SOU APENAS – O dia é mais que auspicioso apesar de, ora nublado, ora ensolarado;
é como se a manhã nos desse o prazer de ignorar o que há e o que está por vir. A
surpresa vem sempre desastrosa e quase previsível com o reino das tecnologias
só para quem tem e o meu povo às cabeçadas na fuga da quarentena
enlouquecedora, o noticiário desanimador, as estatísticas assombrosas e o
governante cada vez mais estúpido, como se inaugurasse o desmazelo e o faz de
conta na nossa tragicômica história. Todos só querem dinheiro e felicidade
urgente, não têm nada a ver com isso, os outros que fizeram a meleca de tudo e
empestaram a sobrevivência empenhada no crediário e vão todos à merda, quem se
importa. Eu que chore pelos que doem e não sabem, pelos que se matam e não sentem,
pelos que desmandam e não estão nem aí. O susto é de hora em hora, quem quer lá
saber. Quantos ainda não entenderam a pandemia nem nada do que já passou por
décadas e séculos de impostura e arranjados, tontos e às cegas, as capitais
soam fúnebres no trânsito louco, covas apressadas nas devastações e nem se sabe
do que morreram tantos entre falsidade ideológica e subnotificação. O que há de
imprevidência e omissão, todos os recordes. Vão-se os tempos e nenhum espaço é
seguro, tudo pela e para a última hora da morte nos arredores da minha solidão.
Ah, tem quem preste e quem não preste em todo canto, os achegados que
comemorem. A vida não é só agora e o que passou, nunca se sabe, pouco importa. Não
há o que perdoar nem motivo para o perdão que sequer se saiba. A cidade é o meu
coração em polvorosa, o Sol é quente nas filas dos bancos, dos supermercados e
das lotéricas. Sou apenas o olhar para sentir, nada mais. © Luiz Alberto
Machado. Direitos reservados. Veja mais abaixo e aqui.
DITOS & DESDITOS: [...] O condicionamento em escala é essencial para
a nova ciência do comportamento humano de engenharia maciça [...] Somente o indivíduo não pode arcar com o
ônus da justiça, assim como um trabalhador individual nos primeiros anos do
século XX poderia arcar com o ônus de lutar por salários justos e condições de
trabalho […] Há um século, os
trabalhadores organizados para ação coletiva e, finalmente, derrubaram a
balança de poder [...] os 'usuários' de hoje
terão que se mobilizar de novas maneiras. [...]. Trechos extraídos
da obra The Age of Surveillance Capitalism: The
Fight for a Human Future at the New Frontier of Power (PublicAffairs, 2018),
da escritora e filósofa estadunidense e professora Ph.D. em Psicologia Social, Shoshana
Zuboff, uma das primeiras mulheres a ser professora titular
na Harvard Business School. A obra trata sobre a revolução digital, a evolução do capitalismo, o
surgimento histórico da individualidade psicológica e as condições para o
desenvolvimento humano, em que aborda sobre o capitalismo de vigilância, poder
instrumentista, a divisão da aprendizagem na sociedade, economias de ação, os
meios de modificação de comportamento, civilização da informação, computador
trabalho mediado, a dialética automatizar/informar, a abstração do trabalho e a
individualização do consumo, porpondo a descrição de uma civilização dominada pelo Vale do Silício e seu aparato de vigilância e a ideologia
do instrumentarismo.
OUTROS
DITOS
Cinco minutos são
suficientes para sonhar uma vida inteira, tão relativo é o tempo... Toda vez
que você se apaixonar, não explique nada a ninguém, deixe o amor invadir você
sem entrar em detalhes... Você não deve prometer nada porque promessas são
grilhões horríveis, e quando você se sente preso você tende a se libertar, e
isso é fatal... Afinal, a morte é apenas um sintoma de que houve vida...
Pensamento do escritor e
ensaísta uruguaio Mario Benedetti (1920-2009). Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui & aqui.
PERDER
A MÃE, DE SAIDIYA HARTMAN
[...]
Se eu esperava me desviar da sensação de ser
uma estrangeira no mundo ao vir para Gana, a decepção me esperava. E suspeitei
disso muito antes de chegar lá. Ser uma estrangeira não se refere unicamente a
familiaridade, pertencimento e exclusão, pois também envolve uma relação
particular com o passado. Se o passado é outro país, então sou sua cidadã. Eu
sou a relíquia de uma experiência que a maioria preferiu não lembrar, como se a
pura vontade de esquecer pudesse resolver ou decidir a questão da história. Eu
sou a lembrança de doze milhões que cruzaram o Atlântico e de que o passado ainda
não acabou. Eu sou a prole dos cativos. Eu sou o vestígio dos mortos. E a
história é como o mundo secular cuida dos mortos [...] Não se pode perguntar “Quem é Vênus?” porque seria impossível responder
a essa pergunta. Há centenas de milhares de outras garotas que compartilham
suas circunstâncias, e essas circunstâncias geraram poucas histórias. E as
histórias que existem não são sobre elas, mas antes sobre a violência, o
excesso, a falsidade e a razão que se apoderaram de suas vidas,
transformaram-nas em mercadorias e cadáveres e identificaram-nas com nome
lançados como insultos e piadas grosseiras. O arquivo, nesse caso, é uma
sentença de morte, um túmulo, uma exibição do corpo violado, um inventário de
propriedade, um tratado médico sobre gonorreia, umas poucas linhas sobre a vida
de uma prostituta, um asterisco na grande narrativa da História [...]. O
romance de resistência que fracassei em narrar e o evento de amor que me
recusei a descrever levantam questões importantes sobre o que significa pensar
historicamente sobre assuntos ainda contestados no presente e sobre a vida
erradicada pelos protocolos de disciplinas intelectuais. O que é necessário
para imaginar um estado livre ou para contar uma história impossível? [...]
É preciso que o futuro da abolição seja performado primeira na folha de papel?
Ao me afastar da história dessas duas garotas, será que eu estava sustentando
as regras da corporação histórica e as “certezas fabricadas” de seus assassinos
e, ao fazê-lo, eu não tina selado seu destino? Não tinha também relegado as
duas ao esquecimento? No final das contas, foi melhor deixá-las como as
encontrei? [...]
Trechos extraídos da obra Perder a mãe:
uma jornada pela rota atlântica da escravidão (Bazar do Tempo, 2021), da
escritora e professora estadunidense Saidiya Hartman.
O
QUE O DIA DEVE A NOITE, DE YASMINA KHADRA
[...] A vida é um trem que não
para em nenhuma estação; ou você salta para longe ou fica parado na plataforma
observando-o passar. [...] Aquele que perde a mais bela história de sua
vida será tão velho quanto seus arrependimentos e todos os suspiros do mundo
não serão capazes de acalmar sua alma. [...] Para um homem pensar que
pode cumprir seu destino sem uma mulher é um mal-entendido, um erro de cálculo;
é imprudente e tolo. Certamente uma mulher não é tudo, mas tudo depende dela.
[...] Se você quer que sua vida seja uma pequena parte da eternidade, que
seja lúcido mesmo no coração da loucura, ame... Ame com todas as suas forças,
ame como se fosse tudo o que você sabe fazer, ame o suficiente para deixar os
próprios deuses com ciúmes... pois é no amor que toda feiura revela sua beleza.
[...].
Trechos extraídos da obra What the Day Owes the Night (Vintage, 2011), do escritor argelino Yasmina Khadra (Mohammed
Moulessehoul). Veja mais aqui.



