POEMAS DE ENHEDUANA – I – Senhora de todas as essências, cheia / de luz,boa mulher, vestida de esplendor, / que possui o amor do céu e da terra,/ amiga de templo de An, tu usas adornos maravilhosos, / tu desejas a tiara da alta sacerdotisa / cujas mãos seguram as sete essências. / Ó minha senhora, guardiã de todas as boas essências, / tu as reuniste e as fizeste emanar de tuas mãos. / Tu colheste as essências santas e as trases contigo, apertadas em teus seios. II - Como dragão, encheste a terra com veneno, / Como trovão, quando bradas sobre a terra, / árvores e plantas casem diante de ti. / És o dilúvio descendo da montanha, / Ó deusa primeira, Inana, deusa / da lua, que reina sobre o céu e a terra! / Teu fogo espalha-se e cai sobre a nossa nação. / Senhora montada numa fera, / An te dá qualidades, poderes sagrados, e tu decides. / Estás em todos os nossos grandes ritos. Quem pode compreender-te? III – Tu o ergueste o/pé e abandonaste o celeiro da fertilidade. / As mulheres da cidade não falam mais e amor com seus maridos. / De noite, elas não fazem amor / Elas não se despem mais diante deles, / revelando tesouros íntimos. / Grande filha de Suen, impetuosa vaca selvagem, senhora suprema que domina An, que ousa não venerar-te? IV - Tu pediste-me para entrar no claustro santo, o girapu, / e eu entrei nele, eu, a alta sacerdotisa Enheduana! / Eu carreguei a cesta do ritual e cantei em seu louvor. / Agora encontro-me banida, em meio aos leprosos. / Nem mesmo eu consigo viver contigo. / Sombras penetram a luz do dia, / a luz escurece à minha volta, / sombras penetram a luz do dia, / cobrindo o dia com tempestades de areia. / Minha suave boca de mel torna-se repentinamente confusa. / Minha linda face agora é pó. V - A primeira senhora da sala do trono aceitou a canção de Enheduana. / Inana a ama novamente. / O dia foi bom para Enheduana, pois ela vestiu-se de jóias. / Como os primeiros raios de luar sobre o horizonte, / Quão exuberantemente ela se vestiu! / Quando Nana, pai de Inana, fez sua aparição,o palácio abençoou Ningal, / mãe de Inana. / Da soltira da porta celeste veio à palavra:‘Bem-vinda’! Poemas da princesa do Império Acádio, Enheduana, que viveu no século XXIIIaC, a primeira mulher a se tornar Alta Sacerdotisa, uma sábia que serviu ao templo de Inana, na cidade suméria de Ur. É considerada a primeira autora da Literatura Universal, da Filosofia e da História da Ciência, autora de mais de 42 hinos dos templos acádios e de poemas narrativos à Inana, autora da obra A ascensão de Inana, também conhecida como O despertar de Inana. Veja mais aqui, aqui e aqui.
FILHA DA DOR – À memória de Jane
Vanini Capozzi (1945-1974) – Aquela virginiana mato-grossense desde jovem atuou
nos grêmios estudantis e foi estudar Ciências Sociais na USP. Casou-se jovem, descasou-se
e tornou-se Ana para o jornalista Pepe Tapia Carrasco. Desde o primeiro
casamento o casal era caçado pela repressão e, por isso, vieram as prisões
promovidas pela Operação Bandeirante (Oban), a clandestinidade inevitável e o
navio para o exílio: Montevideo, Buenos Aires, Roma, Praga e Cuba. Foi em
Havana que ela tornou-se locutora de programa diário. E perseguiu seus ideais
no Brasil e por Cuba e Chile, militante tanto da ALN como do MOLIPO. Aqui,
integrou o Grupo dos 28. Novas prisões e mortes. Sem saber de nada a sobrevivente
foi condenada aqui e à revelia pela 2ª auditoria militar a cinco anos de
reclusão e perda dos direitos políticos por dez anos. A fuga para Santiago de
Allende no MIR, novamente a clandestinidade com o golpe de Pinochet em
Concepción. E ora era Adelia, ora Carmen ou Gabriela. A refugiada se refez por
meio de trinta e sete cartas: angústias, esperanças e o enfrentamento do
patriarcalismo machista. A família vigiada, apartamento invadido e as irmãs
depondo na Oban. Tudo acabaria naquele fatídico 6
de dezembro de 1974: ela resistiu por quatro horas às torturas do Dina.
Disseram até que ela sozinha resistiu a tudo enquanto destruía documentos até o
fim da munição: foi encontrada caída com uma metralhadora do lado. Era essa uma
informação contraditória de militares chilenos. Na verdade ela foi vítima de
violações dos Direitos Humanos. Os algozes sustentáculos da ditadura chilena só
reconheceram a responsabilidade vinte anos depois: a arcada dentária e o DNA da
ossada encontrada em 2005, numa vala coletiva dum cemitério de Concepción no
Chile. Supostamente era dela, não mais desaparecida: mas de trinta anos de
espera na notícia destacada pela imprensa nacional – não era verdade, o
escarcéu do noticiário em confronto com o sobrinho: O problema é que a imprensa nacional e até de outros países divulgou com
bastante ênfase a notícia de que foram encontrados os restos mortais dela e
isso virou uma verdade. Depois disso, ninguém procurou saber que foram feitos
exames e que o resultado descartou qualquer parentesco. Portanto, para nós ela
ainda é uma desaparecida política. No Chile é
reconhecida como heroína de luta. Na apreciação da Comissão Especial sobre
Mortos e Desaparecidos do Brasil - Lei 9140/1995 – foi indeferida por
unanimidade a falta de comprovação. A morte sem a dignidade
no sepultamento de Cáceres, as cartas e uma frase: Perdão, meu amor, foi a última tentativa de te salvar. Veja
mais abaixo, aqui e aqui.
DITOS &
DESDITOS – É claro que herdei as fórmulas familiares, religião, moral e costumes de
meus ancestrais, mas isso apenas informou a base do meu sistema pessoal. O
básico, claro, não posso negar isso, mas embora básico e enterrado, sua
categoria é a de suporte, não a fórmula, como todas as anteriores.
Pensamento da escritora espanhola Rosa
Chacel (1898-1994).
ALGUÉM FALOU: Como as pessoas encontram um encontro e um horário
para tirar a vida de outro homem? Quem os fez Deus? Por que, como cultura, ficamos mais
confortáveis em ver dois homens segurando armas do que de mãos dadas? Todos os
escritores escrevem sobre o passado e eu tento dar vida a isso para que você
possa ver o que aconteceu. Pensamento do escritor estadunidense Ernest Gaines (1933-2019). Veja mais
aqui.
DAS CARTAS DE
JANE: [...] Espero que algum dia estejamos juntos e
livres, mas se não avançamos, não importa tanto, importa realmente que a sociedade
que legamos aos nossos 'herdeiros' possua muito de nós mesmos, de nosso
esforço, de nossos ideias, de nosso amor.
[...] Um dia me chamaram de comunista porque no jornal “A voz do aluno” eu
reclamava pelo aumento no preço do leite e da carne, que muita gente não podia
pagar e esses alimentos são básicos para uma boa alimentação. Mais tarde eu
fiquei sabendo o que era o comunismo e que para chegar ao comunismo é
necessário uma longa etapa que se chama socialismo. Fiquei sabendo que já
haviam muitos países socialistas: União Soviética, China, Vietnam do Norte,
Coréia e muitos outros e o que é muito importante, que aqui na América Latina
existia um país que era um exemplo de socialismo: Cuba. Pois bem, Cuba, como os
outros, alcançou o socialismo, lutando com armas na mão, todo o povo, contra a
minoria de privilegiados que tinham de tudo e contra o exército que defendiam
esses privilegiados. E foi então que eu como muitos outros companheiros
pensamos em lutar para implantar o socialismo no Brasil [...] Vocês
se perguntarão que faço no exterior se me interesso tanto pelo Brasil. Eu lhes
explico: Nós pertencemos a um continente a que se chama genericamente por
América Latina. Essa América Latina toda tem as mesmas origens raciais que nós
do Brasil. Fala um idioma muito parecido e que teve também as mesmas origens.
Sofremos as mesmas enfermidades, analfabetismo, fome, velhice prematura,
dentição podre, e principalmente o nosso inimigo fundamental é o mesmo: o
ianque. É o norte-americano que explora todas nossas riquezas: o petróleo, o
cobre, o café, o gado, o ouro, a cultura, as frutas, tudo enfim. E o norte
americano não nos explora gratuitamente. Nossos governos pagam a eles para que
eles venham a explorar nossas minas, nossos operários, nossa cultura, para que
levem a matéria bruta para os EUA pagando uma miséria e nos exportem depois o
café solúvel, as peças, as máquinas, enfim, caríssimo o produto acabado.
Enquanto isso guardam como reserva o que eles tem nos EUA. Quando nós, os
subdesenvolvidos não tivermos mais nada para oferecer-lhes, então eles ainda
terão a sua própria riqueza. Nós? Mas que importa nós, se somos seres
inferiores, meio macacos subdesenvolvidos, que só copiam os costumes dos povos
superiores? Eu sou latino-americana e amo igual ao mestiço, ao criolo, o índio,
ao negro, ao asiático, ao branco, que entraram na nossa formação. E meus irmãos
são todos os latino-americanos e por eles estou disposta a dar até mesmo a
única coisa que realmente possuía: a vida. Digo possuía pois uma vez que uma pessoa
contempla as coisas que presenciei e toma a decisão que tomei, não possui nada
além do desejo de mudar tudo, não importa a que preço. E como sou
latino-americana, dá na mesma estar em Chile ou no Brasil, ou Venezuela, ou
México, ou Bolívia ou qualquer outro, pois cada país livre apressará a
liberdade dos outros. Cada território liberado é uma frente de luta para
prosseguir lutando[...]. Não te esqueças das minhas receitas. Às vezes
quero fazer algum bôlo ou comida
brasileira e não sei nenhuma receita. A única coisa que aprendi a fazer (e
muito gostosa) é feijoada. Só faltam a couve e a farinha que aqui não existe,
nem conhecem. Tenho saudades da manga, do caju, do mamão, porque aqui não
existe[sic]essas frutas. Mande-me uma garrafa de pinga, tá? Isso não existe
aqui, porque aqui não dá cana de açúcar. Temos em compensação a chicha de uva,
de maçã, que é deliciosa, mas são coisas diferentes. [...]. Trechos
extraídos da dissertação de mestrado Paixões políticas em tempos revolucionários: nos
caminhos da militância, o percurso de Jane Vanini (Unemat, 2002), da professora e historiadora Maria Socorro Araújo. Merecem menções:
o artigo O lugar da exterritorialidade, do historiador de arte Laurent Jeanpierre, extraído da obra Travessias e cruzamentos culturais - A mobilidade em
questão
(FGV, 2008), organizada por Heliane
& Helenice Kohler; o documentário Missivas
(2012), dirigido por Caroline Araújo & Mauricio Pinto; a dissertação de mestrado em História sob a
temática As missivas de Jane Vanini
e as disputas pela memória (UFMT, 2012) de Kátia Gomes da Silva Amaro; e o projeto de filme de Joel Varner Leão com a estudante Mayana Neiva, de 2013. Veja mais aqui e
aqui.
GÊNERO – [...] Se alguém
“é uma mulher”, isso certamente não é tudo que esse alguém é; o termo não logra
ser exaustivo, não porque os traços pré-definidos de gênero da “pessoa”
transcendam a parafernália específica de seu gênero, mas porque o gênero nem
sempre se constituiu de maneira coerente ou consistente nos diferentes
contextos históricos, e porque o gênero estabelece interseções com modalidades
raciais, classistas, étnicas, sexuais e regionais de identidades
discursivamente constituídas. Resulta que se tornou impossível separar a noção
de “gênero” das interseções políticas e culturais em que invariavelmente ela é
produzida e mantida. [...]. Trecho extraído da obra Problemas de gênero (Civilização Brasileira, 2012), da filósofa
estadunidense Judith Butler.
Veja mais aqui e aqui.
HÓSPEDE DO NATAL - [...] Se os bons tempos não tivessem mudado, um
copista de música como êle não teria mãos a medir, mas, ai! a gente de Varmland
se desinteressava cada vez mais das melodias e das lindas árias. Dependuravam
nos celeiros as guitarras, com as suas fitas desbotadas e as cravelhas já
gastas, bem como as buzinas de caça, com as borlas meio desfiadas e o pó
amontoava-se em camadas espessas sobre a caixa dos violinos. E à medida que a
flauta e a pena de Ruster trabalhavam menos, a garrafa, que nunca o abandonava,
trabalhava mais. Tornou-se um bêbedo incorrigível. Embora fosse recebido como
um velho amigo, a sua chegada produzia uma certa contrariedade, e a sua saída,
alegria. Estava sempre cheirando a álcool, que exalava de todos os poros, e
logo ao segundo ponche, os olhos já turvos, entabolava as conversas mais
desagradáveis. Era o eterno pesadelo das casas hospitaleiras. [...] Mas todas compreenderam que, muito mais do
que nos pássaros, era no jovem Ruster que êle pensava, arrependido de o ter
deixado partir na Noite de Natal. Meteu-se no seu quarto, fechando a porta, e
ouviram-no tocar no violino árias estranhas, como nos tempos passados, quando
sentia a casa estreita demais para êle; árias cheias de provocação e de mofa,
plenas de torturante nostalgia. A
mulher pensava: "Amanhã ir-se-á embora, se Deus não fizer um milagre esta
noite. E aqui está como a nossa falta de hospitalidade produziu a desgraça que
tanto queríamos evitar." [...]. Trecho extraído do conto O hóspede na noite de natal, da escritora sueca Prêmio Nobel de 1909, Selma
Lagerlöf (1858-1940). Veja mais aqui e aqui.
UM POEMA – E difama a morte. / Meu olho / É o cume do tempo, / Seu brilho beija / As barras de Deus. / E ainda vou dizer mais, / Antes que entre nós escureça. / Se, entre todos, você for o mais jovem, / Saberá do que em mim é o mais antigo. / Os mundos todos brincarão / De agora em diante em tua alma. / E a noite vai se queixar / Ao dia. / Sou o hieróglifo / Sob toda criação. / E saí a vocês, / Em causa da saudade por causa do humano. / Arranquei de meus olhos os evos do olhar, / De meus lábios, a luz vitoriosa / —Pense num prisioneiro mais difícil, / Num mago mais malvado: eis-me aqui. / Meus braços, na querença de se erguer, / Tombam. Poema da poeta alemã Else Lasker-Schuler (1869-1945). Veja mais aqui.
SOB O OLHAR DO
MAR
O filme Sob o olhar
do mar (2002), dirigido por Kei Kulmai e roteiro de Akira Kurosawa, conta a
história de uma prostituta perdida em seus sonhos num bordel de Tóquio, em
1868. Ela apaixona-se por seus clientes, passa por situações que expõem a
mentalidade japonesa, além de revelar a sensibilidade feminina, sabidamente
mais apurada que a dos homens, que são retratados como superficiais, covardes e
interesseiros. Mas como a vida não é maniqueísta, ela finalmente apaixona-se
por um jovem que enfrentará o mar que inunda a ilha para salvá-la. Se seus
clientes invadem seu corpo, sua alma permanece intacta sob a sujeira ocasional
causada pelo sexo sem amor. Assim como o mar ela é maior que seus invasores.
Veja mais aqui, aqui, aqui e aqui.