domingo, maio 15, 2022

MARUJA TORRES, EMILY ESFAHANI SMITH, MARUŠA KRESE, SUSANA SZWARC & ZABÉ DA LOCA

 

 

 

TRÍPTICO DQP: Valuna, estaca zero. Imagem: COLAM, ao som dos álbuns Da idade da pedra (2002), Zabé da Loca (MDA, 2003) e Bom todo (Crioula Record, 2008), da pifeira Zabé da Loca (Isabel Marques da Silva – 1924-2017), que viveu por mais de 25 anos na loca fechada por duas paredes de taipa num sítio de Monteiro-PB. – Ao despertar Valuna era Venúsia e o outro nome secreto dela: uma ilha com duas estátuas colossais no meu deserto atlântico. Sabia que ali era o lugar onde nasci, mas se parecia outro tão estranho; ela não, realmente tão indígena quanto deusa nórdica: as duas faces de uma mesma paixão desnuda, águas pelas pernas nas proximidades do equador. Se eu me achava perdido ali, lá estava ela, de fato, recostada e nua nos jardins de Fons Belli, como se fosse a Pauline de Canova, a Vênus Victrix do meu coração: um sorriso de Sol e um troféu na mão - a maçã da vitória de Afrodite no julgamento de Páris. Reacomodou-se, abriu-me os braços como se fosse a Estrela D’Alva, mostrando o caminho pelos canais ornados por orquídeas, begônias, amazonas, bacantes e deusas. Para ela segui, até alcançá-la. Seria o reencontro? Não sabia. Abraçou-me como quem felicitasse a minha presença e me levou pelo monte até a mansão de mármore na torre de bronze, rodeada por pomares de laranjeiras e limoeiros, limítrofe do trágico vulcão Toba. Na sua alcova, sentou-se na cama e puxou-me do lado para recitar Como?, de Susana Szwarc: Vamos ver a coisa real: / por exemplo o rio / - daqui até aqui / poderíamos inventar / uma porta para a casa / mas / não - vamos ver como um vento talvez causado pelo próprio rio / não arrasta um chapéu em direção ao seu centro / Vamos ver mais tarde outra coisa: / a chuva que começa inundando o chapéu / faz com que as águas subam a tal ponto / que nos é impossível continuar vendo / porque o real que saiu de seu canal nos afoga. Olhou-me profundamente, beijou-me as faces e nada mais disse: já era Vésper porque tudo parecia malogrado e partiu na velocidade orbital do asteroide. Deixou-me ali a vida noitadentro com todos os sonhos impossíveis da felicidade ambulante e um fedor de fosfina no ar. Se era o primeiro dia eu não sei, parecia-me milênios de convivência e a solidão.

 


O segundo sonho de Ix... – Era o segundo dia e um rio corria no sopé da montanha das boas entradas florestais. Dali eu via as calçadas de mármore do palácio real e era ela a linda rainha Zixi, que há séculos reinava no seu trono. Achegou-se como quem traz a vida mais para perto e me contou que Guðríður havia percorrido distâncias maiores que os passos e fora levada por seu pai para se casar com o príncipe reinante. Depois da cerimônia navegou para Vinland e, por conta de um naufrágio em plena lua de mel, enviuvou. Outras viagens feitas, o tempo passava entre dores e esperanças perdidas. Dela restava uma escultura de Laugarbrekka: retratada de pé em um navio, equilibrando no ombro o seu filho, uma mão apoiada na cabeça de um dragão e o olhar fixo no futuro. Sabia que era a história dela mesma, a outra de muitas que sempre foi. Deu-me um beijo nas faces e me chamou atenção para Minha geração de Maruša Krese: Não toque nas minhas coisas. / A vida está aprendendo agora. / Não me culpe mais. / No fundo, nunca nos livramos disso. / Como gatos jovens, já nos afogamos. / Quando meninas fomos defloradas, / meninos foram levados atrás do frio. / Como papagaios em conservatórios fechados. / Junto com o leite materno, eles nos alimentaram com medo / Marcados como herdeiros de jovens heróis, / retratados como mimados. / A cultura da alma é a burguesia, a / dúvida na vida é quase adultério. / As crianças são o seu otimismo, / por favor, tudo vai bem até lá. / Não se desespere, / você nos pediu para não viver. Uma lagrimou rolou na sua face serena e ali estava dado o sinal de que estaria só e à espera da minha chegada ali em Ix, a ilha a oeste de Sem-Terra, para me contar o seu segredo: diante do espelho uma velha horrorosa. Voltou-se chorosa, abracei-lhe. Fiz uma canção na sua carne e outros poemas com as nossas travessuras impunes das noitedias de sonhação. Não sei se ela se foi mais uma vez, a sensação que tenho até hoje é de que ela ficou em mim.

 


O terceiro de poucos dias... – Imagem: Tristan and Isolde (1910), do pintor espanhol Rogelio de Egusquiza (1845-1915). - Era o terceiro dia e ali um piso de mármore verde não me deixava perceber que não havia cantos nem ângulos. As paredes brancas davam numa cúpula de teto arqueado com uma coroa adornada de ouro e pedras preciosas, e me davam a impressão de que me encontrava numa gruta redonda cortada na lisa pedra branca. Estava deitado numa cama elevada e esculpida no centro de um cristal de rocha. Dava para ver a porta de bronze, presa por duas grandes barras, uma de cedro, a outra de marfim, e que só poderia ser aberta por dentro: porque o verdadeiro amor não pode ser forçado. Todo ambiente era iluminado pelas três pequenas janelas no alto dos paredões. Ela adentrou me chamando Tristão e eu esquecido quantos dragões havia enfrentado e sucumbia mortalmente ferido, enquanto ela prisioneira na torre da solidão, e que tudo se parecia com as narrativas de Gottfried von Strassburg pela região remota e montanhosa da Cornualha, uma história recontada e totalmente perdida como o Santo Graal. Sim, isso eu sabia: ela era agora Isolda, aquela que fugira dos ciúmes de seu esposo. Era como se revivêssemos a nossa Laranja Mecânica recorrente e ouvíssemos o eco da escritora espanhola, Maruja Torres: Os homens sempre gostaram de se reunir e discutir, e fingir que tomam decisões consensuais que farão do planeta um lugar melhor. Então a realidade vem e os derrota... A vida é como café ou castanhas no outono. Eles sempre cheiram melhor do que têm sabor. Ela me olhou com o brilho de todas as manhãs para me dizer que tudo flui do inesperado entre a porta aberta da espera e o adeus. Até mais ver.

 


Nossa cultura é obcecada pela felicidade, mas vejo que buscar um sentido é o caminho mais gratificante. E os estudos mostram que pessoas que encontram um sentido na vida são mais resilientes, se saem melhor na escola e no trabalho, chegam até a viver mais...

Pensamento da escritora, psicóloga e jornalista estadunidense Emily Esfahani Smith. Veja mais aqui e aqui.