terça-feira, janeiro 16, 2024

VALÉRIA CAMPOS, KATJA PETROWSKAJA, KARINA VERGARA & AVALOVARA

 

 Imagem: Acervo ArtLAM.

Ao som da Mélopées africaines, para Ondes Martenot, piano e flauta (1945), Grains de cendre, para soprano e orquestra de câmara (1946) e Traité de rythme, de couleur, et d’ornithologie (1949), da pianista e compositora francesa Yvonne Loriod (1924-2010). Veja mais aqui.

 

PROSA DE NÃO SEI QUANTOS VERSOS - O que mais esperar além de nada noves fora ermo: contemplar a demolição da vida sob nuvens prematuras nas trevas de janeiro e coração suspenso, olhar remoto nas pálpebras aflitivas, ecoantrovões, noitoutra. O meu corpo escuta o peso de duplipensares no mise-en-scène, canto de sereias. Escapei por pouco, quem será o próximo. Claudia Noguera Penso dá o tom: Sinto, como Ícaro, a inutilidade das minhas asas, quando elas se abrem e te encontro confortável queimando nelas... Era eu quase presencial na tragédia de Ingeborg Bachmann, a saudade na militância da radiodifusão e tragadas de cigarros. Dera de acontecer o não previsto, como se eu tivesse que vazar os olhos para suportar as cenas dolorosas: se fui longe demais nada fizera. Pela milésima vez estremecido gesto trançado no peito com o que me dissera Nancy Kress: Você deve aprender a ser três pessoas ao mesmo tempo: escritor, personagem e leitor... Trindade minha engasgada por sonhos atravessados de assoladoras imagens irreconhecíveis, pesadelos acelerados e recorrentes, só pra saber desregulando o que sou no meio do cáustico banimento e vagos passos no lodo escorregadio e a se prolongar por luzes apagadas. Adejo e não ouço, meu corpo todo asa a se dilacerar saltando o dia como eterno rasgo. Tão perto estava Edwidge Danticat: Crie perigosamente, para pessoas que leem perigosamente…. Escrever, sabendo em parte que, por mais triviais que suas palavras possam parecer, algum dia, em algum lugar, alguém poderá arriscar a vida para lê-las... Como se quase o poeta matou a poesia diante da tragicomédia fora do padrão. Tudo de novo, outra vez. E isso não tem a menor graça! A coisa vai só pra quem tem boca na botija, quem sabe leva na maciota e Ellen Wood foi além do esperado: Seus próprios sentimentos excitados o ampliaram em comprimento, largura e altura - transformaram um pequeno morro em uma montanha... Seguir mesmo que tudo só vá pra trás. Não adianta se acovardar diante da lógica da violência. De tempos em sempre, a vida dá o créu! Vou por mim: ser humano abissal. Desfaço a jornada do herói e descontruo o conto de fadas. Quase ainda anteontem tudo era tome tento e pegue o beco, pingo nos iis e dou fé. Hoje não mais: cada um por si e quem quiser que mande outra. Se Deus fez, a gente desacerta. Tenho dito! Até mais ver.

 

MULHER IMENSA

Imagem: Acervo ArtLAM.

Num lugar na periferia da cidade, \ uma mulher chora. \ Um homem a abandonou \ quando ela acabara de dar à luz. \ Ela tem mais dois pequeninos para alimentar. \ Você tem que pagar o aluguel. \ Os valentões no trabalho afiam suas presas. \ O garotão arranhou o joelho. \ A casa não tem banheiro. \ Eu a ouço e declaro o mal do mundo. \ Ela me contradiz e me dá um meio sorriso. \ Eu olho para ela com espanto, \ Que segredo permite manter a esperança? \ Ela responde, desgrenhado, maquiagem borrada, rosto cansado … \ enxuga as lágrimas com as costas da mão \ e convoca, em voz alta, \ quatro versos da letra de Pizarnik. \ É assim que uma mulher ensina uma lição de vida. \ Ele abraça versos generosos e renasce, tremendo e poderoso.

Poema da indígena poeta mexicana Patricia Karina Vergara Sánchez, autora de obras como Indómita Versa (Ginecosofia , 2021) e Sem heterossexualidade obrigatória não há capitalismo (Riseup, 2018), no qual expressa: [...] Enquanto se continue concebendo que lavar a louça ou a vida erótico-afetiva sejam assuntos que correspondem a uma pessoa, a um casal ou à intimidade do que ocorre dentro de uma casa e se continue invisibilizando sua dimensão política e suas implicações estruturais, será difícil desmontar a reprodução capitalista. Uma atitude revolucionária, então, é desheterossexualizar nossas concepções de realidade e de sentido da vida [...]. Ela também edita o blog: Esta boca mía - Advertencia: poesía lesbofeminista.

 

UMA HISTÓRIA DE FAMÍLIA - [...] Todos nós fazemos parte de um grande épico, apenas um pequeno segmento dele, inadvertidamente destacado. [...] Heróis soviéticos musculosos - um marinheiro, um guerrilheiro e uma mulher ucraniana - triunfaram sobre as trevas do passado. As palavras “heroísmo”, “coragem”, “pátria”, “coragem” ricochetearam em mim como bolas de pingue-pongue [...] Então houve uma ficus - ou não é uma ficus, mas uma ficção, uma ficção, uma ficção? Minha ficção é gerada por ficus - ou vice-versa? E se eu nunca souber se a figueira que salvou a vida do meu pai realmente existiu? Ligo para meu pai e ele me consola. “Mesmo que ele não existisse, esses truques de memória às vezes nos dizem mais do que os registros de inventário mais detalhados.” Às vezes é apenas um grão de ficção poética que torna uma memória verdadeiramente autêntica. [...] Como um deus onisciente, observo essa cena da janela da casa em frente. Provavelmente é assim que os romances são escritos. Ou contos de fadas. Sento-me alto e olho para longe. Às vezes, reunindo coragem, chego mais perto e fico atrás do policial, escutando a conversa. Mas por que você está de costas para mim? Não importa o quanto eu ande ao seu redor, só vejo suas costas. Por mais que eu tente distinguir seus rostos, o rosto da minha avó e daquele oficial, por mais que eu me estique, por mais que eu force todos os músculos da minha memória, da minha imaginação, da minha intuição, nada funciona. Não vejo seus rostos, não entendo, e os livros de história silenciam. [...] Meus pais falavam sobre o que a história oficial silenciava, falavam constantemente sobre seus pontos dolorosos, como se estivessem mentindo - para eles era uma questão de honra, decência ou talvez até um código para encontrar “os seus”, seus próprios espécie . Às vezes parecia-me que com estas histórias (e conversas intermináveis sobre literatura) estavam a conquistar o espaço da sua independência, a Primavera de Praga, a Hungria de 1956, as repressões, o Solidariedade, o Afeganistão e, claro, este buraco negro de Kiev, Babi Yar , eram seus “conjuntos de cromossomos”. Eles consideravam esse conhecimento - essa atitude diante da dor do outro - um fiador da consciência e até da liberdade pessoal. Mas o problema de qualquer história sobre tais acontecimentos é como preservar a memória histórica, como falar sobre a violência contra as pessoas sem multiplicar esta violência, sem repetir - como no caso de Babi Yar - não apenas aquela morte, mas também a desonra daquela morte em sua história. Como falar sobre violência sem usar violência contra os outros. [...] Meu livro surgiu da interseção entre impotência e raiva. E a questão não está no patriotismo, mas na memória de um lugar, na necessidade interna de descrever em que espaço crescemos ou nos encontramos, ainda que no gênero de caminhada. [...] É impossível contar completamente sobre desastres em que morrem milhões de pessoas inocentes. [...] Quando uma cadeia de acidentes forma um texto, ela se torna destino. [...]. Trechos extraídos da obra Maybe Esther: A Family Story (Harper, 2018), da escritora e jornalista ucraniana Katja Petrowskaja.

 

ARQUI-VIOLÊNCIA – [...] As abundantes meditações sobre a violência na filosofia ocidental, incluindo a filosofia contemporânea aqui, mostraram uma tendência a concentrar-se principalmente na esfera política em sua totalidade. Sem tentar uma análise histórica do fenômeno da violência, é interessante enfatizar o campo de estudo que tradicionalmente tem sido incluído como um tópico: política, direito e ética. Filosofia prática, em suma. [...] Ele está localizado no contexto da ampla relação que a violência tem com a linguagem e o discurso em todo o filosofia ocidental. [...] A linguagem sempre fez com que o sonho da presença se perdesse. do outro, uma presença incapaz de aparecer de outra forma que não seja a sua própria desaparecimento. Nesse sentido, não só a metafísica – ou a ontologia – é violenta. Todo o resto aparecendo diante de mim, mesmo que seja na forma de uma presença epifânica ou escatológica. [...]. Trechos extraídos do estudo Arqui-violência: gênese da violência de gênese na filosofia de Derrida (Trans/Form/Ação, Out./Dez., 2019), da filósofa chilena Valéria Campos Salvaterra, que se apresenta como: Sou humana como você. Ao longo da vida tive erros e acertos, fracassos e vitórias. Portadora de depressão grave, há dois anos fiz uma escolha: viver, amar e perdoar. Hoje sou grata por tudo que passei, compreendi os verdadeiros valores. Tenho amor a Deus, a mim e ao meu semelhante... Ela é autora de obras como: Violência e fenomenologia. Derrida, entre Husserl e Lévinas (Metais pesados, 2017), Transações perigosas. Economias da violência em Jacques Derrida (Pólvora, 2018) e Comece com terror. Ensaios sobre filosofia e violência (Prometeu, 2020).

 

 

AVALOVARA

[...] Estou no quanto do meu pai, quando o leque se abre dentro de mim. Não se abre aos poucos, com a lentidão do mundo vegetal. Abre-se de um golpe, são asas, os braços da criatura-em-mim abertos continuam, as mãos quase tocando meu ombros, mas agora a revestem duas asas, estas asas revestem-na, cobrem a sua nudez, uma espécie de manto, umerais, tectrizes e álulas são de um roxo-brilhante, as rêmiges douradas, principalmente nas extremidades, enquanto as penas entre as zonas dourada e roxa se alternam, umas cor de sangue, outras azuis [...].

Trecho extraído da obra Avalovara (Companhia das Letras, 1995), do escritor e dramaturgo Osman Lins (1924-1978). Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.