sábado, maio 28, 2022

ROSA MONTERO, MARYANNE WOLF, GUILLERMO CABREIRA INFANTE, ORIDES FONTELA & BARTYRA SOARES

 

 

TRÍPTICO DQP: Era uma vez outras mais tantas vezes, pálin... – Ao som da Sonata for cello and piano (op. 65), de Chopin, na interpretação da violoncelista israelense Danielle Akta e da pianista Revital Hachamoff. - De profundis: o Sinal de Paulinho no Retorno de Nietzsche. As palavras povoam o mundo, rumores em cascata. Não é possível ter sorte, há quem diga mesmo: nascer aqui já diz tudo. Antes assim, se não era a hora, ficou para depois, não agora, não foi pra isso que nasci e viver a narrar do nada travesseiro entre jaboticabeiras, pinheiros e eucaliptos. Na curva da vida nunca precisei reter a respiração, mesmo que a turbulência deixasse claro o que era de venturoso e infortúnio, de lisonjas e rejeições – todos estamos sujeito ao logro, aos vícios do amor. Não há como não topar com parvos e esnobes, epítetos, rótulos ou assombros, dá tudo no mesmo: fisionomias desertoras que rilham os dentes e imprecam com os pés fincados no chão remoendo inquietações e de sobreaviso com os truques, sabe-se lá do quê, as hostilidades avassaladoras dos olhos que me viram e sei já estão mortos desde antes. Eis que da flor da aurora inventada alguém me diz Orides Fontela: só porque erro encontro o que não se procura. Depois, um silêncio tumular... Após alguns momentos complementa a Memória dela: A cicatriz, talvez / não indelével / o sangue / agora / estigma. / Nunca amar / o que não / vibra / nunca crer / no que não / canta. / O espelho dissolve / o tempo / o espelho aprofunda / o enigma / o espelho devora / a face. Não dá para identificar direito o vulto daquela que soa agradável aos ouvidos, mesmo que insista amanhecer no meio da noite. De mim nada mais que uma dúzia vezes mil de erros e nenhum acerto, como se fosse caronista disperso – cada qual seu papel de louco na dança de roda ou numa jornada cujo mapa construído apenas a partir de cada passo, sobrevivente de abismos pelos trunfos sucedidos aos fracassos e confundidos com as funduras das muitas profundezas. Não há nem onde começou de tão inútil, ninguém precisa saber: a loucura salva.

 


Nada & fumaça... – Imagem do artista estadunidense Bruce Neuman. – Basta um estalo, ou piscar de olhos, o triz: e nada mais. Agora mesmo não sei mais por onde anda o Doro e só me lembrei dele porque folheei Fumaça pura (Bertrand Brasil, 2003), do escritor cubano Guillermo Cabreira Infante, e logo dei de cara: Viver também faz mal a saúde. É que entre os membros da tripulação de Colombo, também chegava ao Novo Mundo, o desafortunado Rodrigo de Xerez, espantadíssimo com os homens-chaminé: os indígenas fumavam, era a descoberta do tabaco. De volta à Espanha, encheu-se de empáfia numa demonstração pública, não se dando conta de quem ausente às línguas ferinas pelas costas reputações retorcidas e findam na sina patibular, vez que a audiência, vendo-o exalar fumaça por todos os orifícios, julgava ser ele afinado com o diabo, enquanto sua própria esposa deitava denúncia ao Santo Ofício que o condenou a vinte anos de cárcere. Ufa! Por pouco não virou fumaça nas fogueias católicas. Essa não foi a sorte do Doro ao manipular a Teibei: bastava uma golada no fumegante aperitivo e logo envultava por uns três ou quatro dias desaparecido desta dimensão, pelo menos. Desta vez não, parece que abusou da dose, pelo que soube, depois de encher o tampo e virar mais de litros da tirana: faz tempo que ele não dá as caras, significa que ainda não desenvultou. É o que dizem e não estou aqui para discordar. Deixá-lo para lá, melhor...

 


O motor das reviravoltas... Imagem: a arte da fotógrafa e atriz estadunidense Elizabteh Lee Miller (1907-1977) - Era outro de muitos sonhos e Perséfone com a magia do olhar de quem chega, desfilava a beldade dos seus quarenta e não sei quantos anos de tanto rir, deixando à mostra o espalhafato das ancas arredondadas de seu pódice majestoso em baixo do curto roupão. De lá para cá, curvava-se para me virar as faces e deixar-me o busto ilustre de proeminentes seios soltos sob a veste amarrada na cintura, a me dar a sensação daquela frescura de frutas colhidas no quintal. Era como vê-la sair dos banhos sulfurosos pelas fontes, alheia às intrigas criadas com suas carnes de mil olhos curiosos e indecentes. Mostrou-me uma planta rara e carnívora do Camboja - uma planta-jarro – e me aparecia como quem saísse da clausura dos dias para me provocar na composição de recônditos setígonos jamais revelados aos viventes. Era tudo muito envolvente e despertei na agonia da volúpia. Para meu espanto lá adiante reluzia a estátua de Cocteau a me dizer: Havia muitas coisas comoventes, pungentes ou estranhas que eu queria... Então me aproximei e fui conferir de perto, evitou-me o olhar: Eu sou uma abetarda, a mim ninguém me apanha... É melhor partir sem pesar desta terra que rola e esmaga os que desejam dominá-la. Sim, ela encerrava a aventura da alma humana e do seu olhar distante uma ave fabulosa desprezava o caçador de quem sempre escapava e logo se tornava nas cinzas espalhadas ao redor do leito fúnebre: a alma que libertava para o voo. Algo me dizia que ela não se afastava da terra, nem era capaz de alçar altos voos. Insisti do seu lado e logo ela ergueu os braços sobre a cabeça e me contou desapontada sobre a gonorreia no estupro aos 7 anos, a foto dos absorventes menstruais, o corte no pescoço pela agressão de Man Ray, as enfermas crianças de Viena, a miséria dos camponeses da Hungria, o banho na banheira do Führer... Baixou as vistas e me falou Rosa Montero: Os homens costumam chamar destino àquilo que lhes acontece quando perdem as forças para lutar... Aí me insinuei, beijei-lhe a face fria e senti a sua carne viva crescer na minha pele sussurrando Bartyra Soares: Um dia deixei a cidade... ousei ultrapassar seus limites, fui mais longe, descobri o realismo fantástico e, assim, mergulhei noutros mistérios e labirintos, segredos e sonhos, sempre à cata de histórias que, até hoje, embora esporadicamente, nunca mais deixei de contar. Ali, abraçando-a afetuosamente, ouvi seus relatos mais íntimos e nela me revelei completamente perdido, como se nada mais soubesse, afinal, ou a coisa toda não regulava sempre lá muito bem hoje em dia ou só sou eu alvo de insuportáveis aborrecimentos: a vida toda só foi passar vergonha. Nela eu podia mais que viver e vivi. Até mais ver.

 

Normalmente, quando você lê, tem mais tempo para pensar. A leitura oferece um botão de pausa único para a compreensão e a percepção. A leitura é uma ponte para o pensamento. A leitura muda nossas vidas e nossas vidas mudam nossa leitura.

Pensamento da professora estadunidense Maryanne Wolf. Veja mais aqui e aqui.