quinta-feira, agosto 09, 2018

TAGORE, LEZAMA, SHOSTAKOVICH, MALEBRANCHE, MILLÔR & FLÁVIO, MARIO CRAVO NETO, O SOL & A LUA


O AMOR DO SOL E DA LUA - Antes não havia nada. A terra era o céu. A manhã vivia no coco de cajubi, guardado pelo urubu-rei que morava num buraco vermelho na Via Láctea. Um susto com a chegada do urubu-branco, sem querer, quebrou-se o coco e surgiu a alvorada. A partir de então reinava o dia e, com ele, Mbud-ti que desceu primeiro a terra e admirou-se com tudo, a seguir muito feliz pelas maravilhas. Dias se passaram e se sentiu sozinho. A noite adormecia no fundo das águas, no coco do tucumã, guardado pela Cobra Grande e Azã gritando tati para acordá-la na vigilância. Mbud-ti queria a noite para dormir e aproveitou-se do cochilo dos vigias e levou-o consigo. O coco fazia um barulhinho: ten, ten, tem - eram os grilos, corujas, rãs, sapinhos, urutaus, morcegos e todos os seres noturnos. Espicaçava a curiosidade, ansiava por libertar a noite daquela prisão. Tomando distância, bateu com o coco numa quina duma pedra e, ao se quebrar, a noite apareceu com seu silêncio e trevas, bichos e coisas. Tudo se transformou na escuridão. Aracuã, Jacupeba, Urutau, antes homens, tornaram-se pássaros noturnos. Foi ali que Mbud-ti viu pela primeira vez a sonâmbula Mbudu-vri-re, a linda e nua Capéi, vagando sem rumo. Saiu a toda carreira na direção dela, mas ela desapareceu repentinamente. Ao acordar Capéi se viu nua e a sua brancura alumiava tudo, regulando as marés e a germinação das sementes, o brilho das pedras, o fluxo das mulheres, o nascimento das crianças e bichos. Ao acordar, de longe ela viu um belo vulto, era Mbud-ti que rondava. Assustada, escondeu-se numa moita. Ele passou tristemente procurando-a, sem que pudesse vê-la escondida. Ela viu melhor aquele por quem seu coração palpitou de amor no primeiro instante. E ao segui-lo, não mais conseguiu encontrá-lo. Havia sumido. O solitário coração de Mbud-ti tremia de paixão, levando-o a vagar por dias e noites no seu encalço. O dela, também, entregue a paixão por aquele que apenas viu passar. Depois de muita busca e espera, deu-se um eclipse, foi quando miraram um ao outro e suspiraram de amor. Apesar da curta duração do evento, ambos logo ansiaram pelo reencontro. Como não conciliavam o tempo e o espaço, abateu-se uma grande tristeza nos enamorados. Durante o dia Mbud-ti perseguia de leste a oeste à procura dela. Por toda noite Capéi sonhava com a chegada do seu amado. Os solitários cumpriam a sua sina. Logo as estrelas apareceram para consolar Capéi que lamentava a dura sorte, sempre cheia ou nova com as lembranças dos momentos com o seu amado, crescente ou minguante quando entristecida com sua ausência. Veio então, muito tempo depois, um novo eclipse e puderam namorar: ele abraçou-a, deitou-se sobre a sua brancura aos beijos, envolvendo-a com sua imensa paixão, e se amaram com êxtase. Nesse momento todas as aves cantaram para alegria deles. No prazer dos corpos, eles foram elevados aos céus, transformando-se no eterno amor entre o Sol e a Lua. PS: Recriação das lendas recolhidas de O selvagem (CEN, 1940), de Couto de Magalhães; Mitos dos índios Tembé do Pará e Maranhão e Os Apinajé (RPHAN, 1986), de Curt Nimendaju Unkel; e Entre os aborígenes do Brasil Central (Cultura, 1940), de Kar von Den Steinen. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.

RÁDIO TATARITARITATÁ:
Hoje na Rádio Tataritaritatá especial com a música do compositor russo Dmitri Shostakovich (1906-1975): Pieza para piano e violino & Symphonies nº 5, 7 e 14 & muito mais nos mais de 2 milhões & 500 mil acessos ao blog & nos 35 Anos de Arte Cidadã. Para conferir é só ligar o som e curtir. Veja mais aqui, aqui e aqui.

PENSAMENTO DO DIA – [...] Tudo que existe pode ou ser concebido por si ou não. Não há intermediário, pois as duas proposições se contradizem. Agora, tudo que pode ser concebido por si e sem se pensar em outro ser – eu digo, pode ser concebido por si como existindo independentemente de outra coisa ou pode ser concebido sem a ideia que representa essa outra coisa – isto é certamente uma substância; e qualquer ser que não possa ser concebido por si ou sem se pensar em outra coisa, tal ser é uma maneira de ser, ou a modificação de uma substância [...] Eu vou deixar assim – pois há muito tempo eu parei de me preocupar com problemas que estão acima de mim [...]. Pensamento extraído das Obras completas (J. Vrin, 1958), do filósofo francês Nicolas Malebranche (1638-1715).

LIBERDADE, LIBERDADE - [...] Mas afinal, o que é a liberdade? Apesar de tudo o que já se disse e de tudo o que dissemos sobre a liberdade, muitos dos senhores ainda estão naturalmente convencidos que a liberdade não existe, que é uma figura mitológica criada pela pura imaginação do homem. Mas eu lhes garanto que a liberdade existe. Não só existe, como é feita de concreto e cobre e tem cem metros de altura. A liberdade foi doada aos americanos pelos franceses em 1866 porque naquela época os franceses estavam cheios de liberdades e os americanos não tinham nenhuma. Recebendo a liberdade dos franceses, os americanos a colocaram na ilha de Liberty Island, na entrada do porto de Nova York. Esta é a verdade indiscutível. Até agora a liberdade não penetrou no território americano. Quando Bernard Shaw esteve nos Estados Unidos foi convidado a visitar a liberdade, mas recusou-se afirmando que seu gosto pela ironia não ia tão longe. Aquelas coisas pontudas colocadas na cabeça da liberdade ninguém sabe o que sejam. Parecem previsão de defesa antiaérea. Coroa de louros certamente não é. Antigamente era costume coroar-se heróis e deuses com coroas de louros. Mas quando a liberdade foi doada aos Estados Unidos, nós os brasileiros já tínhamos desmoralizado o louro, usando-o para dar gosto no feijão. A confecção da monumental efígie custou à França trezentos mil dólares. Quando a liberdade chegou aos Estados Unidos, foi-lhe feito um pedestal que, sendo americano, custou muito mais do que o principal: quatrocentos e cinqüenta mil dólares. Assim, a liberdade põe em cheque a afirmativa de alguns amigos nossos, que dizem de boca cheia e frase importada, que o “Preço da Liberdade é a Eterna Vigilância”. Não é. Como acabamos de demonstrar, o preço da liberdade é de setecentos e cinqüenta mil dólares. Isso há quase um século atrás. Porque atualmente o Fundo Monetário Internacional calcula o preço da nossa liberdade em três portos e dezessete jazidas de minerais estratégicos. (Foge.) [...]. Trecho extraído da peça Liberdade, liberdade (L&PM, 1977), do diretor teatral, cenógrafo, jornalista e tradutor Flavio Rangel (1934-1988) em parceria com o desenhista, humorista, dramaturgo, escritor, tradutor e jornalista Millôr Fernandes (1923-2012), peça teatral que recebeu comentário do New York Times, Espetáculo mistura protesto, humor e música (25 de abril de 1965): Os espetáculos teatrais que elevam a voz com protestos políticos contra o regime semimilitar do Brasil, estão produzindo, no país, bom entretenimento e uma nova visão dramática [...] A peça insinua que os militares, atualmente, têm voz decisiva em muitos assuntos fora de sua competência profissional. Um militar afirma, falando de um problema civil: “Ora, isso pode ser resolvido por qualquer criança de três anos!” E depois de um momento de embaraço, acrescenta: “Tragam-me uma criança de três anos!” [...] “Se o governo continuar deixando os jornais fazerem certos comentários, se o governo continuar deixando este espetáculo ser representado, e se o governo permitir que o Supremo Tribunal continue dando habeas-corpus a três por dois, nós vamos acabar caindo numa democracia!”. Veja mais aqui, aqui e aqui.

PARADISO - [...] À medida que foram passando os anos, paradoxalmente, essa sensação de morte, que se entrelaçava a seus estados de lassidão, aos começos de toda sonolência, ou à resistência de um fastio que não se dobra, foram-no levando, ao adquirir consciência desses estados de abstemia, a sentir a vida como uma planície, sobre a qual se desenvolve um espesso zumbido, sem começo, sem fim, expressão para esses estados de ânimo que reduziu com os anos, até dizer com simplicidade que a vida era um fardo bem atado, que se desatava ao cair na eternidade [...] Enquanto esperava sua volta, pensava em seu pai e pensava em você, desfiava o rosário e dizia: o que direi a meu filho quando voltasse desse perigo? A passagem de cada conta do rosário, era a súplica de que uma vontade secreta o acompanhasse, ao longo da vida, que seguisse um ponto, uma palavra, que tivesse sempre uma obsessão que o levasse a procurar o que se manifesta e o que se oculta. Uma obsessão que nunca destruísse as coisas, que procurasse no manifestado o oculto, no secreto o que ascende para que a luz o configure [...] Não recuse o perigo, mas tente sempre o mais difícil. Há o perigo que enfrentamos como uma substituição, há também o perigo que tentam os doentes, esse é o perigo que não engendra nenhum nascimento em nós, o perigo sem epifania. Mas quando o homem, através de seus dias tentou o mais difícil, sabe que viveu um perigo, embora sua existência tenha sido silenciosa, embora a sucessão de seu marulhar tenha sido mansa, sabe que esse dia lhe foi designado para sua transfiguração, verá, não os peixes dentro do fluir, lunarejos na mobilidade, mas os peixes na cesta estelar da eternidade [...]. Trechos extraídos da obra Paradiso (Brasiliense, 1987), do escritor cubano Lezama Lima (1910-1976). Veja mais aqui, aquiaqui.

DOIS POEMAS - A MINHA CANÇÃO: Esta minha canção enleará sua música em torno de ti, meu filhinho, como os braços apaixonados do amor. / Esta minha canção tocar-te-á a fronte como um beijo de bênção. / Quando estiveres sozinho, ela se assentará ao teu lado e segredará ao teu ouvido; quando estiveres no meio da multidão, criará uma barreira de distância em torno de ti. / A minha canção será como um par de asas para os teus sonhos. / Transportará teu coração às bordas do desconhecido. / Será como a estrela fiel lá em cima, quando a noite escura tombar sobre a tua estrada. / A minha canção pousará nas pupilas de teus olhos e levará a tua vista até o coração das coisas. / E quando a minha voz emudecer na morte, a minha canção falará no teu coração vivo. LIBERTAÇÃO - Para mim, libertação não está na renúncia. Sinto o abraço da liberdade em milhares de enlaces do deleite. / Você sempre me serve a dose fresca do Teu vinho encorpado e aromático, enchendo esta taça terrena até a borda. / Com Sua chama, meu mundo acenderá centenas de velas diferentes e as depositará no altar de Seu templo. / Não, jamais fecharei as portas dos meus sentidos – os deleites da visão, do tato e da audição revelarão Seu deleite. / Sim, minhas ilusões arderão no regozijo iluminado e a maturidade de meus desejos dará os frutos do amor. Poemas do poeta e músico indiano, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura, Rabindranath Tagore (1861-1941). Veja mais aqui e aqui.

A ARTE DE MÁRIO CRAVO NETO
A arte do fotógrafo, escultor e desenhista Mario Cravo Neto (1947-2009). Veja mais aqui.

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