quinta-feira, dezembro 31, 2015

MONTALE, TUTAMEIA DE GUIMARÃES ROSA, BLANCHOT & MARIA MISS


VAMOS APRUMAR A CONVERSA? FELIZ ANO NOVO TODO ANO (Ouvindo Koln Concert, de Keith Jarret) Quando me sentei para escrever esse texto, zilhões de coisas me passavam pela cabeça. Coisas de mim, do que passei, do que fiz, aprendi, sonhei, desejei, perdi, relevei. Entretanto, logo que comecei a redigir fui divagando por devaneios que poderiam ter sido possíveis e não foram, sonhos que vingaram, pesadelos reais, errâncias, tropeços. Ao invés disso, a emoção tomou conta porque fui contemplado pelo amanhecer irradiando pra mim um outro sentido pra vida. Quão linda é a alvorada que mostrava pra mim poder a vida ser tão maravilhosa quanto e que podemos, com essa lição, construir um mundo melhor para todos nós: o Sol nasce para todos. Que importa o não alcançado ou do que não fiz por merecer, se me vejo sortudo por tudo que amealhei ou deixei escapar entre os dedos; ou se na luta fui pouco ou nada, se me tenho por flor que não serve pra cheirar, ou valia qualquer além do que tenho no coração e nas mãos pra dar. Tenho comigo que posso ir além do que já fui e mais adiante. Não importam as punhaladas, puxadas de tapetes, escanteamentos se já vi de tudo e ainda não é nada perto do que tenho por ver e sentir. Decepções, enganos, frustrações, são tão lá menores que jamais obstam a caminhada adiante, seguindo os raios do Sol nessa manhã revelada. E seguirei meio dia até o entardecer para outro lindíssimo espetáculo imperdível glorificando o meu dia. Onde eu estava ontem e anteontem e outros dias atrás que não vi tudo isso? Pois é, se passa batido, contudo, nunca é tarde para aprender a lição do dia para viver a noite com todas as reflexões profundas que nos fazem melhores que as mesquinharias inócuas, engodos e patifarias inúteis e desprezíveis, alimentando nosso solipsismo, ou melhor, o umbigocentrismo e a premente necessidade de sermos felizes a qualquer custo e forma, até em detrimento dos outros. Esse ensinamento me diz que está em mim, em você, em todo mundo o poder de sermos melhores do que somos. Tenhamos ou não a compreensão de sermos Deus em manifestação, no mínimo, tenhamos a consciência de que temos o poder de sermos aquilo que queremos ser no real de ser o ideal. E isso é mais que privilégio, é um degrau para que sejamos realmente seres humanos e não aqueles que precisam de grifes, posses, ideologias, fantasias e tudo para mostrar o que não é, na incapacidade de encarar o espelho da verdade e na escolha da mentira de sermos os racionais menores que o nosso animal de estimação, ou que uma cobra que nos ameaça morder, ou uma barata que nos causa asco e nos amedronta. Sim, estou falando com você. Na verdade, estou falando comigo mesmo que também sou eu e você, dialogando com o que podemos ver de diferente num aprendizado mútuo e até indagando da dificuldade de viver e ser feliz por nossa pura inabilidade de administrar nossos sentimentos ou pela incapacidade de incluir os outros nos nossos planos para aquisição dessa felicidade. Tenho pra mim que os sentimentos que batem aqui dentro de mim, também se passam talqualzinho em você e em todo mundo. É possível visualizar quantos sonhos e emoções se passam em cada um de nós. A bem dizer, a vida é bela e não seria nada se apenas eu sozinho pudesse desfrutá-la. Preciso, precisamos de mais gente para viver e juntos alcançar os objetivos que almejamos e, principalmente, porque podemos edificar um mundo melhor para todos nós. Basta que o EU seja NÓS e todos juntos UM. Da minha parte, farei um 2016 com o meu sorriso, elegendo-o o meu ano do sorriso. Vamos sorrir juntos? Feliz Ano Novo! 

DITOS & DESDITOS - O que importa não é dizer, é redizer e, nesse redizer, dizer a cada vez ainda uma primeira vez. Pensamento do escritor, ensaísta, romancista e crítico literário Maurice Blanchot (1907-2003). Veja mais aqui, aqui e aqui.

ESSES LOPESMá gente, de má paz; deles, quero distantes léguas. Mesmo de meus filhos, os três. Livre, por velha nem revogada não me dou, idade é a qualidade. Amo um homem, ele vive de admirar meus bons préstimos, boca cheia d’água. Meu gosto agora é ser feliz, em uso, no sofrer e no regalo. Quero falar alto. Lopes nenhum me venha, que às destadas escorraço. Para três, o que passei, foi arremedando e esquecendo. Ainda achei o fundo do meu coração. A maior prenda, que há, é ser virgem. Mas, primeiro, os outros obram a história da gente. Eu era menina, me via vestida de flores. Só que o que mais cedo reponta é a pobreza. Me valia ter pai e mãe, sendo órfã de dinheiro? Mocinha fiquei, sem da inocência me destruir, tirava junto cantigas de roda e modinhas de sentimento. Eu queria me chamar Maria Miss, repromovo meu nome, de Flausina. Deus me deu esta pintinha preta na algura do queixo – linda eu era até a remirar minha cara na famela dos porcos, na lavagem. E veio aquele, Lopes, chapéu grandão, aba desabada. Nenhum presta; mas esse, Zé, o pior, rompete sedutor. Me olhava: aí eu espiava e enxergada, no ter de me estremecer. A cavalo ele passava, por frente de casa, meu pai e minha mãe saudavam, soturnos de outro jeito. Esses Lopes, raça, vieram de uma ribeira, tudo adquiriam ou tomavam. Não fosse Deus, e até hoje mandavam aqui, donos. A gente tem é de ser miúda, mansa, feito botão de flor. Mãe e pai não deram para punir por mim. Aos pedacinhos, me alembro. Mal com dilato para chorar, eu queriaenxoval, ao menos, feito as outras, ilusão de noivado. Tive algum? Cortesias nem igreja. O homem me pegou, com quentes mãos e curtos braços, me levou para uma casa, para a cama dele. Mais aprendi lição de ter juízo. Calei muitos prantos. Aguente aquele caso corporal. Fiz que quis: saquei malinas lábias. Por sopro do demo, se vê, uns homens caçam é mesmo isso, que inventam. Esses Lopes! – com eles, nenhum capim, nenhum leite. Falei, quando dinheiro me deu, afetando ser bondoso: - “Eu tinha três vinténs, agora tenho quatro...” Contentado ele ficou, não sabia que eu estava abrindo e medindo. Para me vigiar, botou uma preta magra em casa, Si-Ana. Entendi? A que eu tinha de engambelar, por arte de contas; e à qual chamei de madrinha e comadre. Regi de alisar por fora a vida. Deitada é que eu achava o somenos do mundo, camisolas do demônio. Ninguém põe ideia nesses casos: de se estar noite inteira em canto de catre, com o volume do outro cercando a gente, rombudo, o cheiro, o ressonar, qualquer um é alheios abusos. A gente, eu, delicada moça, cativa assim, com o abafo daquele, sempre rente, no escuro. Daninhagem, o homem parindo os ocultos pensamentos, como um dia come o outro, sei as perversidades que côncava? Aquilo tange as canduras de noiva, pega feito doença, para a gente em espirito se transpassa. Tão certo como eu hoje estou o que nunca fui. Eu ficava espremida mais pequena, na parede minha unha riscava rezas, o querer outras larguras. Tracei as letras. Carecia de ter o bem ler e escrever, conforme escondida. Isso principiei – minha ajuda em jornais de embrulhar e mais com as crianças de escola. E dê-cá dinheiro. O que podendo dele tudo eu para mim regrava. Mealhava. Fazia portar escrituras. Sem acautelar, ele me enriquecia. Mais, enfim que o filho dele nasceu, agora já tinha em mim a confiança toda, quase. Mandou embora a preta Si-Ana, quando levantei o falso alegado: que ela alcovitava eu cedesse vezes carnais a outro, Lopes igual – que da vida logo desapareceu, em sistema de não-se-sabe. Dito: meio se escuta, dobro se entende. Virei cria de cobra. Na cachaça, botava sementes da cabaceira-preta, dosezinhas; no café, cipó timbó e saia-branca. Só para arrefecer aquela desatada vontade, nem confirmo que seja crime. Com o tingui-capeta, um homem se esmera, abranda. Estava já amarelinho, feito ovo que ema acabou de pôr. Sem muito custo, morreu. Minha vida foi muito fatal. Varri casa, joguei o cisco para a rua, depois do enterro. E os Lopes me davam sossego? Dois deles, tesos, me requerendo, o primo e o irmão do falecido. Mexi em vão por me soltar, dessas minhas pintadas feras. Nicão, um, mau me emprazou: — “Despois da missa de mês, me espera…” Mas o Sertório, senhor, o outro, ouro e punhal em mão, inda antes do sétimo dia já entrava por mim a dentro em casa. Padeci com jeito. E o governo da vida? Anos, que me foram, de gentil sujeição, custoso que nem guardar chuva em cabaça, picar fininho a couve. Tanto na bramosia os dois tendo ciúme. Tinham de ter, autorizei. Nicão a casa rodeava. Ao Sertório dei mesmo dois filhos? Total, o quanto que era dele, cobrei, passando ligeiro já para minhas posses; até honra. Experimentei finuras novas — somente em jardim de mim, sozinha. Tomei ar de mais donzela. Sorria debruçada em janela, no bico do beiço, negociável; justiçosa. Até que aquela ideia endurecesse. Eu já sabia que ele era Lopes, desatinado, fogoso, água de ferver fora de panela. Vi foi ele sair, fulo de fulo, revestido de raiva, com os bolsos cheios de calúnias. Ao outro eu tinha enviado os recados, embebidos em doçuras. Ri muito útil ultimamente. Se enfrentaram, bom contra bom, meus relâmpagos, a tiros e ferros. Nicão morreu sem demora. O Sertório durou, uns dias. Inconsolável chorei, conforme os costumes certos, por a piedade de todos: pobre, duas e meio três vezes viúva. Na beira do meu terreiro. Mas um, mais, porém, ainda me sobrou. Sorocabano Lopes, velhoco, o das fortes propriedades. Me viu e me botou na cabeça. Aceitei, de boa graça, ele era o aflitinho dos consolos. Eu impondo: — “De hoje por diante, só muito casada!” Ele, por fervor, concordou — com o que, para homem nessa idade inferior, é abotoar botão na casa errada. E, este, bem demais e melhor tratei, seu desejo efetuado. Por isso, andei quebrando metade da cabeça: dava a ele gordas, temperadas comidas, e sem descanso agradadas horas — o sujeito chupado de amores, de chuchurro. Tudo o que é bom faz mal e bem. Quem morreu mais foi ele. Daí, tudo tanto herdei, até que com nenhum enjoo. Entanto que enfim, agora, desforrada. O povo ruim terminou, aqueles. Meus filhos, Lopes, também, provi de dinheiro, para longe daqui viajarem gado. Deixo de porfias, com o amor que achei. Duvido, discordo de quem não goste. Amo, mesmo. Que podia ser mãe dele, menos me falem, sou de me constar em folhinhas e datas? Que em meu corpo ele não mexa fácil. Mas que, por bem de mim, me venham filhos, outros, modernos e acomodados. Quero o bom-bocado que não fiz, quero gente sensível. De que me adianta estar remediada e entendida, se não dou conta de questão das saudades? Eu, um dia, fui já muito menininha… Todo o mundo vive para ter alguma serventia. Lopes, não! — desses me arrenego. Conto extraído da obra Tutameia (José Olympio, 1976), do escritor, médico e diplomata João Guimarães Rosa (1908-1967). Veja mais aqui.

MARIA MISS – Peça teatral baseada no conto Esse Lopes (Tutameia – José Olympio, 1976), de João Guimarães Rosa, adaptada por Evill Rebouças, contando a história de Flausina que, em menina, essa sertaneja sensível, ligeira e sonhadora, teve a virgindade negociada pelos pais e foi destinada a conviver com quatro irmãos e um primo da família Lopes. O destaque da peça fica por conta da atriz Tania Castello.

POEMAS - DEPOIS DA CHUVA: Sobre a areia molhada surgem ideogramas / de pés de galinha. Olho para trás / mas não vejo nem santuário nem asilo de aves. / Terá passado um ganso cansado, ou talvez manco. / Não saberia decifrar aquela linguagem / ainda que fosse chinês. Uma simples aragem / a apagará. Não é verdade / que a Natureza seja muda. Fala ao deus-dará / e a única esperança é que não se ocupe / muito da gente. DIVINDADES INCÓGNITAS: Dizem / que de divindades terrestres entre nós / se encontram cada vez menos. / Muitas pessoas duvidam / de sua existência nesta terra. / Dizem / que neste mundo ou no de cima existe uma só ou nenhuma; / crêem / que os sábios antigos eram todos uns loucos, / escravos de sortilégios se diziam / que algum incógnito / os visitava. / Eu digo / que imortais invisíveis / aos outros ou talvez inconscientes / de seus privilégios, / divindades em jeans e com suas mochilas, / sacerdotisas em gabardine e sandálias, / pitonisas de ar absorto à fumação de um fogo de pinhões, / numinosas visões não irreais, tangíveis, / intocadas, / vi muitas vezes / mas sempre tarde demais se tentava / desmascará-las. / Dizem / que os deuses não descem neste mundo, / que o criador não cai de pára-quedas, / que o fundador não funda porque ninguém / jamais o fundou ou fundiu / e que nós não somos mais do que os desastres / de seu nulificante magistério; contudo / se uma divindade, mesmo de ínfimo grau, / alguma vez me roçou / o arrepio que senti me disse tudo e no entanto / faltava-me reconhecê-la e o não existente / ser se esvanecia. EPIGRAMA: Sbarbaro, menino inspirado, dobra multicores / papéis e extrai barquinhos que confia à lama / movediça de um regato; olha-os indo embora. / Sê precavido por ele, cavalheiro que passas: / com a tua bengala alcança a delicada flotilha, / que não se perca; e chegue a um portinho de pedras. QUASE UM DEVANEIO: Renasce o dia, pressinto-o / no alvor de prata gasta / pelos muros: / Uma luz frouxa listra as janelas fechadas. / Retorna o acontecimento do sol / mas sem as vozes difusas, / os estrépitos habituais. / Por quê? Penso em um dia enfeitiçado / e da ronda das horas sempre iguais / me desforro. Transbordará a força / que em mim crescia, inconsciente mago, / há tanto tempo. Então me assomarei à janela, / farei sumir as altas casas, as alamedas vazias. / Terei diante de mim uma paisagem de neve intacta / mas suave como se numa tapeçaria. / Deslizará no céu flocoso um raio tardio. / Prenhes de luzes invisíveis selvas e colinas / me farão o elogio dos alegres regressos. / Lerei feliz os negros / sinais dos ramos contra o branco / como um alfabeto essencial. / Todo o passado de uma só vez / se fará presente. / Som algum turbará / essa alegria solitária. / Riscará o ar / ou pousará numa estaca / alguma pega. A FELICIDADE: Ontem senti que o inverno me havia / reservado uma alegre surpresa. / Revelavas meus pensamentos em voz alta. / — E se a vida fosse um mistério vão? / — Fica em teu exílio, não sejas cruel / para com aquele vago sentido de esperança / que é tudo que nos resta. Coisa diversa / é a felicidade. Existe, talvez, / mas não a conhecemos. NUMA CARTA NÃO ESCRITA: Por um formigueiro de auroras, por uns poucos / arames em que se prende / a lá da vida e se enrola / em horas, anos, hoje os golfinhos aos pares / cabriolam com as crias? Oh que eu não ouça / nada de ti, que eu fuja ao fulgor / da tua fronte. É diferente na terra. / Desaparecer não sei, nem tornar a olhar; tarda / a fornalha vermelha / da noite, a tarde se faz longa, / a súplica é suplício e não ainda / entre as rochas que afloram te chegou / a garrafa do mar. A onda vazia / quebra-se contra o cabo em Finisterra. DOR DE VIVER: Eu muitas vezes encontrei a dor: ao vivo / era o rio agonizante e atormentado; / a chama se contorcendo na pira; / cabelos na estrada, inúteis, quebrados. / Prazer eu não sabia. Apenas o milagre / que a indiferença divina funciona: / a estátua ergue-se entre a sonolência / Tórrido, com a nuvem e a pipa. QUASE UMA FANTASIA: Amanhece de novo, eu sinto / pelo alvorecer da velha / Prata nas paredes: / as janelas fechadas estão cheias de um brilho fraco. / O advento do sol retorna / mas sem as vozes vagas, / os acidentes normais. / Por quê? Eu penso em um dia encantado / e as justas de horas também iguais / Eu desisto. / Ele vai transbordar a força que me inflamou, / Mágico inconsciente, de muito tempo. / Agora vou aparecer, vou destruir casas altas, / detritos da estrada. / Eu terei diante de mim um lugar de neve limpa / mais leve como a paisagem de uma tapeçaria. / Ele vai deslizar um flash lento / entre o algodão do céu. / Selvas e colinas cheias de luz invisível / eles me elogiarão pelos retornos festivos. / Fico feliz que vou ler no branco / os signos negros dos galhos / como um alfabeto essencial. / Todo o passado aparecerá de repente na frente. / Nenhuma alegria solitária perturbará qualquer som. / Ele vai cruzar o ar por ficar em uma estaca / Algum pau de março. Poemas do poeta, prosador, jornalista e tradutor italiano Eugenio Montale (1896-1981), Prêmio Nobel de 1975. Veja mais aqui.





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