segunda-feira, setembro 01, 2008

SADE, GERTRUDE STEIN, DIDI-HUBERMAN, BHABHA, CARLO CARRÀ, VIVIANE MOSÉ, THOMAS BAK, CORDEL DO GETÚLIO & COISO REI

Arte do pintor italiano Carlo Carrà (1881-1966)

COISO REI, O AUTO DO COISONÁRIO – ATO 1 – CENA 1: ZÉ COISO VÊ A COISA – Lá ia Zé Coiso aos assobios numa tarde ensolarada, puxando da sua inseparável jumentinha Bisquí e o que restou do seu idílio com o abastado Crisipo, uma paixão proibida e da qual teve que fugir acusado de assassinato. Estava desenganado da vida e do amor, deixando-se levar noitedias sem paradeiro certo. Ao avistar a Coisa, vixe! Que estrupício! Pense num desmatelo! O seu coração ficou num vaivém medonho: Não, não era mais Crisipo; para ele, era a formosa Jocasta! A Coisa desconfiada: Quem Crisipo? Quem é Jocasta? E ele enamorado, cego de paixão. Para quem foi contrabandeado pelos irmãos e vitimado não só por uma, mas duas paixões avassaladoras: a proibida e amaldiçoada pelo mais belo e melhor dos seus amigos, o Crisipo; e a platônica pela mais graciosa e abastada das jovens da sua terra, a Jocasta. Não era pro bico dele nenhum dos dois, por isso fugia. Aquela que acabara de descobrir, era definitivamente para ele. E tudo fez. Ela, a Coisa, na retranca, só no canto dos olhos. Ele endoidecido, pelejando para tirar uma casquinha, pretendeu atacá-la para conseguir seus intentos. Assim o fez, só nos ajeitados, tomando umas e outras, altas horas da noite, resolve arrancá-la à força. Sequestra e sacode em cima da Bisquí já pronta colaborativa. E ali mesmo, completamente embriagado e fora de si, estupra Coisa. Foi uma contenda, ela o repugnava, aos gritos e chutes. Ele insaciável alcança seu objetivo e livre da repulsa, consegue copular depois de horas em arremetidas insistentes e gozo demorado. No dia seguinte, cadê Coisa? Lugar mais limpo. Saiu à sua caça dias, meses. Como não tirava Coisa da cabeça no afã de encontrá-la a qualquer momento e concretizar a sua felicidade, nem deu conta que Bisquí ficava roliça. Oxe! Será que essa jumenta está prenha? Muito menos percebeu que já doze meses se passaram, mas na cabeça dele só contava nove e foi aí que nasceu Coisinha, seu primogênito: o Coiso Júnior. Como é que pode? Quem emprenhou Bisquí? A jumenta de olho na fuça dele, como se dissesse: Destá, bestão! Foi assim. Finalmente podia se passar por pai pela primeira vez na vida, depois do malogro com Crisipo e Jocasta. Tomou na conta de seu, todo feliz. E falou carinhosamente para Bisqui: Será como se fosse meu, viu? Bisquí fechou a cara e falou: Não será como se fosse! Oxe, você fala? No dia que você quis estuprar aquela vadia e corre o mundo atrás dela, não foi nela que você esporrou de gozo, viu? O quê? Foi nimim e esse filho é seu. Como? Eu embuchei de você, seu lerdo. E desde quando você fala? Sempre, você que nunca viu que canto para você dormir, embalo suas noites e afago seu coração perdido por aquele safado do Crisipo, pela quenga da Jocasta e agora dessa fuleira Coisa; sou eu que nas horas de precisão você se alivia, seu traste! Como é que pode? Na hora do rala-e-rola, sou a melhor do mundo; quando é para levá-lo na cacunda para qualquer lugar, sou a única; quando é para distrair sua solidão, só a mim na face da terra. Já notou? Não pode ser. Mas é, ponto final. Depois da rusga, vem as pazes e um mar de rosas. Mas a vida nunca tem final feliz. Então, com o Cosinha também vieram outras broncas e a principal foi um presságio anunciado pelo Oráculo: ele seria assassinado por seu próprio filho que se casaria com sua mulher, a mãe dele. Cuma? Como é que pode? Basta um segundo de felicidade e logo tudo desmorona? Vou tirar isso a limpo com esse Oráculo! Bisquí ali ficou cuidando do seu rebento mais que amado. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais abaixo e aqui.


DITOS & DESDITOSNão há outro inferno para o homem além da estupidez ou da maldade dos seus semelhantes. A beneficência é sobretudo um vício do orgulho e não uma virtude da alma. As paixões humanas não passam dos meios que a natureza utiliza para atingir os seus fins. Antes ser um homem da sociedade, sou-o da natureza. Quem sabe se não teremos de ultrapassar muito a natureza para perceber o que ela nos quer dizer? A minha maneira de pensar, você diz, não pode ser aprovada. E que me importa? Bem idiota é aquele que adota uma maneira de pensar para os outros! Não foi a minha maneira de pensar que provocou a minha desgraça. Foi a maneira de pensar dos outros. Só me dirijo às pessoas capazes de me entender, e essas poderão ler-me sem perigo. Pensamento do escritor libertino francês Donatien Alphonse François de Sade, mais conhecido como Marquês de Sade (1740-1814). Veja mais aqui & aqui.

ALGUÉM FALOU: O homem precisa de algum conhecimento pra sobreviver, mas pra viver precisa da arte. A dor da alma nada mais é do que seus limites se rasgando para caber mais mundo. É porque sentimos dor que valorizamos tanto a alegria. Além do mais, não há um ser humano que não tenha vivido a dor. E se houvesse, ele não saberia também o que é alegria. A solidão é a base da dignidade. O homem é um ser que cria valores, e a consciência da morte instaura o primeiro valor: a vida. Tudo que nasce tende a morrer para que a vida continue. É porque sabemos que vamos morrer que temos urgência de viver. Se o homem é o único animal que sabe que vai morrer, ele também é o único que incessantemente cria, interfere, produz. Liberdade é saber lidar com os limites. Pensamento da poeta, filósofa, psicóloga e psicanalista capixaba, Viviane Mosé. Veja mais aqui.

O QUE VEMOS, O QUE NOS OLHA - [...] devemos fechar os olhos para ver quando o ato de ‘ver’ nos remete, nos abre um ‘vazio’ que nos olha, nos concerne e, em certo sentido, nos constitui [...]. Trecho extraído da obra O que vemos, o que nos olha (34, 1998), do filósofo, historiador, crítico de arte e professor francês Georges Didi-Huberman. Veja mais aqui.

LOCAL DA CULTURA – [...] A enunciação problemática da diferença cultural torna-se no discurso do relativismo, o problema perspectivo da distância espacial e temporal. A ameaça da “perda” de sentido na interpretação transcultural, que é tanto um problema da estrutura do significante como uma questão de códigos culturais (a experiência de outras culturas), torna-se então um projeto hermenêutico para a restauração da “essência” cultural ou da autenticidade. [...]. Trecho extraído da obra O local da cultura. (EdUFMG, 1998), do professor e crítico indiano Homi Bhabha.

A VIDA - Temos sempre a mesma idade por dentro. Quando estão sozinhos querem estar acompanhados, e quando estão acompanhados querem estar sozinhos. Isso faz parte de ser humano. A única coisa que torna possível a identidade é a ausência de mudança, mas ninguém acredita de fato que se seja semelhante àquilo de que se lembra. As pessoas que acreditam na inteligência, no progresso e no entendimento, são as que tiveram uma infância infeliz. Todos temem a morte e questionam seu lugar no universo. A função do artista, não é sucumbir ao desespero, mas sim encontrar antídotos para o vazio da existência. É preciso muito tempo para ser um gênio, você tem que ficar sentado sem fazer nada, realmente sem fazer nada. Pensamento da escritora e feminista estadunidense Gertrude Stein (1874-1946). Veja mais aqui.


O MISTERIO DO COISO – A obra O mistério do Coiso e outras histórias (Boca, 2010), do contador de história Thomas Bak, é um audiolivro em que histórias são contadas pelo próprio autor que narra e interpreta várias personagens, utilizando o Teatro e a Música, num espetáculo despojado e bem-humorado, grandes temas da existência, o estilo é brejeiro, inspirado na literatura tradicional e simultaneamente fruto de uma veia original e moderna. Os mais hilariantes contos jocosos, da fábula ao realismo fantástico, que levará o público do riso às lágrimas, conta com arranjo musical de Nuno Morão e ilustração de Nuno Saraiva.

COISO REI, O AUTO DO COISONÁRIO



A CHEGADA DE GETULIO VARGAS NO CÉU E O SEU JULGAMENTO

Rodolfo Coelho Cavalcante

Quando Getulio morreu
O manto da natureza
Tingiu-se todo de luto
Mostrando maior tristeza
Soluçando pelo astro
Que brilhou com mais grandeza.

De manhã o sol não quis
Demonstrar o seu fulgor
O mar sereno gemia
Num espetáculo de dor
E a lua no espaço
Perdeu toda a sua cor.

Os homens aqui da terra
Perderam suas razões
Em desespero gritavam
Como se fossem leões
Pela perda de seu líder
Amado pelas nações.

Os operários diziam:
- morreu o meu protetor
Um outro Getulio Vargas
Não nos manda o criador
Rolavam em todas as faces
O pranto do seu amor.

Enquanto isso o espaço
Turbado na escuridão
De marte, saturno e Vênus
Netuno, Capri, plutão
Sentia a grande tragédia
De Getulio nosso irmão.

Estava Jesus na corte
Do celeste paraíso
Quando o anjo São Miguel
Deu-lhe o doloroso aviso:
- Matou-se Getulio Vargas
As vossas ordens preciso!

- Eu mandei-te Miguel
Livrá-lo da tirania
Do deputado Lacerda
De Gregorio e companhia
Por que o deixaste sozinho
Sofrendo tanta agonia?

- Senhor eu mandei os vossos
Mais sublimes mensageiros
Porem o ódio crescia
Pelos falsos brasileiros
Para intrigarem Getulio
Com os planos traiçoeiros!

De qualquer maneira eu quero
Getulio no paraíso
Pois um sério julgamento
Com ele fazer preciso
Corra, vá ligeiro à terra
Com São Jorge e São Narciso.

Vinte e quatro de agosto
Daquele tristonho dia
Com São Narciso e São Jorge
São Miguel à terra descia
E no Catete chegaram
Numa hora mais sombria...

A esposa de Getulio
Chorava dilacerada
Dona Alzira como filha
Dizia penalizada:
- Morreste papai porém
Tua memória é honrada.

Osvaldo Aranha gritava:
- Getulio Vargas morreu!
Mataram meu grande amigo
Que pelo povo sofreu
Lutero também chorava
São Miguel entristeceu.

Enquanto o corpo estendido
Se achava no caixão
O espírito de Getulio
Estava em perturbação
Vagando no infinito
No vácuo da imensidão.

São Miguel chamou Getulio
Que estava tão aflito
Como se estivesse em sonho
Deu ele um tristonho grito
E ao ver os mensageiros
Ajoelhou-se contrito.

- Por que roubaste a vida
Que o Criador te deu?
Perguntou-lhe São Miguel
Getulio respondeu:
- Matei-me pelo meu povo
Que um dia me elegeu!

- Mas não sabias que era
Um crime muito maior
Para salvar o teu povo
Fazendo um ato pior
Disse Getúlio: - Porém
Foi o que achei melhor!

- deixemos de discussão
Que isto não adianta
Se prepare para ir
À Mansão Celeste Santa
Onde Jesus lhe ouvirá
Você ai se garanta!

Nos braços do anjo foi
Getulio Vargas levado
Quando por marte passaram
Foi ele homenageado
Em Vênus quarenta deuses
Cantaram: “Meu doce amado”.

Em jupiter vinte segundos
Getulio Vargas ficou
Para receber a faixa:
“Maior astro que brilhou”
Em saturno um grande almoço
A caravana aceitou.

Em plutão disse Getulio
Que ali não demorava
Recusou todos os convites
Porque Hitler ali estava
Trabalhando de mineiro
Pelo crime que pagava.

Em capela um ramalhete
De flores celestiais
Recebeu Getulio Vargas
Por dois grandes marechais
Deodoro e Floriano
Que se tornaram imortais.

Na região do amor
Foi Getulio recebido
Pelo grande Castro Alves
Onde é muito querido
No reino de Salomão
Também foi muito aplaudido!

Estava a Águia de Haia
Ao lado de Salomão
Com Sócrates e Aristófanes
Hermes, Pitágoras, Platão
Fizeram uma ode a Getulio
Numa alegre saudação.

Na lua entraram Adão
Moisés, David e Elias
Daniel e o rei Saul
Com Abraão e Isaías
recebeu Getulio Vargas
o diploma de Messias.

Duas horas mais ou menos
Viajou a caravana
Enquanto a terra sofria
Essa passagem tirana
Getulio chegou ao céu
Pela ajuda soberana.

Deixemos agora a terra
Num clima de confusão
Para falar de Getulio
Na celestial mansão
Como foi seu julgamento
Vamos dar a descrição.

Estava Jesus no trono
Já pronto para julgá-lo
São Libório, o promotor
Começou a acusá-lo
Enquanto a Virgem Santíssima
Chegou para advogá-lo.

Disse Libório: - Senhor
Getulio zombou demais
No tempo da ditadura
Encarcerou generais
Prendeu gente e matou gente
Como se fossem animais.

Nossa Senhora sorriu
E disse: - Não acredito
Quem governa leva a fama
De tudo que é maldito
O que fizeram em seu nome
Jamais foi por ele escrito!

Libório continuou:
- Se Lacerda o condenava
Tinha razão para isso
Pois o Catete estava
Cercado de pistoleiros
Que Getulio contratava.

Defendeu Nossa Senhora
Dizendo: Nunca Libório
Getulio se confiava
Isto já está notório
De toda sua tragédia
O culpado foi Gregório!

- Mesmo assim, por que Getulio
De uma vez que não devia
Não aguardou o julgamento
Que a oposição queria?
Seu suicídio provou
Qu´ele culpado sentia.

- Não acuse desta forma
Libório que não convem
Getulio Vargas sofreu
Como meu filho também
Para salvar os humildes
Sem ter ódio de ninguém.

Nisto Jesus ordenou
Que Getulio demonstrasse
As razões do suicídio
Se de fato não provasse
Seria expulso do céu
Antes que o dia findasse.

Disse Getulio: - Senhor
Eu não sei vos descrever
A vergonha que sofri
Sem cousa alguma dever
Vos que desceste à terra
Devereis melhor saber.

- Não sabes que ninguém pode
Sua própria vida tirar?
Não vistes como sofri
Todo martírio sem par
Mas não roubei minha vida?
Tua devias me imitar.

- Eu reconheço senhor
Do erro que cometi
Mas uma maldade humana
Como essa nunca vi
Indo até os sacrifício
Pelo meu povo morri.

- Eu te perdôo Getulio
Porque foste generoso
Lembraste dos pequeninos
Com teu modo caridoso
Mas voltarás ao Brasil
Por ordem do poderoso.

Se não fosse o suicídio
Isto não acontecia
Hoje o povo brasileiro
Sofre a maior agonia
E só tu podes livra-lo
Com melhor sabedoria.

Assim Getulio foi salvo
Do seu gesto delirante
O breve virá à terra
Como um chege triunfante
Para ajudar o poeta
Rodolfo C. Cavalcante.

RODOLFO COELHO CAVALCANTE – o jornalista, poeta e trovador alagoano Rodolfo Coelho Cavalcante (1917-1986) foi palhaço e camelô fazendo propagandas nas portas das lojas, membro de várias associações literárias e fundou alguns periódicos como “A voz do trovador”, “O trovador” e “Brasil poético”. Criou as agremiações, contam-se a Associação Nacional de Trovadores e Violeiros (ANTV) e o Grêmio Brasileiro de Trovadores (GBT). Também participou e organizou congressos de poetas populares. Fixou-se em Salvador, Bahia, onde publicou e vendeu os seus folhetos. Viveu de biscates e trambiques quando foi capturado por Lampião, sendo liberado pela sua insignificância. É autor, entre outros, dos seguintes: “O barulho de Lampião no inferno”; “A chegada de Lampião no céu”; “A chegada de Lucas da Feira no inferno”; “O encontro de Guabiraba com Lampião”; “O encontro de Rodolfo Cavalcante com Lampião Virgulino”; “Lampião e seus cangaceiros”. Sua produção literária alcança número superior a 270 folhetos. Ele foi objeto de tese universitária na Universidade de Sorbonne, escrita por Martine Kunz, denominada Rodolfo Cavalcante poète populaire du Nord-Est Brésilien.

FONTES:
BATISTA, Sebastião Nunes. Antologia da literatura de cordel. Natal: Fundação José Augusto, 1977.
CAVALCANTE, Rodolfo Coelho. Cordel. São Paulo: Hedra, 2003.
CARDOSO, Tania Maria de Sousa; Elementos para uma biografia de José Pacheco e Rodolfo Coelho. Natal: UERN, s/d.
CURRAN, Mark. J. A presença de Rodolfo Coelho Cavalcante – cordel. Porto Alegre: Nova Fronteira, 1987.

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