segunda-feira, julho 15, 2024

MÓNICA OJEDA, BORA CHUNG, AZA NJERI & DÉBORA LAÍS FERRAZ

 

Imagem: Acervo ArtLAM.

Ao som dos concertos Nights from the Alhambra (2007), A Mediterranean Odyssey (2010), Troubadours On The Rhine (2012) e os álbuns The Wind That Shakes the Barley (2010) e Lost Souls (2018), da cantora, compositora, pianista e harpista canadense Loreena McKennitt.

 

MONÓLOGOUTRO: E SE VIU O RIO & O QUE ALÉM MAIS HAVIA... – Horoutrera: aqui ninguém escutava e o eco do que nunca dissera trocava a noite pelo dia. Havia qualquer coisa de perdido à espera da sinistra surpresa. O que mais me aconteceria na vida... Tirava forças da fraqueza e era quase inútil, mas era uma chance, quem sabe. Quantos futuros e a fulminação pelas oitavadas dores. Dava de cara com os abortados vivos zanzando encarcerados em suas bolhas exclusivas. Escapava de quantos assaltos, até o nocaute previsível a qualquer momento entre vindicações e platitudes. Havia de aparecer sutil sinal. E do imprevisível dava fé da minha própria sombra: era uma mulher e não me foi arredia, tal Phoebe Mary Waller-Bridge: Comecei lendo como uma fuga, depois como uma tarefa, depois como um hábito e depois como um luxo. Só agora percebi que isso é uma necessidade... Era como ensinasse o inexpresso visinvisível, a me dar ciência num poema escrito na palma da mão, de que sou não mais que inominômino, um alcunha para nada mais. A bom termo, não sei: quem, quando, como, onde agora, aporias, estases e devires. Indagações outras desfeitas no instante, o primeiro talvez e apenas a perspicácia de ser antes do já anterior e o depois. Ela era Espido Freire: Se você vive de acordo com a sua consciência, a fé não é tão importante... Todo livro tem que quebrar o silêncio... E não estava só porque ela me levou pelos túneis solares de Nancy Holt. Seguia seus passos e pernas bem torneadas – toda mulher é uma deusa, sabia! Muito depois ela me disse que fora uma aberração escravizada e fugira de atrações circenses, coisa escandalosa da população inteira em polvorosa nos poleiros entupidos das sessões reprisadas três vezes ao dia. Inacreditável! Então, empunhou um poema sem face e recitou escondendo sua fisionomia. Era como se me desse um olho de tamburutaca e nele espelhos duplicassem as imagens refletidas e a promessa do infinito. Era a prova dos nove. E disse-me Nathalie Sarraute: Acho que é muito doloroso e que é melhor não ter dúvidas. Invejo quem não tem; eu os invejo muito. Eles são pessoas felizes... Horaquela achegou-se como a explosão de Betelgeuse, tão diurna na sua pujante vitalidade, e refratária ensinou-me o beijo para quem às amarguras; se se perdeu, o abraço; aos suicidas, o apoio; em desgraça, o afeto. E dei meus olhos ao primeiro cego; minha esperança, ao suicida; o meu suor, ao emergencial enfermo; e os ossos, aos tocadores da primeira orquestra. O meu sorriso guardei para ela ali noturna, com seus olhos bíblicos de vivos faróis. Baixou as pálpebras que depuseram a terna tristeza de quem já serviu de pajem para histriões. Era como se restasse apenas o agora e ofertou seus pulsos à hora inadiável e seus mil e um encantos eclodiram ubíquos. Sorriu-me tímida e abriu as coxas para atravessá-las e nela eu amanheci, muito chovi e fiz sol, entardeci e, quando findou o dia, anoiteci pelas paisagens de sua imensidão corpórea. Até mais ver.

 

CRÂNIO – CRÂNIO = X

Imagem: Acervo ArtLAM.

Desconhecido na linguagem dos mortos. \ Poema nulo. \ Ouvi dizer que você cavalga nas cabeças das Fúrias \ e você foge \ e mancha os terrenos baldios de leite coalhado \ meu leite coagulado \ e eles bebem e te dão luz \ uma caveira com canhões prateados apontando para meu peito \ conjunto de trilhas elétricas e membranas salgadas \ fio-mãe de navalhas \ mãe abutre cinerário \ Os três lambem as gengivas sob o limiar quente dos teus rins em flor: \ Eles têm cascos e abrem caminho desde os rios gástricos até os milharais. \ Eles se espalham pela Via Láctea montando em você. \ Eles urinam nas orelhas dos dentes que se desprendem para oeste. \ “Mãe e filha é uma antinomia”, \ a clarividência subaquática do seu trinômio perfeito de cães canta para você \ e você repete ao sul de sua debandada: \ “Mãe e filha são uma antinomia \ com pernas e cabelos de tarântula \ em uma gaiola de gelo vazia.” \ Seu cabelo queima como elefantes marciais cruzando os desertos \ babuíno zibelina \ casca de peixe aéreo. \ Você quer minha carne no seu leite terrível \ cozinhando na alta temperatura dos furacões \ (Escolas de esperma do deus morto \ povoar acima das águas galácticas do norte). \ Eu tremo nos abrigos derrubados pela sua barriga de baleia em histeria \ Esplanada \ Maddrácula dos mausoléus \ As cabeças das Fúrias sorriem tortuosamente para o sangue, \ rígida sob as coxas do galgo e a escultura perfeita do tórax; \ Eles querem me cozinhar no seu néctar de hera vencido, \ forçar o leite dos fígados para dentro de mim através do sulco celestial de suas primeiras manhãs. \ Espigas de dentes descascam e mordem meus restos imóveis à medida que passam. \ Eu me escondo entre as peles dos vertebrados \ e transformo meu corpo em um saco de penas \ que surge fresco entre os fêmures selvagens. \ Mãe e filha são uma antinomia. \ Uma caveira desgastada observa meu sinal nu: \ todo tipo de fuga termina \ nas cavidades profundas \ de um animal morto.

Poema da escritora equatoriana Mónica Ojeda Franco, autora das obras La desfiguración Silva (Prêmio Alba Narrativa, 2014), Nefando (Candaya, 2016), e O ciclo das pedras (Rastro de la Iguana, 2015).

 

COELHO AMALDIÇOADO – [...] Depois que você passa por um trauma terrível e entende o mundo de uma perspectiva extrema, é difícil superar essa perspectiva. Porque a sua própria sobrevivência depende disso. [...] Se eu pudesse fazer um desejo, quero ser um pouco mais feliz Se eu ficar muito feliz sentirei falta da tristeza [...] Para algumas pessoas, suas vidas são governadas por um evento chocante que repercute em seus instintos de sobrevivência. A vida se reduz a uma armadilha feita de um momento brilhante do passado, uma armadilha onde repetem incessantemente aquele momento singular em que tinham mais certeza de estar vivos. Esse momento é curto, mas muito depois de ter passado, os bons e os maus momentos escorregam como areia por entre os dedos enquanto se repetem sem sentido e confirmam a sua sobrevivência. [...] A vida é uma série de problemas. Principalmente quando se é casado e tem família. Porque mesmo quando você consegue evitar os problemas do mundo exterior e voltar para casa em segurança, sua família está lá esperando com um conjunto totalmente diferente de problemas próprios. [...]. Trechos extraídos da obra Cursed Bunny (Honford Star, 2021), da premiada escritora e tradutora sul-coreana Bora Chung.

 

ÉTICA, FILOSOFIA, GÊNERO & RAÇA - Para o sujeito negro, viver é o seu maior ato de afronta... Eu encho meus filhos de amor para que, quando eu me tornar ancestral, seja merecedora de seu respeito e reverência e possa, assim, zelar diretamente por eles e pela minha descendência... Pensamento da filósofa Aza Njeri (Viviane Moraes), que na obra Amor: um Ato Político-Poético - Ética e filosofia: gênero, raça e diversidade cultural (Fi, 2020), expressa que: [...] Nosso maior Ato Político-Poético é amar. Como já abordado neste ensaio, não o Amor alienante ocidental, mas as pluriformas possíveis de Outridade no amar. É libertador, para nós, o “Outro”, perceber que Amor não é o conto de fadas das adormecidas e abobalhadas princesas europeias à procura de um patife que passou a vida inteira sendo servido por mulheres como eu; nem volúpia sexual, que faz com que se fique três dias e três noites entregues aos “desejos da carne”; não tem coraçõezinhos pulsando, nem canção, muito menos loucura insana e mortal. [...] Compreender que não existe verdade única que determina uma experiência universal una dentro de um mosaico plural que é a Humanidade. O Amor, portanto, pode ser entendido a partir de uma pluriversalidade de cosmovisões, e neste artigo, busquei sulear minhas reflexões, para pensar o Amor enquanto energia fundante de movimento, necessária para a luta dos oprimidos no Ocidente. Longe de querer destituir o Ocidente para impor uma verdade afroperspectivada universal, ao contrário, almejei nessa discussão o diálogo que aponta para a necessidade do Outro falar e experienciar diversas formas de amar que estejam mais em sintonia com sua experiência no mundo que é atravessada pelo Presságio do Abismo, Monstro do Genocídio e pela fratura banzística de insílio. [...]. Já no seu texto Imprevisibilidade da Vida (Coletivo Indra, 2021), ela expressa que: [...] uma das minhas piores características é ser controladora. Gosto de ser organizada e ter controle sobre minhas pesquisas, aulas, vídeos, família, casa, Vida. Tenho consciência dessa amarra e trabalho diariamente para me desapegar e entender que viver é uma experiência radical e imprevisível.  Nesses 36 anos recém-completados, aprendi a necessidade dos três S: Solaridade, Sabedoria e Silêncio. Com eles, exercito a minha vitalidade atenta diante das peripécias do viver. Setembro foi um mês de muitas reviravoltas. Cíclico e potente, me chacoalhou dizendo: você não tem controle. Então sigo repetindo, sem controle da Vida, que Viver é um ato de afronta fundamental para resistir à desgraça coletiva do Brasil. Vou vivendo-sendo. Organizada, mas ainda impotente. Atenta e resiliente. Saúdo a Primavera, plantando girassóis solares no peito de cada um. [...].

 

ENQUANTO DEUS NÃO ESTÁ OLHANDO...

[...] Eu era incapaz de chegar a um lugar e dizer o que queria. Sempre envolvida pelas possibilidades de estar querendo—ou acreditando querer—a coisa errada. Sempre que eu ia a uma lanchonete com meu pai, eu precisava ver o cardápio inteiro, todas as vitrines de bolos, ponderando, desesperadamente, sobre as opções. Ele sempre se impacientava com isso. Em lanchonetes, ele caminhava decidido ao balcão e, sem perguntar o que serviam, sem ter em mãos o cardápio, pedia: Um misto quente e um café. Ele não se preocupava com as opções. E por que deveria? Eu é que tive opções demais na vida. Ele, não. Ele sabia o que queria. Adaptou-se ao fato de que qualquer birosca ofereceria misto quente e café. Ele teve uma só possibilidade. [...] Pessoas assim nunca vão crescer, de fato. Pensei, desanimada, sobre minha própria incompetência para uma vida adulta [...].

Trecho extraído da obra Enquanto deus não está olhando (Record, 2014), da escritora e jornalista, Débora Laís Ferraz, autora de obras como Os anjos (2003) e o conto O filhote de terremoto (Prêmio SESC de Contos Machado de Assis em 2012), adaptado para o cinema pelo curta-metragem Catástrofe (2012), dirigido por Gian Orsini. Veja mais aqui.

 

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