segunda-feira, janeiro 21, 2019

GRACILIANO RAMOS, TEREZA COSTA REGO, FLAIRA FERRO, PEDRA, OURO & CORAÇÃO


PEDRA, OURO & CORAÇÃO - A pedra bruta, pedaço de rocha oriundo do choque térmico do magma com a superfície. Lá estava ela de anos ou talvez de sempre exposta à erosão, feiosa e suja, um ita. Reles como qualquer outra, simples, disforme, deformada pela duração, fragmento rijo ao desgaste, ao desbotamento, dura e sólida. Quem diria que ela fosse objeto de estudo dos petrólogos, um pedregulho, ou coisa que valha, seixo, calhau, cascalho, burgau, rebo, pedra-pome, basalto, cristal, seja no deserto, no pico da montanha, no fundo do poço ou como cálculo renal. Uma mera pedra. Ao pegá-la, parece coisa qualquer, desimportante, diferentemente se nas mãos de um artesão – esse sou eu ou você, qualquer um. Pegá-la, esfregá-la, limpá-la, o desbaste, a remoção da sujeira, aparentemente uma coisa feia que, assim mesmo, a gente segura e espreme – como artesão – lava, bem lavada de ficar lisa, aquinhoada, exposta ao cuidado como se fosse uma preciosa ou do Sol ou da Lua ou Estrela num castelo abandonado. Afinal, pode ser avultada, quem sabe, lápis-lazúli ou pérola ou rubi sob o colchão na cama dos mortos; safira ou selenita ou turquesa amarela dentro da cabine de um barco afundado no mar; zebra stone ou unaquita ou rodocrosita, ou mesmo água marinha sob os escombros duma casa assombrada; madrepérola ou malaquita ou crisocola sob as ferragens de automóvel num ferro velho; ou berilo ou dolomita ou jade sob o lixão das periferias famintas; ou kunzita ou amazonita ou cianita sob os restos mortais de insepultos amaldiçoados; ou esmeralda ou granada ou magnetita perdidas nos esgotos urbanos; ou rodonita, peridoto ou bronzonita nas imundícies das margens dos rios; ou pirita, âmbar ou quiastolita no estômago de uma égua morta à beira de um riacho longe; ou hematita, serpentinita ou ametista num gruta perdida entre muitas por aí; nuumita, citrino ou leopardita no chão de um ermo distante; ametrino, cornalina ou fluorita na beira das rodagens desse mundo de meu Deus; sodalita, apatita ou coral nas locas das cobras vigilantes; labradorita, azurita ou madeira fossilizada aos pés de um morro ignoto; morganita, turmalina negra ou melancia ou verde no meio do nada de um vale desconhecido, ou mesmo ágata azul ou fogo ou dentrita ou lilás ou rosa ou verde escondida nas matas ínvias quase inexistentes; calcita azul ou laranja ou verde na curva fechada do matagal; cristal fumê ou rutilado, ou mesmo howlita azul ou branca ou rosa na pedraria dos deltas fluviais; jaspe amuleto ou estrelado ou indiano ou oceânico ou pardo ou rajado ou vermelho ou zebra rosa ou precioso nos rebentões dos ventos perdidos; obsidiana negra ou maragony, olho de falcão ou de gato ou de tigre nas correntezas que dão pro mar; ônix verde ou azul ou vermelho nos vales inóspitos das terras de ninguém; opala andina ou de fogo, ou quartzo azul ou bordô ou ros ou sodalític ou verde nas margens dos brejos de terras sem nome; topázio azul ou imperial ou o tesouro e a descoberta, o desvelo do ouro da colisão das estrelas de nêutrons e que à primeira vista reluz denso, dúctil, maleável pepita exposta à brisa mormaçada, ao tempo e temporais, intempéries, e tida e guardada num canto qualquer, esquecida, abandonada, o pó, a poeira, sujeiras, quase irreconhecível na tumba da rainha Zer. Como qualquer outra será preciso sempre limpar, tratar, manusear, lapidar, lavrar, o carinho da quase cobiça. Assim também as coisas primeiras, como a semente e a raiz, os filhotes, o esmero e a dedicação, o fruto que saboreia quando se remove a casca, o que se esconde embaixo da crosta, da pele, da terra. Inestimável ou não, pode se tornar qualquer uma na mais linda do universo. É só querer. Um grão pode ser uma fortuna, ou equivalente. O valor é seu, faça-a a mais bonita e cara, embora tudo isso seja passageiro, relativo, que seja bela e impagável pra você, pois o bonito e o valioso que é pra você, pode não ser para outro e outros. O que importa é a evidenciação, como se coração pulsando. Há quem seja ou saiba, qualquer coisa vibra, pulsa. Quase ninguém sabe: a pedra bruta e feia que pode ser ouro, coração. Ou melhor, assim também um coração, qualquer um. Assim, tudo na vida. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.

DITOS & DESDITOS
[...] Marina entrou no banheiro e esteve uns minutos em silêncio despindo-se com lentidão. Os movimentos dela eram tão vagarosos que eu os percebia a custo. Era preciso adivinhá-los. Assou-se e lavou as mãos na torneira. – Virgem Nossa Senhora! E a punha-se a cuspir. Aquela queixa mostrava um desengano enorme. Pareceu-me que o mundo tinha despovoado e Marina estava completamente só. [...] Aí o pranto de Marina rebentou novamente, enrolado, com palavras ásperas que não entendi. [...] - Coitadinha! Não via, não sabia. Tão inocente! Agora já sabe. Pois é. Escangalhada, com um filho na barriga. Não faça essa carinha de santa não. É o que lhe digo. Estou mentindo? Arrombada, com um moleque no bucho. Não quer ouvir não? Tape os ouvidos. - Cale a boca, Marina, gaguejou d. Adélia, tremendo. Me respeite, Marina. Esta ordem bamba pareceu-me ridícula e despropositada, mas produziu um efeito que me espantou: Marina deitou água na fervura. Virei d. Adélia por todos os lados e não achei que ela fosse digna de respeito. Nem de respeito nem de ódio. [...] Marina continuava a chorar. D. Adélia queixava-se baixinho. É estranho que elas não houvessem aludido uma única vez a Julião Tavares. Nenhuma referência àquele patife. Era o que me espantava quando saí do banheiro, já muito tarde. Nesse dia faltei ao ponto. [...].
Trecho do romance Angústia (Martins, 1969), do escritor e jornalista Graciliano Ramos (1892-1953). Veja mais aqui, aqui, aqui e aqui.

ARTE DE TEREZA COSTA REGO
[...] Eu acho que sou mesmo temerária. E foi assim, fui deserdada, minha família inteira me rejeitou. Eu saí aqui sem lenço e sem documento mesmo, como a canção da época de 68. Fui para São Paulo, fiquei clandestina. A minha vida eu posso dividir em três pedaços. Eu acho que eu tive três nomes: fui Terezinha, fui Joana, e fui Tereza. Fui Terezinha, a menina rica, bonita, que usava vestidos de costureiras, importados, depois me divorciei e aí passei a ser Joanna, quando eu era clandestina, é uma coisa muito... Eu ainda fico meio engasgada, quando eu falo nisso. É uma coisa muito complicada, você morar numa casa enorme com chofer, eu tinha 11 empregados no dia em que eu saí de casa. Aí você vai para um apartamento desse tamanho, você começa a se despojar de todos os seus valores, tá? Eu fiz Universidade em São Paulo, e vivi clandestina, eu era Joana. [...]
Relato da artista Tereza Costa Rego, recolhido de Entre Terezinha, Joana e Tereza: as múltiplas faces de uma artista plástica, da professora Elizabet Soares de Souza. Imagens recolhidas do catálogo da exposição Diário das frutas (Correios/MinC/Relicário, 2013). Veja mais aqui, aqui, aqui e aqui.

A MÚSICA DE FLAIRA FERRO
Hoje na Rádio Tataritaritatá a música da pesquisadora, dançarina, atriz, cantora e professora de danças populares do Instituto Brincante (SP), Flaira Ferro. Para conferir é só ligar o som e curtir. Veja mais aqui.
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