quarta-feira, janeiro 20, 2021

ERNESTO CARDENAL, QURRATULAIN HYDER, JACQUES MONOD, KARINE SAPORTA, KAMILLE CARVALHO & AS FILHAS DA DOR

 

 

TRÍPTICO DQC: O SEGREDO DO ENCONTRO - Ao som de Stravinsky: Petrouchka (Universal/Decca, 2019), com a pianista e compositora francesa Yvonne Loriod (1924-2010) & Orchestre Des Cento Soli, Rudolf Albert. - Seja bem-vinda, pode entrar sem bater. Eis-me aqui, em carne, ossos e fracassos. Sou porta ao escancaro e não repare a bagunça, a anárquica arrumação e o lastimável desamparo. Não sou bem assim, levo a vida e nem sei direito, sinto além do que consigo suportar. Celebro meus defeitos, não posso negá-los, nem ser diferente do que sou: vou muito além do que posso. Sou um homem comum e qualquer, não guardo mágoas nem rancor; asseguro de antemão: não tenho a menor coerência. Não desafio a sabedoria das ruas, ando sempre apressado e de sorriso aberto, muito embora ninguém tenha me avisado como foi que dormiu a noite anterior. Saúdo os vivos e os mortos, que os tenha em bom lugar. Carrego a culpa de sonhar demais e, invariavelmente, quebrar a cara: sou mais onírico que real; quando não, patético. Sei que o que é ruim inevitavelmente tende a piorar como se não tivesse mais jeito, mas sou refratário a resmungos - para ter o que tenho tive que levar na marra, sangue e suor à beça e desconfio que se escapar com vida farei tudo que penso e desejo. A vida, como soube de Deleuze & Guattari: A vida está sempre em aberto: seu impulso não é alcançar um fim, mas continuar seguindo em frente. A planta, o músico ou o pintor, ao seguirem em frente, arriscam uma improvisação. Assim voo, como a jornalista indiana Qurratulain Hyder (1926-2007), com: Estudos em uma cultura agonizante. Minha preocupação com os valores da civilização sobre os quais continuo escrevendo pode parecer ingênua, confusa e simplista. Mas então, talvez, eu seja como aquele passarinho que estupidamente levanta suas garras, esperando que isso impeça o céu de cair. Sim, satisfeito ninguém está, nem dou crédito ao que se fala por aí, pro gasto exilado lá estou por aí, até lá.

 


DOIS: ARDISTÃO & A CIDADE DOS MORTOS – Ao som de Inori, adorations for one or two solists and orchestra (1973/1974), de Karlheinz Stockhausen, com Elizabeth Clarke e Alain Louafi, solisti Suzanne Stephens, Japanese rin Maria Bergmann, pianoforte The Symphony Orchestra of the Southwest German Radio. – Despertava no meio da noite, um lugar estranho: que lugar é este, não sei. Olhei em volta e ao longe uma cidade aos pés de um morro, parece, não dá pra ver direto. Observei intrigado. Ao tentar me levantar do chão, toquei a mão em dois volumes do Ardistan und Dschinnistan (1909 - IGEL Verlag Literatur & Wissenschaft, Hamburg, 2013), do escritor alemão Karl May (1842-1912). Hem? Ao folhear um dos volumes, um mapa escapuliu ao vento. Fui pegá-lo e era a reprodução de um outro que se encontrava impresso no livro. Comparei os dois, a mesma dimensão. No do livro, apenas indicava o nome Ardistan e tudo o mais em branco; enquanto no mapa avulso, Takistan, com nomeação de outras partes. Mais adiante encontrei uma foto tirada da mesma posição onde eu estava. Intrigado, comecei a ler: Quando o rio Suhl secou, a cidade ficou deserta e uma nova foi construída. Durante séculos, a velha capital ficou vazia, tendo apenas um ou dois prédios usados como prisão. Poucas pessoas, além dos líderes religiosos, visitavam-na e ela nunca foi completamente descrita. Indaguei novamente: que lugar é este, ainda não sei. Nas páginas adiante: A cidade dos Mortos contém muitos segredos importantes, alguns dos quais conhecidos somente do alto clero de Ardistão. Passagens subterrâneas e antigos canais oferecem meios de acesso escondidos à cidadela. Caminhei até me deparar com um lago que, pelo mapa, deveria ser o Maha-Lama, cercado por paredões íngremes de pedra. Ah, isso mesmo, o que vi e a foto. Foi aí que constatei ali ser a Cidade dos Mortos mesmo: A área é temida e evitada pelas poucas pessoas que visitaram a cidade, talvez porque está ligada a antigas lendas demoníacas. Diz-se que o lago foi criado pelo diabo que teria dito a um antigo sumo sacerdote de Maha-Lama que ele viveria mais cem anos se afogasse no lago todos os que o insultassem. Embora fosse outrora amado por seu povo, o Maha-Lama tornou-se impopular. Centenas de pessoas foram afogadas no lago, que ficou tão entupido de cadáveres que o sacerdote não pôde mais cumprir sua promessa e foi finalmente levado pelo diabo. Fiquei estarrecido com a leitura do relato. Além do mais fui surpreendido com a presença inesperada do bioquímico francês Jacques Monod (1910-1976) que me disse com ar de intimidade: Neste momento não temos motivos legítimos para afirmar ou negar que a vida teve um único começo na terra, e que, como consequência, antes de aparecer, suas chances de ocorrer eram quase nulas. … O destino é escrito simultaneamente com o evento, não antes. O universo não estava grávido de vida, nem a biosfera do homem. Nosso número surgiu no jogo de Monte Carlo. É surpreendente que, como a pessoa que acabou de ganhar um milhão no cassino, nos sintamos estranhos e um pouco irreais? Sem saber o que dizer, dei de ombros e segui seus passos até vê-lo desaparecer diante dos paredões íngremes de pedra. O reinado da Lua confirmava que eu estava perdido, ainda restava muito para saber dali.

 


TRÊS: ELA BAILAVA ENTRE AS ESTRELAS - Imagem: a arte da coreógrafa, dançarina, fotógrafa e diretora de curtas-metragens francesa Karine Saporta, ao som do Brasil Guitar Duo, formado pelos violonistas João Luiz Rezende Lopes e Douglas Lora. – Olhava o céu naquela paragem insólita, quando a vi bailando entre as estrelas e levitava dançando por toda imensidão, até lindamente tocar o chão e se aproximar com seu olhar firme em mim: Sou Anatália, a potiguar Anatália de Souza Melo Alves (1945-1973). E o meu trabalho com os trabalhadores rurais da Zona da Mata de Pernambuco, me levou para Recife, Campina Grande, Palmeira dos Índios e Gravatá, até ser presa pela repressão. Disseram que ateei fogo ao corpo, me suicidando com uma tira de couro. Mentira. Naquele dia, descalça, trajava um estampado vestido de algodão vermelho e calças de jersey cor de rosa, que foram parcialmente queimados por eles mesmos. Fui vitima de violências sexuais quando me encontrava psicologicamente abalada pelas torturas e pelo clima de terror no cárcere, por isso queimaram-me a região pubiana para que meu corpo não denunciasse as sevícias sofridas e me enforcaram. Sou mais uma entre as filhas da dor. Ao término da encenação, suas lágrimas lavaram meu ombro enquanto o nosso abraço solidário era a expressão da paixão mais que vivida. Assim, um tanto desolada, recitou-me Ernesto Cardenal: Ao perder-te eu a ti / tu e eu teremos perdido. / Eu, porque tu eras / o que eu mais amava; / tu, porque era eu / que te amava mais. / Mas, de nós dois / tu perdes mais do que eu. / Porque eu poderei amar a outras / como amava a ti, / Mas a ti não te amarão mais / do que te amava eu! E foi ali na Cidade dos Mortos que celebramos a vida com o amor que nos fez unos em nós e com tudo e todas as coisas. Até mais ver.

 

A ARTE DE KAMILLE CARVALHO



A arte da bailarina, dançarina profissional, professora, coreógrafa, personal dancer e dancing coach, Kamille Carvalho. Veja mais aqui e aqui.