de rios,
vacas flutuando como bóias manchadas no marrom, \ onde a coragem agora é tão
comum \ que Jesus Contreras, de 23 anos, resgata pessoas de enchentes.
Há um
poema em Los Angeles \ bocejando como a maré do Pacífico \ onde uma mãe
solteira sufoca \ em uma sala de aula sem janelas, ensinando \ estudantes
negros e pardos em Watts \ para soletrar seus pensamentos \ para que sua filha
possa escrever \ este poema para você.
Há uma
letra na Califórnia \ onde milhares de estudantes marcham por blocos, \ sem
documentos e sem medo; \ onde minha amiga Rosa encontra o poder de florescer \ em
um impasse, seu espírito é o alicerce de sua comunidade. \ Ela sabe que a esperança
é como um teimoso \ navio segurando uma doca, \ uma verdade: que você não pode
parar um sonhador \ ou derrubar um sonho. Como isso não poderia ser a cidade
dela \ sua nação \ nosso país \ nossa América, \ nossa letra americana para
escrever— \ um poema do povo, dos pobres, \ o protestante, o muçulmano, o
judeu, \ o nativo, o imigrante, \ o preto, o moreno, o cego, o bravo, \ os
indocumentados e implacáveis, \ a mulher, o homem, o não-binário, \ o branco, o
trans, \ o aliado de todos os itens acima \ e mais? Os tiranos temem o poeta. \
Agora que sabemos disso \ não podemos explodi-lo. \ Nós devemos isso \ para
mostrar \ não diminua isso \ Apesar disso \ dói para costurar \ quando o mundo
\ saias abaixo dela. \ Ter esperança- \ devemos concedê-lo \ como um pavio no
poeta \ para que cresça, iluminada, \ trazendo com ele \ histórias para
reescrever— \ a história de uma cidade do Texas esgotada, mas não derrotada \ uma
história escrita que não precisa ser repetida \ uma nação composta, mas ainda
não concluída.
Há um
poema neste lugar— \ um poema na América \ um poeta em cada americano \ que
reescreve esta nação, que conta \ uma história digna de ser contada neste
peixinho de uma terra \ para insuflar esperança num palimpsesto do tempo— \ um
poeta em cada americano \ quem vê que nosso poema escrito \ não significa o fim
do nosso poema.
Há um
lugar onde este poema habita— \ é aqui, é agora, na canção amarela do sino da
aurora \ onde escrevemos uma letra americana \ estamos apenas começando a
contar.
Poema da
poeta estadunidense Amanda Gorman.
A PERMANÊNCIA
DA VOZ – [...] Devido a um preconceito há vários séculos arraigado nas mentalidades e no
gosto do Ocidente, só admitimos os produtos da arte e da língua sob forma
escrita, abrindo uma única exceção para o teatro [...]. Trecho
extraído da obra A Permanência da Voz (O Correio/FGV, outubro 1985), do
historiador, linguista e medievalista suíço Paul Zumthor (1915-1995).
O PARTIDÁRIO – [...] Foi tremendamente emocionante e
comovente marchar escada abaixo naquela suspensão de partidarismo. Johnny sentiu-se como um padre
católico à paisana ou um militar à paisana pode sentir: as armas racionalmente
escondidas sob o vestido, o sinal estava sempre sobre ele: partidário in
aeternum [...] Espancado. Eu amo homens espancados. [...] Então a onda de medo da
batalha repensada subiu por sua espinha, longa e lenta. [...]. Trechos
extraídos da obra Il Partigiano
Johnny (Einaudi, 2014),
do escritor italiano Giuseppe Fenoglio (1922-1963). Veja mais
aqui.
VALUNA:
AGRESTINA
(Imagem:
Acervo ArtLAM).
Passageiro
do tempo noitedia pelo que inexistia e não, outonos a mais e volta ao mundo, as
raízes do chão e do céu, pés e cabelos, dos tempos da seca devastadora que
jorrava o Bebedouro e os milagres da talha de Santo Antônio...
Homenagem
ao Município de Agrestina – Pernambuco. Veja mais aqui, aqui, aqui,
aqui, aqui e aqui.