quarta-feira, janeiro 22, 2014

SUSANA THÉNON, EDNA O’BRIEN, GAUTIER & BRASINDAFRO.

 

TROÇO BULINDO NAS CATRACAS DO QUENGO – Quantos dias a vida pendurada pela chaminé, até agora nada aconteceu, nem dos porões os odores nem abrigo no meio da chuvada e o noticiário estampa a alunissagem chinesa enquanto contamos as vítimas das enchentes de Minas Gerais e Espírito Santo, o incêndio que destruiu o Memorial da América Latina e o funeral de Nelson Mandela, o leilão dos aeroportos, o tufão das Filipinas e desconforto dos preparativos às comemorações dos 50 anos do golpe militar de 1964, enquanto a tensão na Crimeia com referendo pela anexação russa, atentados suicidas e explosão de ônibus elétrico na Rússia, manifestantes confrontam a polícia na Ucrânia, homossexuais são condenados à prisão em Uganda, meninas são sequestradas na Nigéria, o mundo está uma loucura, à beira de armistícios longínquos em pé de guerra e tem quem ache que a culpa é da maconha que foi liberada no Uruguai. Não se fala de outra coisa, pra quem vem ou vai mulheres a bordo dos sonhos de consumo e Terra gira ninguém sabe pra onde. Uma fulana de lábios protuberantes, cabelos curtos e muito atraente me surpreende na primeira esquina, pergunta-me qualquer coisa que custo entender. Explica que é Rosetta e despertou diante do cometa numa overdose e que me salvou porque quase fui atinguido por um rojão que nem vi no que poderia ser a guerra entre opositores e aliados na Venezuela. E mais se indignou numa revolta incontida com os maridos agredindo suas esposas no aconchego do lar e torturam seus filhos porque o patriarcalismo é cristão e tem que ser assim mesmo, ora, ora! Sem ter mais o que dizer, pediu-me um cigarro e acendeu com as mãos em concha, tragando agitada entre o fumaceiro a indagar quem era eu, ora, antes ameríndio que ela já sabia do cara-pálida cruzarma senhor se fez, mameluco então e tão próxima quanto erradia refletiu o que nem se discutia dos rumores confusos que ressoavam na fuga dos instantes, o pavor desesperado na gritaria dos mortos e estávamos a salvo das ameaças com catadura extenuada de extraviada pelo êxodo, porque estávamos exilados e nem havia como saber a razão, eu sabia, afinal sou brasindafro, apenas um receptáculo da minha macrobiota e ela eu não sei. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui e aqui.

 


DITOS & DESDITOSA arte não serve nenhum fim: tudo que é útil é feio, porque é a expressão de alguma necessidade... o lugar mais usado em uma casa é a latrina...  Pensamento do escritor, jornalista e crítico literário francês Théophile Gautier (1811-1872). Veja mais aqui e aqui.

 

ALGUÉM FALOU: O que determina a existência de uma literatura é, em princípio, a sensação de alguém que tem a consciência de sua própria terra... Pensamento do jornalista, advogado e crítico literário da Academia Brasileira de Letras, Álvaro Lins (1912-1970). Veja mais aqui.

 

RAÍZES DO BRASIL – [...] Trazendo de países distantes nossas formas de vida, nossas instituições e nossa visão do mundo e timbrado em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos uns desterrados em nossa terra. [...]. Trecho extraído da obra Raízes do Brasil (1995), do historiador Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982). Veja mais aqui e aqui.

 

A QUESTÃO DO SUJEITO ANIMAL – [...] Não é porque falta ao animal o acesso às histórias nas quais ele aparece que sua vida não é fundamentalmente determinada pelo uso que os humanos fazem dessas histórias. Um animal tem uma identidade porque muitas coisas importam para ele, e porque várias dessas coisas também importam aos humanos com quem compartilham sua vida. [...]. Trecho extraído da obra The Question of the Animal Subject (Routledge, 2014), do filósofo francês Dominique Lestel.

 

UMA MULHER ESCANDALOSA - [...] Em nosso povoado todo mundo era especial, e uma ou duas moças, bonitas. Houve umas antes e depois, mas foi de Eily que me aproximei. Às vezes a gente se vê aceita pelos outros, é querida, favorecida, se faz cúmplice, e depois acontece, é o destino, e depois acaba e a gente se senta e descobre que, infelizmente, chegou a vez de outra pessoa tomar o nosso lugar. [...] Eily chegou de casaco de tweed e disse “Tarde cavaleiros”, ninguém fez nenhuma observação, mas assim que tirou o casaco e descobriu a transparência do vestido de seda pura e os ombros nus, Mestre Peter cuspiu na palma da mão e disse: não é que ela nua fica uma mulher bonita [...] As pessoas ficaram fascinadas. Ela não saiu da pista uma única vez, e quanto mais dançava mais arrebatadora se tornava [...] enquanto os parceiros a rodopiavam mais e mais. [...] Eu costumava ir até sua casa para brincar e, apesar das duas serem mais velhas que eu, faziam chantagem comigo por meio de carreteis vazios ou retalhos de fazenda para minhas bonecas, eu encarava Eily e ela desviava o olhar para o céu como se quisesse me dizer “coitadinha”, mas ela nunca contrariava Nuala, nem desobedecia às suas ordens. Em tudo e por tudo era uma coisa horrível, mas mesmo assim eu ia lá toda terça-feira. Cascas de ferida ou cortes eram considerados como coisas bem desagradáveis, e marcas de elástico como sinais de coisa grave. Eu também tinha de fazer uma confissão geral. Costumava ficar lá deitada, rezando para que a mãe delas voltasse para casa inesperadamente. Era sempre na terça-feira, dia em que sua mãe ia ao mercado vender coisas [...] Nuala usava uma máscara. Era de papel machê vermelho e existia na casa desde que alguns mascarados tinham ido lá no dia da festa de São Estevão, tinham sido mordidos pelo cachorro e perdido algumas de suas relíquias, inclusive a máscara e uma perneira. Antes de começar ela tinha acessos de tosse secos e bem conhecidos, imitando exatamente os acessos de tosse secos e bem conhecidos de médico. Nunca poderei me esquecer aqueles últimos instantes em que ela esticava o elástico por detrás da nuca e perguntava a Eily. “Tudo pronto enfermeira?” [...] Ela disse que fora a graça de Deus que fizera com que ela fosse lá antes de tudo naquela manhã porque senão o recado poderia ter caído nas mãos de outra pessoa. Ele tinha combinado um encontro para o domingo seguinte, e ela não sabia como é que sairia de casa nem que desculpa daria. Eu disse que sim, que me tornaria sua cúmplice, sem saber onde estava me metendo. No domingo disse a meus pais que ia com Eily visitar um primo dela, no hospital, e ela por sua vez disse aos seus que fomos visitar um primo meu. [...] Uma missão começou na semana seguinte e um estranho padre, com um belo sotaque e um forte senso de retórica, dava os sermões toda tarde. Era melhor que um teatro. Eu podia vislumbrar Eily, cercada pela mãe e por uma outra senhora idosa, pálida e impassível [...] Um dia todos esses pecados teriam de ser levados em conta para o castigo [...] Ela me disse para fechar os olhos, abrir a mão e ver o que Deus ia me dar. Há momentos na vida em que o prazer é maior do que a gente pode aguentar, e a gente desce a contragosto por um violento túnel de medo e vertigem [...] Ela fez exatamente o mesmo e nos beijamos e aspiramos o aroma envolvente. O cheiro do feno interviu, sendo assim corremos até onde não havia feno e nos beijamos outra vez. Aquele momento tinha um ar de mistério e santidade por causa da surpresa e de nosso mutismo, e eu entendi em algum lugar por detrás de minha mente que estávamos envolvidas em algo verdadeiramente sujo e que nossos dias de farra tinham terminado [...] seu pai era um homem muito bruto, que nunca se dirigia à família a não ser para pedir as refeições e dizer às filhas que se importassem com os livros escolares. Ele próprio nunca fora a escola [...] Eu a vi morrer no frio forno de cal e depois de novo num quarto doentio, e depois estirada numa mesa de operação como eu costumava ficar. Ela se associaria àquela pequena irmandade de mulheres escandalosas que conceberam filhos sem pais protetores e foram condenadas de corpo e alma. Se elas se tivessem reunido teriam sido um bando de sete ou oito, e poderiam ter lançado um gemido profano ao seu autor e seus sedutores secretos [...] Lá ajoelhada, eu os via descobrir os traços de cada um dos movimentos, conseguir pedaços de informação de uns e outros, os pseudoprimos, a mulher que nos prometera groselhas, e a Sra. Bolan. Eu sabia que nós não tínhamos esperanças. Eily! Sua coisa mais preciosa tinha ido embora, sua joia. O lado de dentro da gente era como um reloginho e, uma vez que a joia ou joias tivessem ido embora, o lado de fora era nada, só uma aparência. Eu a vi morrer no frio forno de cal e depois de novo num quarto doentio, e depois estirada numa mesa de operação como eu costumava ficar. Ela se associaria àquela pequena irmandade de mulheres escandalosas que conceberam filhos sem pais protetores e foram condenadas de corpo e alma. Se elas se tivessem reunido teriam sido um bando de sete ou oito, e poderiam ter lançado um gemido profano ao seu autor e seus sedutores secretos [...]. Trechos extraídos da obra Uma Mulher Escandalosa (Francisco Alves, 1982), da escritora irlandesa Edna O’Brien. Veja mais aqui, aqui e aqui.

 

DOIS POEMASJOGO - Vamos nos livrar de tudo\ que\ se projeta para fora\ com golpes lentos e definitivos\ Todos empregados na tarefa\ de ser, viver, sentir\ sem outros vínculos.\ E quem não consegue sufocar\ o seu amor pelo proibido,\ reivindica o seu direito à dor,\ à sua penitência.\ Livremo-nos de tudo o que nos conformava à nossa\ imagem e semelhança e aproveitemos com sabedoria o minuto absurdo e livre para a memória. AQUI - Pregue você, eu desejo,\ do meu lado irritado\ e molhar suas pupilas\ pela minha última morte.\ Aqui o sangue,\ aqui o beijo quebrado,\ aqui a fúria desajeitada de Deus\ crescendo em meus ossos.\ Se eu te odiasse,\ o mundo não vacilaria:\ o mundo nunca fica com raiva\ com aqueles que odeiam.\ Em vez disso eu te amo\ e tudo é uma catástrofe ao redor:\ as vozes, as mãos, os rostos\ todo mundo quer nos apedrejar\ Por que aquela mulher está gritando? \ por que ele está gritando? \ Por que aquela mulher está gritando? \ Quem sabe \ aquela mulher, por que ela está gritando? \ Quem sabe, \ olhe as lindas flores, \ por que você está gritando? \ jacintos \ margaridas \ por quê? \ porque? \ Por que aquela mulher está gritando? \ e aquela mulher? \ e aquela mulher? \ Quem sabe \ aquela mulher é maluca, \ olhe \ olhe os espelhos, \é por causa do seu corcel? \ Quem sabe \ onde você ouviu \ a palavra cavalo? \ É segredo \ aquela mulher, \ por que ela está gritando? \ Olha as margaridas, \ a mulher, \ os espelhos, os \ pássaros \ que não cantam, \ por que ela grita? \ Eles não voam, \ por que ele grita? \ que \ a mulher \ e aquela mulher não atrapalham \, e a mulher estava louca? \ Ele não grita mais \ (você se lembra daquela mulher?). Poemas da poeta, tradutora e fotógrafa argentina Susana Thénon (1935-1991).

 

PENSAMENTO DO DIA – Quando não se pensa direito, a cara sofre a maior vergonha. Tenho dito. Veja mais aqui.


UMA DO POETA ABEL FRAGA Uma meritória de entrar nas Crônicas Palmarenses é, sem sombra de dúvida, a tirada do poeta Abel Fraga, aquele quando via todas as frochosas moças, moçoilas e senhoras rebolando impunemente nas calçadas: - Ih, tanta mulher dando sopa e eu sem colher pra tomar. Veja mais Crônicas Palmarenses.


PORQUE CANTAR JÁ NÃO MUDA EM MANHÃ, DE FERNANDO FÁBIO FIORESE FURTADO – Conheci o trabalho poético do escritor e professor universitário mineiro Fernando Fábio Fiorese Furtado com o seu livro Corpo Portátil (2002). Nessa época fiz destacá-lo no meu Guia de Poesia. Depois reuni alguns de seus poemas desse livro no meu blog Varejo Sortido.

Agora resolvi musicar o seu poema:
PORQUE CANTAR JÁ NÃO MUDA EM MANHÃ
Música de Luiz Alberto Machado sobre poema de Fernando Fiorese

Porque cantar já não muda em manhã
A paisagem, nem mesmo abrevia a cena
Onde me falta, ali onde o amor acena
- decerto uma rubrica temporã,

o gesto equívoco de quem espera
aquele que na palavra demora
e, sabendo não haver olhos nem hora,
descreve a elipse que não quisera.

Porque cantar já não apura senão
O palrar do corpo, a palavra pouca
E demasiada – o nada, o nunca, o não.

Porque mesmo em festa, cantar ressalta
O que em mim recusa, recua ou apouca
Quando a palavra acusa minha falta.

OBS: veja o clipe dessa música aqui.

E também selecionei alguns poemas seus no Brincarte do Nitolino. E sempre que estou com esse personagem nos palcos pra criançada, sempre recito:

LINHAS RIVAIS

Trem é texto quando encontra desvio

Ou nos surpreende em meio ao pontilhão,

E da origem as pernas se desdão

Para o mundo acomodar neste livro.

Mas texto é menos trem que o enguiço

De saber que no verso desembarca

Apenas a prosa dessas coisas arcas

Com que menino se salva do olvido.



Seja a prosa como dormir num trem

E a poesia quando a aduana sobrem:

Naquela, até o sonho encontra sua reta,

Uma voz de si mesma estrangeira

- e como fosse toda ela suspeita,

A bagagem uma outra mão desfaz

Mão que vacila entre linhas rivais.


OS DESENHOS DE FABIANO PEIXOTO – Conheça os desenhos do jovem Fabiano Peixoto clicando aqui.

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CANTARAU: VAMOS APRUMAR A CONVERSA
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