terça-feira, dezembro 19, 2023

SINÉAD GLEESON, LEWIS GORDON, VANESSA MARTÍNEZ RIVERO & PERNAMBUCO

 

 Imagem: Acervo ArtLAM.

Ao som dos álbuns Villa-Lobos (1998), Aurora Luminosa (2005), Alma Brasileira (2006), Musica Viva (2007), Música Nova (2007) e Família Real (2007), todos da Orquestra Sinfônica Nacional – UFF, sob a regência da maestrina Ligia Amadio.

 

CADERNO DA TRAVESSIA: PRIMEIRO ATO – Escrevo pras minhas pouquíssimas, duas ou três leitoras, precipitando-me pela primeira ponte, na qual tirei a catinga do mijo. Durou quatro anos: a descoberta até uma estaca enfiada dilacerando o coração juvenil combalido. Quantas luas se passaram e eu rebarbativo ouvindo Stephenie Meyer: Ninguém te contou ainda? A vida não é justa... Disso já sabia: a fealdade denunciou minha punição, nunca reabilitado, subjugado pelo célebre silêncio - e ausência - alheias, desde menino. Dos perspicazes uma terrível constatação: todos estão tão negativos que, até quando concordam, falam por litotes. É que a obsessão se tornou a praga do desejo e este do querer. Ninguém se imagina aos olhos da posteridade... SEGUNDO ATO – A segunda travessia, eita! Essa durou quase cinquentanos: longeva nau, nem Odisseu foi tão avassaladoramente castigado - do Recife à Maceió sete mares se confundiam em polvorosa, horizonte de nenhum porto seguro. Era uma gangorra e eu mais que bumerangue, uma montanha russa pior que os catabís numa roleta pela Cordilheira dos Andes e nem saia do lugar, boiando, parecia. Consumiu a adolescência, o tino quase adulto e, avalie, com Ray Bradbury ao pé do ouvido: Temos tudo de que precisamos para sermos felizes, mas não somos felizes. Alguma coisa está faltando... Tantas, talvez muitas... TERCEIRO ATO, EX NIHILO – A terceira travessia e nutria zis esperanças. Psiu! Era Berkeley: Seja percebido. E mais me escondia, como se dois passos a mais e a lua saltasse aos meus olhos amedrontados pelas iterações. Nada benefectivo, seja lá o que for: o sangue fervia na veia. Estou sempre pulando no escuro de olhos abertos. Qual a graça disso? O lixo é meu tesouro, a fonte da libertação. Faço da vida a minha invenção e quando não serve mais reinvento e revivo. E vou tocar fogo no mundo e em tudo que aparecer pela frente. Surpresa maior foi o que disse Linda Woolverton: Eu posso deixar minha imaginação ficar louca. Eu apenas enlouqueço. Então, ao longo dos anos - leva anos para escrever essas coisas, fazer essas coisas acontecerem - há muitos, muitos, muitos rascunhos... E nada deu certo: desemboquei na velhice solitária, volição deprimente: era eu o Velho de Hemingway. Até mais ver.

 

DOIS POEMAS

Imagem: Acervo ArtLAM.

RASTEJAR - Eu gostaria de ir com os fantasmas sobre os quais a nação caiu sobre eles, \ mas eu me cerquei de fogo \ eu não posso \ simplesmente \ ser mais que um lança-chamas. \ Minha longa cauda tem que abrir \ apenas um caminho para a fronteira, \ para esta rota criminosa onde \ meu fluxo do Pacífico. \ Não confio na extensão de arenques fantasmagóricos que engoli, \ Eles estão doentes, com frio, \ preenchido com o sangue de cereja que meus mortos comeram. \ Não confio, \ É por isso que tenho que seguir o alcatrão no Vulcano \ perto do sol do porto. \ Vou mudar de pele e beber do mar. \ Vou esticar meu lombo. \  Vou brincar com os barquinhos e colocar fogo em suas velas. \ Então seus excitados liliputianos narcotizarão minha alma. \ Eu serei o show da semana, \ a batida de circo do seu céu vai me esgotar \ e eu fugirei \ imitando minha casa em extinção, \ onde escondi meus meteoritos inebriantes. \ Aqui estou eu, o último da minha maldita casta, \ aquele que prevê suas perdas, \ que prevê \ deles \ perdas \ branco.

UMA MORTE - Uma morte \ ele é um homem morto, \ muitas coisas são. \ Muitas coisas ainda devo. \ Contemple sua geada desaparecendo em corpos felizes. \ Ele se desfigura na memória daqueles que ama, \ Perde a palavra inútil quando é habitada. \ Passarinho no bico, \ perna de chifre \ banhado em óleo, \ mar de aniquilação, \ de automóveis rudimentares \ e coração ortopédico. \ Ele manca pensando na vertigem, tantas vezes amada. \ Os mortos são reinventados \ em cada palavra negada. \ Eles reciclam uma asa como um braço, \ para sacudir sua geada ilusória. \ Eles cantam a temporada para nós \ do nosso próprio abraço.

Poemas da escritora, atriz e artista multidisciplinar peruana Vanessa Martínez Rivero, autora dos livros A filha do açougueiro (2007), Couraça (2009), Carne (2012), Cartografias da carne (2012), Redondo (2015) e Um terceiro olho para o tempo da tristeza (2018).

 

CONSTELAÇÕES - [...] O derramamento de sangue tem sido historicamente visto como um ato de heroísmo masculino: desde brigas pelo direito de passagem até esportes de contato e combate. Eventos infrequentes e aleatórios vistos como marcos independentes; histórias para contar depois que a dor - e o tempo suficiente - passar. O sangramento feminino é mais mundano, mais frequente, mais complicado, apesar de sua existência ser a razão pela qual toda vida começa [...] Todo mundo está atordoado. Gritando silenciosamente, fazendo infinitas xícaras de chá. O luto é perplexidade. O luto está circulando pelas salas e conversando com parentes não identificados. O luto é uma dor de cabeça permanente e um nó no estômago. O luto é um momento de lentidão, de olhar para estranhos na rua e pensar 'como você pode agir como se nada tivesse acontecido?'. A tristeza é ficar com raiva porque o sol ainda está brilhando, sorrindo no céu. [...] O cabelo tem sido usado para definir as mulheres racialmente, sexualmente e religiosamente. Isso as transforma em tentadoras: representa uma troika de feminilidade, fertilidade, fodabilidade [...] Os livros que lemos pela primeira vez são aqueles que nos afetam indelevelmente. Os personagens se sentem mais próximos de pessoas reais, que simplesmente vivem em outro tempo e lugar. [...] A doação de sangue é aquela ocorrência rara e descomplicada de uma boa ação altruísta. [...] O corpo físico – a coleção visível de ossos e pele que apresentamos ao mundo – não pertence totalmente ao seu dono se o útero dentro dele contiver uma gravidez não planejada ou indesejada. Existem todos os tipos de pessoas prontas para fazer fila e lembrar isso a uma mulher. [...] Comprometer-se com a escrita, ou com a arte, é comprometer-se com a vida. Um prazo auto-imposto como meio de existência continuada. Levei muito tempo para escrever esse livro e aqui estou, muito longe daquela noite horrível [...]. Trechos extraídos da obra Constellations: Reflections From Life (Ecco, 2020), da escritora irlandesa Sinéad Gleeson.

 

PENSAMENTO - Se passarmos um ambiente insustentável para nossos filhos, falhamos com eles. O direito de ter o nosso ambiente protegido para o benefício das gerações presentes e futuras é o nosso direito humano mais importante... Não há nada mais poderoso do que a mente inventa. Agora, o que estamos explorando são todos os limites do esforço humano. Não é físico – está tudo na cabeça... Ir contra a maré nunca foi difícil para mim. Não foi nem uma decisão consciente, mas a consequência natural de seguir meu próprio instinto... As alterações climáticas são o Everest de todos os problemas, o desafio mais espinhoso que a humanidade enfrenta... Aprendi duas lições básicas no Everest. Primeiro, só porque algo funcionou no passado não significa que funcionará hoje. Em segundo lugar, desafios diferentes exigem mentalidades diferentes... Pensamento do filósofo jamaicano Lewis R. Gordon, que atua como chefe do Departamento de Filosofia da Universidade de Connecticut atuando como uma das grandes autoridades atuais nos temas relacionados ao racismo. É autor de obras como Bad Faith and Anti-black Racism (Atlantic Highlands, 1995) e Fanon and the Crisis of European Man (Routledge, 1995), além dos estudos Through the Zone of Nonbeing: A Reading of Black Skin, White Masks (2005) e What Fanon Said: A Philosophical Introduction to His Life and Thought (2015).

 

PERNAMBUCO

[...] como ocorre com as imagens nos retratos, à margem do que somos e viremos a ser, os indivíduos sobrevivem. Nesse sentido, capturados pelo olho da câmera, os contadores de história passaram a habitar a dimensão de um tempo que não morre. Eternizaram-se [...].

Trecho do prefácio Pernambuco, memória do povo, escrito por Fernando de Mello Freyre, extraído do volume Pernambuco – Contos Populares Brasileiros (Fundaj/Massangana, 1994), organizado por Roberto Benjamin. Veja mais aqui, aqui, aqui e aqui.