segunda-feira, fevereiro 27, 2023

ROSALÍA DE CASTRO, GAYATRI SPIVAK, EDNA MILLAY & DUDA DO RECIFE

 

Ao som dos álbuns Maestro Duda & Orquestra de Frevo (Vols, 1, 2,3 e 4, 1999), e o concerto Suíte Nordestina (Arranjadores – Orquestra Experimental de Repertório, São Paulo, 2012) do maestro, arranjador, compositor e instrumentista Duda do Recife (José Ursicino da Silva), Patrimônio Vivo de Pernambuco. Veja mais aqui.

 

TRÍPTICO DQP: - Nunca pense antes de começar, faça... - Chegou a horagá, havia de mudar: inadiável. Logo me vi na mesma situação elegíaca de Manguel e comecei pela parte mais difícil: encaixotar os livros. Era uma tarefa das mais dolorosas, apertava o peito. Os invisíveis guardiões cabisbaixos me davam a sensação dos que pereceram nos repositórios do saber e remédios da alma – como se chegasse ao ponto da biblioteca de Alexandria com Hypatia soterrada, ou das desaparecidas de Nínive, Bergamo ou Menin e todo aprendizado milenar às cinzas. Era triste. Quantas vezes, confesso, não vivi na pele de Stephan Dédalos ou do Copperfield de Dickens, personagens outros quase íntimos saltavam dos volumes e invadiam os espaços da casa perpetuando fatos e memórias para meu regalo. Os meus rascunhos, palimpsestos muitos juntos às garrancheiras e aos da cabeceira como se fossem da Babel de Borges, os das páginas que mais risquei, grifando frases e rabiscos pelas margens com as hestórias flagradas por trás das palavras escritas, os que foram emprestados e jamais devolvidos, os que me esperavam pela leitura e os que sepultei sabendo que me matava junto cada vez mais. Nesta hora Gayatri Spivak: A autobiografia é uma ferida onde o sangue da história não seca... Agora me sentindo mais solitário que nunca, tombei alguns pra doação à biblioteca municipal, mais da metade de todo acervo. Tanto doía a ponto de ouvir alguém dizer sem saber quem: Na escuridão eles vão, os sábios e os amáveis... Sabia dos que jamais os leram e preferiam queimá-los todos, dos muitos que quando não detestavam mais zombavam daqueles que liam e que era coisa de doido essa coisa de queimar pestana sem pregar o olho sobre brochuras, capas duras e publicações grossas, gente que tinha horror às impressões, quando não abominavam quem inventou estudo. O que me consolava era a oportunidade de muitos outros o acesso aos que li. Era o que dava alguma satisfação, pelo menos isso. Os demais que ficaram comigo, amontoados agora nalgum canto esquecido e inacessível.


 

Diário das facécias... – Imagem da artista plástica Márcia Gebara, integrante do Grupo Ateliê Virtual 2022. - Com o ocorrido fiquei tão deslocado: os ideais me levaram ao desespero, a vida afundou no lamaçal, inconsolável, deprimente. Havia de superar e eu menino outra vez, uma mão na frente, outra atrás. Em meu consolo Edna Millay: A infância não vai do nascimento até certa idade, e a certa altura a criança está crescida, deixando de lado as coisas de criança. A infância é o reino onde ninguém morre... Tentei desfazer o nó na garganta e, quase refeito, segui adiante sobrecarregado de novas esperanças. Não fosse Elizabeth George estaria numa encruzilhada: As expectativas destroem nossa paz de espírito. São decepções futuras, planejadas com antecedência. O passado não pode ser mudado, pode? Isso só pode ser perdoado... E lá ia eu Senécio de Klee, pseudo Arlequim de Goldoni – nem para isso eu servia, levando tudo nos peitos como desse, no meu soturno ensimesmamento...


 

Só diga até amanhã, nada mais... – Imagem do artista visual Ricardo Aydar, integrante do Grupo Ateliê Virtual 2022. – Entre as mãos, a surpresa do momento: o livro que ela me dera. Sim, foi numa tarde de décadas atrás, ela se parecia com A moça do brinco de pérola de Vermeer, sobressaindo-se a lágrima dos deuses iluminando seus olhos e lábios na face quase oriental. Pediu-me um favor e gratificou minha gentileza com Marlowe: Quem pode dizer que amou sem ter amado à primeira vista? Todos vivem para morrer e sobem para cair... Despediu-se graciosamente e, no dia seguinte, quase Hannah do Der Varleser de Schlink, quase a personagem de Kate Winslet das cenas do The Reader de Stephen Daldry, assim, ambivalente, na verdade, eloquentemente bela e muito mais que antes a me presentear um livro. Mais que grato, agora em dívida, ouvi-lhe Rosalía de Castro: Eu vejo meu caminho, mas não sei onde ele leva. Não saber para onde vou é o que me inspira a percorrê-lo... Para mim era o hálito da deusa Hator que debruava sobre mim, tratado agora como se fosse xilógrafo ou toreumatólogo pelo terraço perfumado pela presença daquela estranha simpática e a me mostrar o busto de quartzita rosada da Nefertiti, enquanto apontava para os desenhos das figuras nas paredes das grutas de Altamira e Lascaux. Estava, confesso, perdido e ela aproximando-se mais da parede, deslizou o dedo indicador acrescentando sorridente outros desenhos aos dali expostos. Sorriu com tanta graça que me flagrou olhos nela completamente aturdido. Não levou em conta a minha desorientação, começou a gesticular no ar e a paisagem ia mudando e já era outra localidade aos meus olhos ali na hora. Viu-me espantado, tomou minhas mãos às suas e levou-me a dançar uma ciranda envolvente corredor adentro, as vestes se soltando ao vento, deitando-se desnuda a um canto como se fosse a Vênus de Agatarco para me premiar muito mais por dias e noites. Quase um sonho, a névoa onírica se dissipava e previ ao longo do tempo a despedida. Pedi-lhe apenas um até amanhã, nem me disse adeus e nunca mais. Até mais ver.

 

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