segunda-feira, junho 27, 2022

HUMBERTO MATURANA, SAMANTA SCHWEBLIN, NÚRIA AÑÓ & LÍVIA FALCÃO

 

 

TRÍPTICO DQP: Sobrevivo... – Imagem: AcervoLAM: Antes do Verbo havia o antes e era Néstogas, ao som do Concert Barbakan Festival Bratislava, Slovakia Nova Cvernovka (Open air Park De Palma, 2021), da pianista, compositora e cantora polaca Hania Rani. - Meia década ou mais anos, nem sei quanto, perdi a conta e o tempo: o negrume perpassa ainda hoje, noit&dias. Durante toda minha vida despendi esforços inúteis, desperdicei demais, restou o que sobrevivi do tanto que arrastei degraus abaixo ou acima, quedas e errâncias. Sobrevivi ao que fui arrebatado pelo desencanto, quase condenado à podridão e resistindo à queda livre. Não fosse uma mão amiga, assim do nada, me acolher toda vez no desamparo, não saberia o que foram amores contrariados, arroubos litigantes da juventude às paixões cáusticas, nem que não precisava me penitenciar do que sobrou de relações tóxicas, das sombras do passado, das urgências dos venenos, dos nãos, dos cataclismos da reputação, nem de mais nada... Sei, sobrevivi inválido como quem se extraviou entre duas quedas de quase quebrar o pescoço, e um atropelamento. E era como se a sobrevivência resultasse vir probus sobre toda bufonaria de quantas tormentas e latomias. Algumas vezes perdi a mais completa noção, noutras passei despercebido, sequer ouvi Samanta Schweblin: O que o mundo vive é uma grande crise de amor porque, afinal, estes não são bons tempos para pessoas muito sensíveis. Agora sei o muito que chamei pelo nome coisa mais sem cabimento e o diabo a quatro, a vida ao rés do chão no pátio de nenhum lugar, qual o propício jamais escolhido ou achado, se é que já passei pelo pior ou pelo que mais merecia. Sobrevivo agora mais do que nunca e se sucumbi a minha salvação é uma quimera, inquietações da centelha ao incêndio. Jamais deixarei de ser grato pelo que vi e passei, tinha de aprender a lição e me vali do que sou mesmo que nada mais seja.

 


Não era Ennasin nem Cocanha, o que era... – Imagem da artista visual estadunidense Helen Frankenthaler (1928-2011). - Para onde fui não sabia onde, de fato a paisagem Brea-zill era do éden. Porém, a ganância de quem chegou para ver de perto, fez do que era mapa do Fabliau de Cocagne, ambições e toleimas: o terror entre nuvens de poeira pelo caminho. Eita! Por trás dos ouropéis se falava da guerra e a derrocada prevista. E se era mesmo o paraíso eu quase dei fé, não fosse o medievalista Hilário Franco Júnior, com toda facúndia, pôr tudo a perder a graça. Pois o que antes era placidez, tornou dóceis nativos em abrasados vermelhos mais canibais foderosos, o que viria a ser mesmo Ennasin de Rabelais desenhado por Doré. Apurando a vista, o ócio, a gulodice e a usura escondiam o flagelo da fome, nada mais que um pândego encaralhamento - na verdade Vidas Secas de Graciliano, ensinando pra gente o que um cachorro faz com o osso. Ah, um mico, paguei de tudo até o último vintém que restara ao bolso. Por causa disso não fui rumo ao Ocidente do Primo Levi, porque me perdi em naufrágios pelos mares das trevas de Conrad. Era como se eu tivesse de ser perseguido a todo instante a ler o trecho da Minima moralia de Adorno: Para quem não tem mais pátria, é bem possível que o escrever se torne sua morada. Não havia mais nada a fazer, senão contar hestória: o que era o meu país, outras versões nem tão simpáticas.

 


Entre teres e haveres... – Imagem da artista australiana Mere Langmaid. – Tudo se parecia onírico e era Cocaigne, o reino de Anaitis, a Dama do Lago: Faze o que parece bom para ti. Quando a vi era a atriz Lívia Falcão se passando no cenário pela Boieira reluzente da minha vida, apontando o dedo para uma placa no cemitério do Butantã: Os meus olhos choram por dias amargos. Não entendi porque ela se parecia aquela da Vênus de Ille do Merimée no meu quintal: pele deslumbrante, vestido decotado de alças, translúcida, e se desfazia ataviada pelas águas, com a sua espantosa e empalidecida cútis, a me dizer: doravante o prazer não tem preço, sou sua polaca. E mais se fez Naná de Zola com sua vulcânica sexualidade, mais tarde a Bola de Sebo do Maupassant no que me deu de seu, e logo amanhecia Anita Ekberg para me levar na La Dolce Vita de Fellini – eu o seu Mastroiani naquela cena, quando escondeu embaixo da saia molhada o segredo de Matrona de Êfeso. Ali me beijou plenamente como se fosse pela última vez e me recolheu em seu regaço para nunca mais. Depois de tudo, disse-me Núria Añó: Qualquer um poderia ver que esta mulher está vivendo um pesadelo. Exceto que ela passa por sua vida diária bem acordada, sabendo que pode cometer um erro a qualquer momento. Nada entendia e com ela o fio de todos os enredos difíceis, caminhos aos solavancos, os passos saldados nos autos da existência. Nela eu tive paz e nem sabia. Até mais ver.

Quando dizemos que amar educa, o que dizemos é que o amar como espaço de acolhida ao outro, que o deixamos aparecer, no qual escutamos o que diz sem nega-lo desde um preconceito, suposto ou teoria, vai se transformar na educação que nós queremos. Como uma pessoa que reflete, pergunta, que é autônoma, que decide por si mesma. Amar educa. Se criamos um espaço que acolhe, que escuta, no qual dizemos a verdade, respondemos as perguntas e nos damos tempo para estar ali com o menino ou a menina, essa criança se transformará em uma pessoa reflexiva, séria, responsável que vai escolher desde si mesma. O poder escolher o que se faz, o poder escolher se se quer o que escolheu ou não. Quero fazer o que digo que quero fazer? Gosto de estar onde estou? Essas são algumas das perguntas que surgem. Para que o amar eduque há que amar e ter ternura. O amar é deixar aparecer. Dê-lhe espaço ao outro para que nossos filhos, amigos e familiares mais velhos tenham presença.

Pensamento do neurobiólogo chileno e criador da teoria da autopoiese e da biologia do conhecer, Humberto Maturana. Veja mais Educação & Livroterapia aqui e aqui.