segunda-feira, março 18, 2019

ERIK SATIE, MALLARMÉ, SUZANNE VALADON, KATHARINE BRUSH, SÍLVIO HANSEN & ÚNICO AMOR



ÚNICO AMOR – A vida de Honfleur, para quem veio criança órfã de lá de Pont-l’Evêque, criado pelo tio boêmio que inventava navios inúteis e carros bonitos para ninguém guiar. Herdou dele a fantasia, afora a imaginação aos voos com as leituras de Andersen. Aprendeu piano, sem quase saber do pai, de Olga ou Conrad, seus irmãos. Adolescente em Paris ingressou no conservatório para ser humilhado pelos professores: um metro e sessenta centímetros de mediocridade e preguiça, sujeito imprestável sem o menor senso de ridículo. Procurava emprego se apresentando como Gymnopedista. Enfim, conseguiu emprego de pianista no Chat Noir, morando em um quarto pequeno de Montmarte. Depois, no Auberge du Clou, conheceu Claude e, em seguida, Maurice. Para eles expôs o que havia de insólito, ilógico, ambivalente, enigmático, irreverente, mordaz místico, todo seu teatro do absurdo no minimalismo musical, repetitivo. Surgia Gymnopédies ou Três Peças em Forma de Pera, uma obra com título estranho derivado do antigo festival grego Gymnopaedia, dedicado ao deus Apollo, no qual jovens nus dançavam ao som da música de flauta e lira. Na sua loucura hermética fundou sua própria igreja, L'Eglise Métropolitaine d'Art de Jésus Conducteur: era o único membro e excomungava quem discordasse. Compôs as Trois Gnossiennes, um conjunto de composições para piano. De repente, alguém chegou à sua vida como a tempestade. Era a vizinha, uma paixão. Ao primeiro contato com ela, pediu-lhe a mão em casamento. Nem sabia quem era. E ela, uma bela filha duma lavadeira de pai desconhecido, acrobata desde menina com sequelas da queda. A enfeitiçante boniteza dela estava exposta como garçonete em cafés e modelo para pintores como Renoir, Tolouse-Lautrec, Degas, Puvis de Chavannes. Era a Biqui dele, a musartista, que reluzia como a rainha da boêmia no Société Nationale des Benaux-Arts. Era caprichosa, extravagante, carregava cenouras e cuidava de gatos e de uma cabra num escritório. Era levada pela estética de Pont-Aven e a má reputação dos bares. Ele a amava, o amor e a descoberta: ela pintava e fez o retrato do amado. Idílio infinito, avassalador. Durou seis meses apenas, o coração partido, a solidão e mais de trezentas cartas de amor, o único amor dele, Biqui, ah Biqui. Ela casou-se com outro. Ele então se mudou com sua irreverência e excentricidade para o subúrbio, caminhando longamente, nove quilômetros todos os dias para tocar em Montmartre. Escrevia e caricaturava a si e aos outros. Rascunhava e da sua caligrafia autobiográfica surgiu Mémoires d'um Amnésique, Escritos em forma de Grafonola e Cahiers d'un Mammifére, um livro com poemas, canções e relatos que revelam sua irônica verve. Ficou famoso por suas estranhezas: possuía doze ternos de cinza de veludo idênticos e colecionava guarda-chuvas e cachecóis: Embora sejam falsas as nossas informações, nada podemos garantir. Era maníaco por comida branca, sempre um prato com ovos, arroz, coco, nabo, peixe, queijo. Detestava o sol, na solidão e maturidade. Foi, então, que ingressou na Paris Schola Cantorum e estudou contraponto e orquestração. As suas partituras continham anotações com instruções na interpretação, todo mundo espantado. Inventou a música ambiente, usada como mobília, neutralizando os ruídos da rua com seus naturais e estranhos silêncios e barulhos: a sua musique d'ameublement. O público atento à performance e ele nervoso: Falem alguma coisa! Mexam-se! Não fiquem aí parados só escutando! Não era piada e ninguém entendeu. Ele aboliu as estruturas sofisticadas e complexas, despojando-se em forma simples, o seu minimalismo: Vexations, trinta e dois compassos repetidos oitocentas e quarenta vezes. Escreveu a comédia lírica em um ato A armadilha de Medusa, precursora do teatro dadaísta e do teatro do absurdo, bem como portadora da verdadeira música do surrealismo, platitudes e lugares-comuns. E compôs a ópera Geneviève de Brabant. Na amizade se avalia da de Pablo, grandes amigos, corroborou na revolução cubista. E Jean. O trio trabalhou no ballet Parade, pro Ballet Russo de Diaghilev. Ao compor a música inovadora, incorporou sirene, tiros de pistolas e uma máquina de escrever. Um escândalo por explorar o mundo dos sonhos e do subconsciente, não menos pelo cenário e vestuário de Pablo, como pelo argumento escrito por Jean: o surrealismo para Appolinaire. Com o drama sinfônico para quatro sopranos e pequena orquestra, Socrate, textos platônicos e extrema austeridade: a mudança de estilo que ganhou desprezo. Para críticos e compositores, sua obra não passava de miniaturas musicais com harmonias estranhas, escalas pouco convencionais e ausência de virtuosismo instrumental, justamente por possuir recursos técnicos insatisfatórios e sua deficiente formação de compositor e pianista. Era escárnio. Mas ele sabia das suas debilidades. O Gymnopédiste estava enclausurado por quase quinze anos sem compor, regressou à vida noturna parisiense com sua Música de Mobiliário. E vieram Sonatina Burocrática, Vestido de Cavalo, A Bela Excêntrica, Esboço e Provocações de um Gordo Bonachão de Madeira. Vagava incansável: inundado por uma solidão glacial que enche a cabeça de vazio e o coração de tristeza. Ah, Biqui, a vida entre os guarda-chuvas, lenços, colarinhos, tiras de papel, desenhos, partituras, dois pianos desafinados e amarrados por cordas, a pobreza, a cirrose e nada mais, até se render à morte, enquanto ela navegava pelo céu de Montmartre com outros amores. Dele apenas anotações em pedaços de papel: O meu nome é Erik Satie, tal como todas as outras pessoas. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais abaixo e aqui.

DITOS & DESDITOS:
[...] Servia coristas e estudantes, matronas jovens e alegres, jovens amantes ainda mais alegres, uma senhora que se divorciara de quatro maridos, outra que havia apunhalado alguém, a noiva mais ou menos secreta de um nome dos mais distintos e o cérebro de um bando de contrabandistas de álcool. Via coisas... Viu uma face amarela, onde a tinta secara. Viu quatro equimoses minúsculas, tais como poderia ter sido deixadas por dedos sobre um braço. Viu uma rapariga bater em outra, sem ser por brincadeira. Viu um maço de cartas que um homem preferira não ter escrito, guardado, escondido, no fundo de uma bolsa de brocado [...].
Trecho do conto Night Club (Ediouro, 2004), da escritora estadunidense Katharine Brush (1902-1952).

A ARTE DE SUZANNE VALADON
Não se pode fazer nada muito bem a não ser com muito amor.
A arte da  pintora francesa pós-impressionista Suzanne Valadon (1865-1938), único amor do compositor e pianista francês Erik Satie (1866-1925). Sobre o romance de ambos, o cineasta canadense Tim Southam dirigiu Satie & Suzanne (1994), contando as memórias agridoces do compositor com a sua amada, num café parisiense, enquanto as águas do rio Sena transbordavam.
A pintora foi uma personalidade marcante na cena artística parisiense antes do cubismo, tendo sido acrobata, garçonete e modelo dos pintores Renoir, Degas e Toulouse-Lautrec.
Foi a primeira mulher admitida na Société Nationale des Beaux-Arts. Sobre sua vida foi publicada a obra Suzanne Valadon (Martins Fontes, 1989), de Jeanne Champion e, também, Suzanne: of love and art (1959), de John Storm com ilustração da própria artista. Veja mais aqui e aqui.

A MÚSICA DE ERIK SATIE
A música do compositor e pianista francês Erik Satie (1866-1925) está no cenário da vanguarda parisiense do início do século XX, sendo ele o precursor dos movimentos minimalista, do teatro do absurdo, da música repetitiva e do ragtime, este último um estilo pré-jazz. Ele exerceu influência até tornar-se cult entre os contemporâneos Debussy e Ravel, mudando o curso da história da música. É autor de obras como Gymnopédies ou Três Peças em Forma de Pera (1888), Gnossiennes (1890), Sonatina Burocrática, Vestido de Cavalo, A Bela Excêntrica, Esboço, Provocações de um Gordo Bonachão de Madeira, Canções, Socrate, Jack in the Box e da ópera Geneviève de Brabant, entre outras. É também autor da comédia lírica em um ato A armadilha de Medusa, de 1913, precursora do teatro dadaísta e do teatro do absurdo, bem como portadora da verdadeira música do surrealismo, carregadas de platitudes e lugares-comuns. Veja mais aqui.
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A arte do artista visual Sílvio Hansen aqui, aqui, aqui e aqui.
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A obra do poeta e crítico literário francês Stéphane Mallarmé (1842-1898) aqui, aqui, aqui & aqui.