A MENINA DOS
OLHOS DO BOCEJO ETERNO - Imagen: Delirium,
2002, do fotógrafo italiano Aldo
Palazzolo (1948).- A platéia estava repleta de estudantes
secundaristas e eu, mais reboculoso que meu próprio tamanho, tão espaçoso de
quase não caber na tribuna, inchado de idéias e defendendo o meu peixe a
recitar versos e vociferando despautérios que sempre julguei convenientes na
minha utópica doidice, como de que só a arte e a educação seriam as principais
alavancas para uma humanização mais cônscia de participação do indivíduo,
defendendo veementemente, no meu discurso tresloucado, a natureza, a vida
sustentada em bases sólidas de visão aberta, a justiça social proporcionando
uma possível paridade entre ricos e pobres, de direitos e deveres bem
distribuídos, na consciência da nossa inutilidade, finitude e insignificância
perante a amplitude do universo, entre outras coisas esdrúxulas da minha
frenética geringonça intelectual, chega dava para notar a zarolhice dos
presentes aos meus desvarios intelectuais. No meio de tanta cabeleira, olhares
e fungados juntos no recinto, eis que, na segunda fila, eu vira uma alminha
singela, uma Britney Spears que estava hipnotizada com a minha oratória. Com o
olhar firme, ela nem piscava e isso me enchia de pernas, maior embaraço. A cada
olhadela, ela lá firme fisgando, arrancando minhas entranhas, desnudando-me
inteiro. Endoidei de vez, então. Ela, por isso, foi responsável por ampliar
ainda mais a minha confusão mental, de quase perder o fio da meada e toda
racionalidade, enrolando-me no meu próprio labirinto. Seu olhar roubava minhas
idéias, fragmentando meus neurônios numa encruzilhada entre a razão e a emoção,
fazendo-me buscar um esforço descomunal para concatená-las e conseguir uma
linearidade de pensamento que fosse, pelo menos, coerente com o que eu havia
proposto naquela palestra, que nada, metendo as mãos pelas pernas qual bípede
energúmeno resultava, deus meu. Eu, que reconhecidamente nunca fora papa-anjo,
avalie, estava abestalhado com aquela cândida figurinha. Nossa! Como é linda a
juventude, a vitalidade, a vida saltando pela manifestação presente daquela
pessoínha singela viva, tomando conta de todos os sentidos e atenções. Consegui
mesmo assim, aos trancos e barrancos, estancando e empurrando, debreando e
acelerando, finalmente concluir minha falácia, ficando a disposição dos
presentes para a sabatina regular. Perguntaram disso, daquilo, despropósitos,
insinuações, se eu acreditava em deus; o que me fez virar poeta; qual a razão
de escrever mediante alto índice de analfabetos e esfomeados; que razão teria
para dizer minhas asneiras contra a parede inexorável da indiferença; e outras
tantas inquirições que fui, aos poucos, levado a revelar minhas peraltices
despropositais. Riam-se. Por fim, aplausos. Obrigado. Ao término dos trabalhos,
surpreso com tudo e tolhido por alguns curiosos que queriam que lhes
autografasse meus livros; outros, uma fotografia; uns querendo se aprofundar no
obscuro mundo das minhas idéias malucas; e coisa e tal, até que ela, alminha
singela bulindo, atanazando com meu tino, trouxe-me o exemplar do meu penúltimo
livro de poesias para o respectivo autógrafo. - Seu nome, por favor? - Cecília.
- Belo nome, casa bem com sua bela fisionomia. - Obrigada. O que o senhor está
achando de Aracaju? - Em primeiro lugar, o senhor está no céu e eu sou um
frágil semideus e olhe lá, com a serasa dos pecados pesadíssima e quase sem
fim. Portanto, menos formalidade, por favor. Em segundo, adoro Aracaju, tenho
vindo sempre que posso rever amigos, comer guaiamum e poder desfrutar das
coisas daqui. - Se não for incômodo, escritor, eu gostaria que você colocasse
depois da dedicatória, o hotel onde está hospedado ou seu telefone celular.
Gostaria de realizar uma entrevista para o jornalzinho que a gente mantém no
colégio. Eu e uma turma escolhemos por jornalismo e já estamos vivenciando a
profissão. - Claro, com todo prazer. Rabisquei algo na folha de rosto do livro
e mencionei o hotel e o celular onde eu poderia ser encontrado para a vindoura
entrevista requisitada pela jovem simpática. Despediu-se e zarpou fora. A
comissão organizadora do evento levou-me para um restaurante onde bebericamos
além da conta. E, já de madrugada, largaram-me no hotel. O interfone
estridulante acordou-me pela manhã. Quem seria àquela hora? Não se pode mais
dormir? Atendi. - Bom dia, senhor, tem uma visita aqui na recepção. - Que horas
são? - Onze horas, senhor! - Eita! Já? Por favor, mande subir. - Pois não,
senhor. Nem me levantei nem nada. Devia ser alguém da comissão que organizou a
palestra querendo me levar para almoçar. Eu que acostumava acordar cedo, lá
pelas três da madruga, estava aboletado na cama ainda àquela hora. Era
estranho, o ar de Aracaju me fazia bem. Estava bem acomodado, deveras
satisfeito e com as idéias zeradas no quengo. Nada para me lamentar, nenhuma
reminiscência incomodando, nenhum compromisso previsto pelas próximas vinte e
quatro horas, pelo menos, e uma indolência não peculiar ao meu comportamento
vexado. Estava ali, entregue. Quando tocasse a campanhia eu mandaria entrar já
que eu possuía o costume de dormir com a porta fechada apenas pelo trinco. A
minha indisposição não permitia que me desligasse daquela cama, da fronha e do
lençol confortáveis. Fiquei ali arriado, pensando no que me perturbariam.
Cochilei com a demora. Dlin dlon! A sineta tocou e mandei entrar, aos berros. Alguém
entrou, não vi, nem dei por menos. Não sei quanto tempo ficou, deve de ter
esperado um bom bocado porque cochilava. - Vai querer fazer a entrevista assim
mesmo? Era uma vozinha determinada imprimindo um domínio sobre si e o seu
destino. O que? Uma mulher? Assustei-me e levantei a cabeça escondida no
cobertor. Era Cecília. - Desculpe importuná-lo a esta hora, mas foi você quem
marcou comigo. Se quiser deixar para outro momento, por mim, tudo bem. Aquela
figura fofinha quase que me provoca um colapso de tão atônito que me
encontrava. Estava desarmado, não imaginava que havia bebido tanto a ponto de
esquecê-la e do nosso compromisso. - Não, não, tudo bem, aguarde só um
instante. Quiser beber alguma coisa, tem ali no frigobar, vou só tomar um banho
e volto num instante. - Tudo bem. Ainda vi quando se dirigiu com uma saínha
curta e justa até a geladeira e retirou de lá uma cerveja, destampando-a e,
elegantemente, começou a beber no gargalo, sentando-se, depois, na poltrona
rente à cama. Dei uma olhadela antes de entrar no banheiro e pude constatar que
aquela monumental e cândida pessoa estava ali me enchendo de pernas, atiçando
minha loucura, jogando o senso pro escanteio. Nossa, pensei cá comigo, pin-up
sagrada dessa, qualquer demônio faz a festa! O chuveiro estava me restaurando
as energias. Com o seu jeito tomando conta dos meus sentidos demorei um bocado
no banho, tentando reavivar meu ímpeto, organizar as idéias, extirpar o
desconforto de ser surpreendido em tal circunstância. Ao término enrolei-me na
toalha e fui até o seu encontro. - Desculpe a demora, detesto fazer alguém
esperar. - Tudo bem. Sua resposta dava a impressão de uma constituição firme e
duma natureza faiscante e impetuosa, por trás daquele corpinho púbere cheio de
força de vontade e, aparentemente, com o dom de levar avante empreendimentos
mesmo contra grandes obstáculos. Parecia estimulada, audaciosa, confiante,
infatigável, no encalço de um ideal. - Pode ser aqui mesmo? -, perguntei
desconfiado. - Claro! Você é quem sabe! -, respondeu firme. - Então, vamos lá! Voltei
para a cama não antes pegar uma cerveja na freezer e me envolvi nos lençóis da
cama, jogando a toalha de banho no chão. Ela meteu a mão no seu tiracolo e
retirou de lá um caderninho de notas e um gravador portátil que depositou perto
de mim na cama. Senti-lhe o perfume e o viço inebriando a minha alma. Pensei cá
comigo: - Isso é uma provocação! Com certeza, está me chamando de banguelo. Que
desarrumação provoca dentro de mim! Linda, linda, linda!! Voltou-se, calma e
elegantemente, para a poltrona e começou por inquirir tudo do que imaginasse.
Enquanto indagava minha vida, minhas preferências, minhas obras, meus
pensamentos, meus projetos, via-lhe os detalhes anatômicos, a calcinha branca
mostrada pela brecha deixada entre as pernas cruzadas; a ponta do sutiã
branquinho pelo desabotoado da blusa, mostrando uns peitinhos estufados no
interior dela; a meia delicada dobrada nas bordas do tênis; a batata da perna
roliça, os joelhos, as coxas, a meiguice arruivada dela, a sua pequena
estatura, a sua epiderme alvinha, seu gesto calmo ingerindo a pilsen, tudo no
seu devido lugar. Fiquei bestificado com a assimetria elegante de seu ser. Com
certeza, deus havia sido generoso com sua fôrma. - Desculpe -, atrapalhei seu
interrogatório a meu respeito. - gostaria de matar uma curiosidade minha, qual
a sua idade? - Dezenove e estou concluindo o colegial, me preparando para o
vestibular de jornalismo. - Quanta vitalidade, hem? Desculpe a licenciosidade,
pode continuar a entrevista. E foi o maior blábláblá, curiosidades, por quê
isso, pra quê aquilo, por onde, o que acha, o que espera e por aí vai. Minha
geladinha acabou e ela, cortesmente, foi até onde poderia buscar outra e me
entregou, conferindo se o gravador ainda estava com a fita rodando, notando que
havia terminado o lado, trocando de pista e continuando na inquisição. Já amou?
Que tipo de mulher lhe apraz? Loura ou morena? Quando foi sua primeira vez?
Qual a regularidade de sua atividade sexual? Êpa, mais parecia que ela me
tratava por um velho, fiz-lhe ver que possuía apenas trinta e poucos anos,
quase beirando aos quarenta e que estava bastante satisfeito com a entrevista,
se bem que, apesar de longe de ser um Vinícius de Morais, estava adorando estar
na cama com uma jovem tão bela que perscrutava minha pessoa. Faltando apenas
cinco minutos para as duas da tarde, ousei convidar-lhe para almoçar. - Tudo
bem. - Dois minutos só para eu me aprontar. - Tudo bem. Peguei uma bermuda,
vesti-a no banheiro, voltei, calcei um tênis, vesti uma camiseta. Enquanto me
aprontava, sentia seu olhar pregado nas minhas atitudes. Umas duas vezes
ruborizei com a sua fixação. Até que me ajeitei e descemos pelo elevador, eu
fisgado e sem jeito, ela ali pregada com a pontaria aguçada, tiro ao alvo,
apontada toda para mim, quando resolvi fitar-lhe da mesma forma. Senti o choque
rasgando meus nervos, arrepiando minha espinha dorsal, revolvendo minhas
entranhas, aprisionando minha timidez, oito andares de flerte e sedução, até que
a porta abriu-se, estávamos no térreo e nos dirigimos até a portaria, onde
entreguei as chaves do apartamento e atravessamos, lado a lado, a via pública,
rumo a um restaurante na beira da praia de Atalaia Velha. O esforço em
ganharmos o outro lado da avenida fez com que fizéssemos algumas estripulias
juvenis, proporcionando que suássemos e, ela, pronunciasse mais a sua
sensualidade. Parece que o sol quente erotizava nossos corpos. Eu me continha o
mais que podia. Ela, exuberante. Dava para notar sua vitaminada compleição
quando se sentou à minha frente, exultante e linda, provocando meus mais
safados desejos. Enquanto conversávamos amenidades, bebericamos, almoçamos,
continuamos a conversar longa e apaixonadamente, ao que, lá pelas cinco horas
da tarde, pedi-lhe que caminhássemos um pouco pela orla. Eu estava enfeitiçado,
precisava desentrevar os quereres que se encontravam rijos, suplicando por seus
dotes, seu corpo, sua alma. - Tudo bem. Seguimos pela calçada admirando o
crepúsculo sergipano estreitando cada vez mais nossas afinidades. Quantas?
Todas. Estávamos extremamente gentis e, ao que parece, apaixonados. Eu, pelo
menos, já entregara os pontos. Ela, saindo pelos poros. Quase uma hora e meia
de caminhada, ela me indicou um barzinho climático na orla. Seguimos para lá,
bebemos até alta noite, conversando miolo de pote, situações picantes,
desnudamentos, simpatias e repulsas. Foi aí que soube das muitas adversidades
que lhe tolhiam e que desafiava tudo com seu espírito combativo, rompendo o
intransponível de forma encorajadora e estimulada. Descobri que adorava
competições de forma soberana desafiando-me a uma partida de xadrez, se
ganhasse ela comemoraria a sua conquista. Vangloriava-se dos seus feitos,
deixando claro nunca vacilar ou arriscando seus altos interesses de se tornar
uma jornalista renomada. Lá pela uma hora da manhã pediu-me para ir embora,
claro, paguei a conta e chamei um táxi para que nos levasse. Ela entrou no
banco de trás me puxando pela mão. Disse ao motorista o endereço e, quinze
minutos depois, estava eu deixando ela em casa. Deu-me um beijo na face,
disse-me um até amanhã gentil e esgueirou-se portão adentro. Pedi ao motorista
que retornasse para Atalaia para me deixar no hotel. Na portaria havia um
punhado de recados que deixei para vê-los no dia seguinte. O celular que me
esquecera também deveria ter entupido a secretária eletrônica. Deixei para lá
encantado com aquela imagem boa de Cecília. Adormeci sonhando com a garota. O
barulho estonteante do interfone arrancou-me do devaneio que entorpecia e me
dava um outro sentido na vida. - Pois não? - Bom dia, senhor, sua visita está
aqui! - Que horas são? - Dez e quarenta, senhor. - Eita? Dormi demais de novo,
mande-a subir, por favor. - Pois não. Fiquei mergulhado entre os lençóis da
cama, imaginando como poderia fazer com que aquele dia fosse tão prazeroso
quanto o anterior. Dlin dlon! Que rapidez? Pode entrar, está aberta. - Boooom
diiiiiiiaaaaaa! -, era Cecília exultante. Mais bela que nunca. Avançou no
ambiente e beijou-me a face. Seu perfume, mais inebriante que sempre. - Bom
dia, fofinha! Como passou a noite? - Melhor jamais existira! - É mesmo? Que
bom! Sua ânima reacendeu em mim a alegria da juventude. Levantei-me, fitei-lhe
firme e fui até o banheiro, onde me lavei com determinação e saí enrolado na
toalha. Ela estava bisbilhotando os recados que eu havia recolhido na recepção.-
Olhe, tem uma pessoa aqui que diz ter descoberto o endereço da escritora Núbia
Marques. - É um amigo meu, eu queria conhecer a escritora... - Por que não me
disse, eu sei onde ela mora, acredito que hoje ela esteja em Portugal. Olhe,
aqui tem um recado do professor João Costa dizendo para você entrar em contato
com a professora Sônia van Dijck. Quem é essa? - É uma professora paraibana que
conheci pela internet que escreveu uns livros sobre Hermilo. - Tem aqui um
boletim do Edmo Menor, um livro do Danilo Sampaio, um recado da Malva Barros
sobre o Armazém Literário e um cartão do Nivaldo Menezes. - Bom... Liguei o
celular para ver os recados na secretária eletrônica e era Rolandry avisando do
encontro em Recife na segunda-feira; do pessoal do Sesc me lembrando da Feira
do Livro Infantil; do Ari pedindo o endereço da Arriete; do meu primo
Marquinhos pedindo duas músicas para completar seu cd; do Juarez Correya
cobrando a poesia viva de Maceió; e mais tantos outros que fui anotando na
agenda para providenciar quando retornasse. - Podemos continuar a nossa
entrevista? - E ainda tem perguntas para mim? - Claro, ou você acha que acabou?
- Tudo bem, menina, o que você quer saber mais sobre este reles sujeito aqui? Sacou
da bolsa o bloco de notas e largou o gravador perto de mim. Sentou-se, foi
quando pude ver a blusa branca que vestia com um poema meu, deixando os bicos
pontiagudos dos seios a denunciar a ausência de bustiê; uma saia jeans e uma
sandália de salto com tiras amarradas até o mocotó. Não deixou por menos e
expôs sua curiosidade extrema. Sua aura resplandecia na minha retina. Estava eu
com a garganta seca, pigarreando, peguei dum cigarro e pedi-lhe uma beer.
Deu-me elegantemente, senti-lhe o aroma de carne boa e sedutora, e entre os
lençóis me amufanhei, segurando meus mais loucos e extravagantes desejos. Ping-pong.
Já havia tomado três latinhas de cerveja; ela, cinco; quando me convidou para
caminhar. Fiz um esforço para levantar-me e me banhei demoradamente,
aprontei-me e saímos no calçadão pelo mormaço da tarde. Esta seria a última
tarde daquela estadia em Aracaju. Quando mencionei isso notei que ela
entristeceu. Aportamos num barzinho da orla e bebemos até noite grande. - Por
que você tem que voltar? - Tenho afazeres outros. - Quais? - Preciso estar na
Febralivro de Fortaleza; tenho que me apresentar na Feira do Livro Infantil, do
Sesc, em Maceió; preciso organizar a publicação de uns livros; selecionar umas
músicas para gravação de um cd; e várias dezenas de compromissos agendados. -
Você gosta de Aracaju? - Claro! - Você gosta de mim? - Mais do que você
imagina. Sorriu aquele riso de quem ficou satisfeita. Recolheu o carderninho e
o gravador na bolsa, deixou tudo lá na cadeira ao lado e levantou-se sem dizer
nada. Desapareceu lá para dentro. Alguns minutos depois retornou e fitou-me
profundamente. Fiquei embaraçado com aquilo. Ela pegou um dos meus cigarros e
tragou, tossindo. - Quem não tem o vício de fumar, não deve fumar! Controlou os
tragos e continuou baforando na minha cara. Ingeriu o copo inteiro de uma só
vez e levantou-se como se tivesse alcançado uma conquista insuperável. Era o
seu troféu. - Quando você vai partir? - Amanhã de manhã. A minha resposta
deixou-a taciturna. Pensativa, demonstrava certo nervosismo. - A que horas? -
Não sei, a hora que acordar! - Tudo bem. Algo havia clareado em seu semblante,
retornando o viço e a alegria que lhe eram peculiares. Foi aí que falou pelos
cotovelos. Eu adorava ouvir-lhe, desatou em confidências lascivas, contou-me de
suas decepções e, não resistindo, largou-me um beijo na boca demorado. Estava
totalmente entregue à minha sanha, eu sabia. Deu-me todo o seu segredo naquele
beijo ardente. Depois, pegou da bolsa e zarpou sem dizer palavras. Fiquei
paralisado. Quando dei por mim ela já havia desaparecido. Não sabia seu
endereço, aliás, levara-lhe em casa na noite anterior, mas jamais saberia onde
ficara, nem onde encontrá-la, muito menos o número do seu telefone. Que pena.
Escorreu pelas minhas mãos sem dizer adeus. Saí do bar e fui caminhando até o
hotel. Muitos bilhetes me foram entregues, fiz um bolo e os enverguei na mão.
Estava marasmódico. No apartamento, sentei-me na poltrona e peguei da bebida
até adormecer. Acordei sem ser incomodado, abri a persiana, era dia forte, acho
que mais de meio-dia. - É da portaria? - Sim. - Por favor, que horas são? -
Doze e quarenta. - Obrigado. - Alguém me procurou agora de manhã? - Não,
senhor. - Obrigado, feche a minha conta que já vou partir. Arrumei meus
basculhos e repassei os bilhetes. No meio deles havia um com a seguinte
inscrição: eu te amei, apesar das armadilhas que perseguem todo amor... sua.
Era um trecho da minha canção, devia ser Cecília. Cadê-la? Escafedeu. Eu não
conhecia suficiente Aracaju para decorar-lhe a residência. Iria embora sem
dizer adeus. Desci, minha conta já estava acertada pelos organizadores, só tive
o trabalho de pegar um táxi até o aeroporto e zarpar de volta. O tempo passou.
Alguns meses depois o celular dá seu trinado. - Feliz aniversário! - Obrigado. -
Sabe quem é? - Nem imagino! - Nunca mais você foi a Aracaju. - É verdade. - Eu
estou aqui. - Aonde? - Na sua cidade. - Onde? - Esperando você para lhe
entregar seu presente. - Cecília? - Lembrou-se! Até que enfim! Até que enfim! -
Onde você está? - Use de sua criatividade, descubra! Vim entregar seu presente
pessoalmente. - Onde? - Vou lhe dar uma dica: onde eu estou, é na praia mais
nobre de sua cidade, num bar onde você comemorou sua primeira música gravada
por um amigo, tomando um chope e mais: estou ansiando por beijar-lhe todo. -
Deixe ver, hum... - Outra dica: estou hospedada no hotel que você costumava se
hospedar que fica entre o aeroporto e a praia que eu estou. - Chego já! Parti,
sabia onde ela estava. Como descobrira isso? Dez minutos depois estava eu
frente a frente com aquela coisinha fofa, capaz de me virar a cabeça. Ela me
abraçou com lágrimas nos olhos. Bebemos até ficarmos tontos. - Quer receber o
seu presente? - Não se incomode com isso! - Quer ou não quer? - O que vier de
você será bom demais pra mim. - Leve-me daqui para onde quiser. - É? - É. Fiquei
impressionado. Por um instante titubiei. Ingeri alguns copos da cerveja dela e
matutei o que fazer. Fechei a conta e levei a linda moça até meu carro,
conduzindo-a por algumas interessantes paisagens até o motel mais próximo. Ao
adentrarmos em nossa alcova exclusiva, ela agarrou-me pelo pescoço e beijou-me
incessantemente. Não me contive e retribuí-lhe os carinhos. Seu perfume embalou
meus sentimentos, entregue à sua sedução. Não me furtava a largar aqueles
lábios sedosos, beijando-lhe com avidez. Era tanta saudade. Mútua. Agarrada ao
meu corpo não ousou afastar um milímetro sequer. Nos desvestimos aos poucos,
largando tudo a esmo, descompromissados. Fizemos dos nossos corpos nosso casulo
íntimo de uma só unidade. Éramos um, então, na ensolarada manhã de maio. © Luiz
Alberto Machado. Veja mais aqui, aqui e aqui.
DITOS
& DESDITOS - O autoengano é talvez o mais cruel de todos os motivos, pois
faz com que nos julguemos corretos quando estamos errados e nos encoraja a
lutar quando deveríamos nos render. Nos desenhos animados e filmes, os vilões
são degenerados que enrolam os bigodes e dão gargalhadas de júbilo pela própria
maldade. Na vida real, os vilões estão convencidos de sua integridade. Pensamento do linguista e psicólogo canadense Steven Pinker. Veja mais aqui &
aqui.
ALGUÉM
FALOU: Quantos se passam por sábios gostariam de mencionar os mortos que já
existiram! E quão pomposamente eles os citam! Mas eu pergunto agora: eles os imitam? Pensamento do escritor espanhol Tomás de Iriarte (1750-1791). Veja mais
aqui.
O
JOGO DA AMARELINHA - [...] Cada
reunião de gerentes de multinacionais, de homens-de-ciência, cada novo satélite
artificial, hormônio ou reator atômico esmagam um pouco mais estas falsas
esperanças. O reino será de plástico, sem dúvida. E não que o mundo venha a se
converter em um pesadelo orwelliano ou huxleyano; será muito pior, será um
mundo delicioso, à medida de seus habitantes, sem nenhum mosquito, sem nenhum
analfabeto, com galinhas enormes e provavelmente com dezoito coxas, todas deliciosas,
com banheiros telecomandados, água de distintas cores segundo o dia da semana,
uma delicada atenção do serviço nacional de higiene, com televisão em cada
quarto, por exemplo grandes paisagens tropicais para os habitantes de Reijavik,
vistas de iglus para os de Havana, compensações sutis que conformarão todas as
rebeldias, etecetera. Quer dizer, um mundo satisfatório para pessoas razoáveis.
E haverá nele, alguém, um só, que não seja razoável? [...]. Trecho extraído
da obra Jogo da amarelinha (Abril,
1985), do escritor, tradutor e intelectual argentino Julio Cortázar (1914-1984). Veja mais aqui.
A
MENINA TRANSPARENTE – Eu apareço disfarçada de todas as coisas...
/ Posso ser vista no por-do-sol ou no nascer dele. / Eu posso estar através da
janela, / Posso ser vista na asa da gaivota / Ou pelo ar que passa por ela. / Muitos
me vêem no mar, / Outros na comida da panela. / Posso aparecer para qualquer
ser, / Desde ele pequenininho; / Ficar com ele direitinho, / Se tratar de mim
como eu merecer. / Uns me pegam pra criar em livro, / Outros me botam num
vestido lindo, / Cheio de notas musicais: / Fico morando dentro da música. / Tenho
muitas mães e digo mais: / Sou uma criança com muitos pais. / Tem gente que diz
que eu nasço dentro da pessoa, / E faço ela olhar diferente, / Pra tudo que
todos olham, / Mas não notam. / Ás vezes apareço tão transparente e de mansinho
/ Que mais pareço um Gasparzinho. / Tem gente que nunca percebe que estou ali,
/ Não cuida de mim, / Não me exercita. / Eu fico como um laço de fita / Que
nunca teve um rabo de cavalo dentro. / Eu fico como uma planta de dentro da
casa / Que ninguém molha, conversa nem nada. / Quem me adivinha logo dentro
dele, / Quem percebe que estou ali diariamente, / Quem anda comigo e com o meu
gingado, / Fica com o coração inteligente / E com o pensamento emocionado. / A
esse que eu dou a mão, / E vou com esse para todo lado: / Aniversários,
passeios, sono, cama, biblioteca, casa, escola; / Estou com esse a toda hora. /
Tem gente que me vê muito na beleza da flor, / No mato, na primavera e no
calor. / É que ando muito mesmo. / Eu posso até voar! / Por isso que me vêem no
céu, nas estrelas, nos planetas / E nas conversas das crianças. / Quem anda
comigo tem muita esperança. / Todo mundo que me tem / Pode me usar e me
espalhar por aí. / Quem gosta muito de mim, / Depois que me conhece, / Junta
gente em volta como se eu fosse uma festa. / Me usam até em palestra! / Me
acordam lá do papel. / Ih! Eu tinha esquecido de dizer / Que, quando a pessoa
começa a me escrever, / Eu fico morando no papel. / Toda vez que alguém me lê
para dentro eu passo para dentro dele. / Toda vez que alguém me lê para fora,
em voz alta, / Como se eu fosse uma música, / Eu passo para dentro de todo
mundo que me vê; / Eu posso trazer alento a todo mundo que me escuta. / Tem
gente que me pega só numa fase, / Como se eu fosse uma gripe boa, / E como se
dessa boa gripe ficasse gripada. / Quero dizer... / Eu dou muito no coração de
gente apaixonada. / Minha palavra é do sexo feminino, / Brinco com menino e com
menina, / Fico com a pessoa até ela ficar velhinha, / Inclusive de bengala; / E
depois que ela morre, / Faço ela ficar viva / Toda vez que por mim é lembrada.
/ Ás vezes eu sou sapeca, / Ás vezes eu fico quieta, / Mas todo mundo que olha
através de mim é poeta. / Veja se eu sou esta que fala dentro de você. / Eu não
posso escrever porque não sou poeta: / Sou a poesia! / Tente agora fazer um
verso. / Se eu fosse você, faria.
Poema
da poeta, atriz, jornalista
e cantora Elisa Lucinda. Veja mais
aqui e aqui.






