domingo, novembro 06, 2022

VICTORIA CAMPS, CECÍLIA MEIRELES, GUY GAVRIEL KAY, DAREL, DUANE MICHALS & ELIANA YUNES

 

 Ao som do álbum Prelude in C minor, do violonista paraguaio Augustin Barrios Mangoré (1885-1944), na interpretação da violonista russa Valeria Galimova.

 

TRÍPTICO DQP: - Ráfagas et escâncaras (inspirado no livro homônimo inédito de Vital Corrêa de Araújo) – Lá estava eu às voltas com as diatribes do estoico Epictetus: Tudo isso é nada: estou preparado para coisas grandes. Para quem foi escravo ele foi longe demais, até as nove sentenças. Não estava tão à toa e foi por ele que fui levado a passar as vistas pelas considerações do Bernardo de Claraval – o tal doctor Meliflus que foi o último guia pelo paraíso nos cantos trigésimo primeiro e terceiro da Comédia de Dante. Depois pela novela enciclopédica das maravilhas de Ramon Llull – o libertino de jogral que ao ter tido sabe-se lá quando umas visões místicas tornou-se o beato doctor Inspiratus que influenciou Leibniz -, isso até me deparar com as devastadoras sátiras de Gregório Boca de Guerra. A sensação era de que fui atirado longe, quase perto da fechadura na constelação de Orion, com o peso na cacunda de haver cometido o dobro de uns quinze ou mais pecados capitais, sem me conformar por não ter abusado mais que isso. Apesar disso nem capitulei porque na verdade vivia como no centro das cenas do teatro de Beckett ou dum filme de Arrabal, e todos ao meu lado como na pintura desfigurativa de Bacon e no meio duma performance das transfigurações de Olivier de Sagazan que me disse imediatamente: É permanentemente como numa forma de cambalhota assim, vês? De passos largos. Vi e não era nada às claras no meio da umbrosa tragédia cotidiana, na qual reiterava Duane Michals: Vivemos em uma cultura onde aquele que grita o mais alto recebe mais atenção. Não é no vulgar, não é no choque que se encontra arte. E não é o excessivamente bonito. Está no meio; está em nuance. Foi precisa a simpática recepção da Victoria Camps: ...porque são as situações adversas que testam o significado da felicidade e a capacidade do indivíduo de encaixá-las em sua própria vida. Sim. Fui à forra e nem tinha para onde ir, apenas a sensação de que venci com muitos a primeira etapa para dar risada dos despautérios porque desgraça pouca é bobagem, enquantoutros asseclas do século sigiloso andam esperneando pelo que nem sabia direito para entender, coisas da estupidez fanática deles, o que perdeu a graça: a piada além de imitar piorou a vida.

 


Alagoinhanduba... - A cidade do meu exílio se parece muito com aquela dos traços de Darel Valença Lins. Poderia ser qualquer Macondo, Pasco do Cerro, Antares, Itabira ou rincão ignorado desses onde o diabo perdeu as botas, porque a minha sombra arquetípica é indecisa: um misto entre o inescusável e a desventura. Só conversa fiada, uma vez que na horagá esta minha cidade parece que teve tanta personalidade quanto um rolo de papel higiênico já inutilizado, isso mesmo. A sensação que ficou é de que seja o lugar ideal para se pegar uma bronquite, por exemplo; isto na baixa, pois há quem reclame ter saido de lá com alma de leproso ou coisa que valha. Pior: se não for o cu do mundo, está perto, porque parece que assim foi feita e com couro de tecido chué. Careca de saber aquilo que dissera Guy Gavriel Kay: Todas as estradas são escuras. Só no final há uma esperança de luz... A coragem residia em lutar para tentar ultrapassar esse medo, em erguer-se para fazer o que tinha de ser feito. De fato, longe de mim tal sortilégio, melhor mesmo é nada de contar vantagem, sai mais em conta, porque já falou Joel Pinheiro da Fonseca: Dar ao indivíduo aquilo que ele quer não é receita para sua felicidade. É sua destruição. Cá me previno e não é porque não fui embora que será o fim do mundo. Pelo jeito que as coisas vão, só dá pra querer que dure um pouquinho mais a festa esperançosa de dias melhores que virão, oxalá.

 


Novembroutro... - Quarenta anos se passaram, infortúnios e mazelas, ainda não aprendi direito, tarde demais. É que despontei pro anonimato justo quando queria reconhecimento e dei de cara com o que disse Gertrude Stein: Não sei como meus leitores conseguem entender o que escrevo. Depois de algum tempo, nem eu mesma sei o que queria dizer. Nem eu, pudera. Estudei que só e não sei qual a equação disso ou a raiz quadrada daquilo, tempo precioso que poderia ter sido aplicado noutra coisa de melhor serventia e me passei, como sempre. Ouso desagradar leitora: só joio, mais nada. Tenho imaginação sim, tanto é que todas as mais lindas mulheres passaram pela minha mão e nem precisei agradecer nem me desculpar por isso nem por nada, pois sempre achei que os outros se divertiam às minhas custas e pelas costas, seja lá quem fosse. Menti um pouco e nunca fui de caçadas, nem pra guerra nem candidato pruma eleição no raio que partiu a doidice toda. Nunca me importei mesmo, o que detesto é a prova dos nove ou o flagra da pinoia. Uso daquela do James Callaghan: Uma mentira pode correr meio mundo antes mesmo que a verdade consiga calçar as botas. Mesmo assim não hesitei nem me abstive de rascunhar garranchos, só inutilidade de dentes e cabelo caírem, memória fraca hoje em dia. Certa estava Cecília Meireles: Tudo é mistério nesse reino que o homem começa a desconhecer desde que o começa a abandonar. Não foi nem será fácil, deixo muito a desejar - como se as palavras saíssem na marra, quando na verdade, levo surra delas cada vez que me meto a escrevinhar minhas garatujas. Ora, sou lá congenitamente incapaz de uma frase refinada ou dizer a verdade, o melhor é seguir à risca a lição de Henry Miller: Se você não conseguir fazer com que as palavras trepem, não as masturbe. Destá. Vou no bambo, vai que acerto, coisa rara essa; mas quando erro pelo menos posso fingir que não sou tão idiota. Quando eu morrer que falem mal à vontade, nunca me incomodei porque é tudo verdade e será a vez que não invejarei o morto: estarei em dia com a ignorância alheia. Pois é, eu vivo e digo: viva ainda hoje que amanhã pode ser ilegal, viu? Até mais ver.

 


Ler não é decodificar um texto apenas, mas assenhorar-se do que pode ou não afetar seu leitor, possibilitando que compare e lucidamente corresponda ao lido, seja com ações interiores em sua subjetividade, ou externas, na coletividade de que participa. Ler não é automático, displicente, nem pode ser ingênuo: a leitura exige discernimento, não importa se de uma criança aprendiz ou de um leitor experiente. E em nenhum caso, o resultado é único ou tranquilo, mas exige coerência entre ler e viver. Ou não faria sentido... ler!

Trecho do texto de apresentação da obra A Falta que faz a Leitura: Saberes em diálogo (IIL-PUC-RJ, 2022), organizada professora e pesquisadora Eliana Yunes. Veja mais Educação & Livroterapia aqui & aqui.