sexta-feira, agosto 02, 2019

LAURA RIDING, VERDET, IÇAMI TIBA, SILVELENA GOMES & CARTA DE AGOSTO


CARTA DE AGOSTO - A chuva lava a minha alma deserdada. Cada pingo uma lembrança, a cachoeira da memória. A precária imaginação irrompe para meu desalento: da minha terra com seus muitos riachos num só caudal - o Una. Nada muda nessas paragens, caem todos por terra, vencidos e conquistados, genuflexos, e eu ao deus dará, percursos e percalços, suando a camisa e às pressas inimigas da perfeição: tudo muito aquém, só cabeça de menino de coração velho, combalido, fora de hora. Digamos, liliputiano sem guarida, falações e menosprezo, como era de se esperar. Nunca poderia ter sido nada além do que sou, não me parecia jamais pudesse ser uma mina de ouro: um extravagante carregado de precoce heterodoxia e dado à vida prosaica. Muito menos poderia me salvar do defeito fatal de avesso às expectativas paternais que me queriam uma proeminente unanimidade, como se pudesse ser diferente. Fui regiamente agraciado com a parte que me cabia de sova na vida, surras memoráveis de quase aniquilado, engolir pílulas amargas, sair rolando pela escadaria, a desconhecer da glória e aplauso, nunca quis a fama imorredoura, melhor o desprezo mesmo, sem embargo, aborrecia muitos. Via de regra, cresci e me criei desapadrinhado: nunca alimentei esperanças de me tornar um ensoberbecido triunfante, aprendia com a vida as lições do fracasso e a orar pelo pão nosso de cada dia. Sabia sucumbente às inanidades da existência. Como um urso aprisionado numa jaula, sempre busquei de livres paragens: pretendia por mais de tantas vezes largar tudo e, taciturno irrequieto, trilhar qualquer caminho e sem saber nem para onde ir, sensações rebeldes no coração ateado por irregulares pensamentos e hábitos. Esse sou eu nessa chuva torrencial. Apesar das sucessivas quedas e imprevidência, nunca invejei os afortunados ou não, comiserava de vê-los tão atarefados com os seus negócios, enquanto eu padecia com a desgraça das crianças sem lar refugiadas nas lamas da miséria. Enquanto saudavam felizes as celebrações de engalanado natal, outros minguavam sem esperança na derrocada da fome. Não, não. Eu me molho na chuva, lavo a alma. Apesar de tudo, ambicionei sim, um mundo melhor para mim e todos. Hoje quase me vejo um velho cínico enojado com esse mundo de hipocrisia humana, coitados, e eu sequer tenho como prover o meu próprio sustento. Nunca seria um grande homem, graças a Deus. Sempre preferi o inexpressível, o inexprimível, o visinvisível: o sorriso inocente da meninada, a calmaria de um rio profundo, a flor desabrochando no jardim, a dança das estrelas ao luar. Por conhecer o amor, desconheci muitas leis e coisas. E se fui poupado dos escândalos, ainda bem, meus olhos cobiçosos sempre seguiram em muitas direções. A mim o prazer da tortura de amar, não mais que um cadáver ambulante solidário com os apenados que desdenham a felicidade material desse mundo. Junto meus trapos e já vou sozinho, passos cambaleantes, entre beijos e abraços antigos que renovam um dia quase perdido pelas dores extirpadas de quase não ter jeito de passar, como quem dança para quem saiba amar. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.

DITOS & DESDITOS:
[...] O céu como um envoltório do mundo e espaço onde brilham os astros, não preocupa muito os camponeses nem os marinheiros. Enquanto o Sol, a Lua, as estrelas e os meteoros suscitam uma literatura abundante, sendo objeto de superstições e observações variadas, a curiosidade popular parece não se estender à abobada celeste. [...] Em 30 de novembro de 1852, foi criada a comissão examinadora dos livros vendidos por ambulantes. O objetivo declarado dessa instituição é pôr fim a quatro séculos de difusão pelo interior, pelos caixeiros-viajantes de livraria, de uma infinidade de livrinhos. Essa literatura popular, também denominada “literatura azul”, é considerada perniciosa: pode ser uma má influencia para os espíritos. Nessa produção, os almanaques, pelo número e pela antiguidade, ocupam uma posição importante. Quase todos acabaram, depois de proibidos pela comissão. [...] Desde sua publicação, em 1494, durante o Carnaval, o Nef des fous, do humanista alemão Sebastian Brant (1458-1521), teve um sucesso retumbante, tanto na Alemanha como no resto da Europa, como atestam plágios e traduções. O autor faz todos os loucos da terra das delícias embarcarem numa estranha nau que ruma para a “Bobagônia”, o reino da loucura. Representantes de todas as classes sociais embarcam na Nau dos insensatos. A cada um dos loucos, personificando um vício humano, é consagrado um capítulo. Brant não podia deixar de falar na loucura de querer conhecer o céu. [...]
Trechos extraídos da obra O céu, mistério, magia e mito (Galimard, 1987), do astrônomo, historiador e matemático Jean-Pierre Verdet. Veja mais aqui.

A POESIA DE LAURA RIDING
QUASE – Obscuridade quase expressa / que nunca foi ainda mas sempre / era para ser a próxima e a próxima / caso o lapso do ontem no amanhã / fosse reparado pelo menos até já, - pelo menos até já, até ontem - / caos quase reconquistado / sem que a verdade, dessa vez / decaísse ou progredisse - / o que há de novo? Qual é? / você nunca foi ainda / ou eu que nunca sou até?
TERRA – Não tema tanto pela Terra: / seu nome universal é “Lugarnenhum”. / Se é Terra para você, segredo seu. / Os registros externos param ali, / e você pode descrevê-la como parece, / e como parece, sê-la, / pretensa pausa / em meio à pretensa pressa.
SEM TÍTULO – Não é um muro, não é um poeta. Não é um muro de mentira, não é uma palavra de mentira. É um limite escrito do tempo. Não ultrapasse, ou em minha boca, meus olhos, você vai despencar. Chegue perto, encare e olhe bem através de mim, fale enquanto você vê. Mas, oh, rebanho de vidas totalmente apaixonadas, não ultrapasse agora. Senão em minha boca, em meus olhos, vocês hão de cair, e não ser mais vocês.
Poemas da obra The Poemas of Laura Riding (Persea, 1980), da poeta estadunidense Laura Riding (1901-1991), traduzidos por Rodrigo Garcia Lopes. Veja mais aquiaqui.
  
A ARTE DE SILVELENA GOMES
Quase toda ilustração nasce ou de uma profunda reflexão dolorosa ou de um sentimento de necessidade da representação. Desenho o que não consigo encontrar, crio o que não foi criado antes para mulheres como eu. O feminismo de modo geral, em certas ocasiões, não consegue abarcar as mulheres negras, gordas e lésbicas. Retratá-las é ir de encontro a toda uma lógica visual de representação. É me ver, dar olhos e assumir as próprias falhas, dores e vontades.
A arte da ilustradora e estudante de Publicidade, Silvelena GomesVeja mais aqui.

A OBRA DE IÇAMI TIBA
A felicidade é saber usufruir muito bem o que se tem, sem ficar sofrendo pelo o que não se tem, é a boa autoestima que permiti viver com esse feliz equilíbrio.
A obra do médico e escritor Içami Tiba (1941-2015) aqui e aqui.